Cátia Guimarães
Veja uma parte do que vão enfrentar os 5.570 novos gestores para garantir o direito à saúde
"O Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que tem um sistema universal de saúde. E mesmo assim, nos outros países, o secretário municipal não é gestor do sistema”. A fala é de Odorico Monteiro, secretário de gestão estratégica e participativa do Ministério da Saúde. Mais do que destacar a complexidade do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, essa constatação também deixa evidente a importância que aqui a gestão municipal assumiu para a garantia do direito à saúde. E esse é o exato tamanho da responsabilidade que aguarda os 5570 novos gestores que tomaram posse em janeiro de 2013. Junto com a pasta da Saúde de cada um dos municípios brasileiros, eles recebem um pacote de novos e velhos dilemas.
Nesta matéria, mapeamos e discutimos cinco desses grandes desafios. O primeiro traz um problema antigo, mas que ganhou uma ferramenta nova: desde a publicação do decreto 7508, em 2011, aposta-se que a regionalização e a divisão de responsabilidades entre municípios de uma mesma região e entre estes e o estado pode melhorar a garantia de acesso e integralidade do sistema. O segundo bloco debate as questões que os gestores municipais vão enfrentar em relação ao financiamento, que tem sido a maior queixa dos municípios e, pelo menos por enquanto, não teve sua lógica alterada com essa nova estratégia de regionalização. O terceiro impasse identificado é a gestão do trabalho e da educação na saúde, que traz problemas como a fixação de profissionais e as demandas para a criação de planos de carreiras, cargos e salários, tudo isso limitado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que tem dificultado muito a gestão dos municípios. O quarto desafio é o mais antigo e estável de todos: a melhoria da atenção básica, entendida como porta de entrada do sistema de saúde. Embora essa seja, desde sempre, uma das principais atribuições do município, o cenário que os novos gestores vão encontrar quando tomarem posse apresenta algumas novidades. Por fim, o último tema trata de uma ‘armadilha’ que tem se colocado principalmente no caminho da gestão local: por meio do que se convencionou chamar de judicialização da saúde, os secretários municipais são cada vez mais pautados e constrangidos por decisões judiciais que pouco interagem com a lógica de organização do sistema e com a concepção de direito à saúde construída pelo SUS.
Mas vamos ver ponto a ponto?
1 - INTEGRAÇÃO REGIONAL
Em 2007, o Sr. Adelio sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) enquanto dirigia, perdeu o controle do carro, capotou e caiu numa ribanceira. No acidente, teve uma lesão cervical, que rompeu a medula. Foi levado para o serviço de saúde do município mais próximo, que não dispunha sequer de um respirador mecânico. Apesar da falta de infraestrutura, não se conseguiu a transferência do paciente para o hospital de referência, no município vizinho. Seu Adélio passou seis horas submetido a um respirador manual – utilizado normalmente em primeiros socorros –, que dificulta a manutenção da frequência cardíaca. A transferência só foi feita muitas horas depois, quando a família decidiu contratar uma UTI móvel. Seu Adélio chegou ao hospital, foi tratado, mas não resistiu.
Pouco tempo depois, a filha do Sr. Adélio procurou o secretário municipal de saúde para entender como o município se organizava para aquele tipo de situação. A resposta foi desanimadora: segundo o gestor, esse não era um problema do município porque a sua responsabilidade era apenas a atenção básica.
Essa é uma história real. A cidade se chama Liberdade, localizada em Minas Gerais, e tem cerca de 6 mil habitantes. O Sr. Adélio era pai de Adelyne Pereira, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(EPSJV/Fiocruz) que, a partir dessa experiência pessoal, se dedicou a estudar a regionalização no SUS. “O secretário municipal de saúde precisa se responsabilizar pela integralidade da atenção no município, portanto, tem que se preocupar com as formas de garantir acesso também aos outros níveis de atenção”, opina. O secretário de gestão estratégica e participativa do Ministério da Saúde, Odorico Andrade, no entanto, pondera: “Solucionar essa situação não é um desafio do secretário municipal de saúde, mas do SUS como um todo”.
Integralidade
“Sem que os municípios se integrem em regiões de saúde, não é possível garantir a integralidade da atenção”, analisa Adelyne. E completa: “Sem esse esforço, a sensação que temos é que o direito do cidadão à saúde é determinado pelo corte populacional do município onde mora. E isso é muito cruel”.
Para superar os obstáculos e viabilizar a integração regional, vários caminhos foram tentados até hoje. Na década de 1990, as Normas Operacionais Básicas (NOBs) criaram, por exemplo, a Programação Pactua-da e Integrada (PPI). Em 2006, o Pacto pela Saúde substituiu as normas, propondo outras estratégias para incentivar a relação mais solidária entre os entes federados. Mas os novos gestores vão encontrar uma novidade nesse sentido: o decreto 7508/2011, que regulamenta a lei 8080 – dispondo sobre “a organização do SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa” –, e cria instrumentos como a região de saúde, composta por um conjunto de municípios vizinhos que mantenham entre si alguma identidade, e o Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde (coap), um termo de responsabilidades, metas e indicadores de saúde assinado por gestores do estado, da União e dos municípios integrados numa região.
Mas quais as diferenças entre todas essas estratégias? “A PPI era um processo declaratório, em que o município se dizia capaz de disponibilizar parte da tecnologia ou dos recursos humanos de que dispunha para outro que não tinham essa capacidade instalada. O termo criado pelo Pacto de Gestão faz algo semelhante. Em ambos os casos, o município assume compromisso com ele mesmo. Agora, pela primeira vez, vamos promover um encontro dos três gestores, fazer o mapa da saúde e assumir compromissos juntos”, explica Odorico. Quem decide, diz, é a região de saúde, que deve ser formalmente constituída – até agora, 435 foram criadas.
Luciana de Lima, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), entende que, de fato, os instrumentos trazidos pelo novo decreto dão mais formalidade e concretude aos acordos intergovernamentais. A PPI, explica, só tinha expressão efetiva sobre o montante de recursos federais voltados para a média e alta complexidade. Já o Pacto de Gestão, na sua avaliação, não necessariamente fortaleceu a regionalização, porque os municípios poderiam assumir metas isoladamente. “Esses instrumentos tiveram seu papel. O problema é que não criaram necessariamente parcerias”, avalia.
Ela, no entanto, aponta dúvidas exatamente sobre a forma de contrato que está em vigor atualmente. “Fico me perguntando se o instrumento contrato não pode também ser usado juridicamente pelos gestores no sentido de dizer: ‘o meu compromisso só vai até aqui’. Ou seja, me pergunto se ele não pode ser utilizado tanto como instrumento de responsabilização como, dependendo do teor do contrato, de desresponsabilização”, diz.
Mas o problema maior que Luciana identifica nesse processo abre caminho para o próximo desafio do gestor municipal de que trataremos nesta matéria: o financiamento. “O contrato não pode ser meramente organizativo de uma situação de escassez. Vai organizar o quê? Em regiões onde se tem uma carência da oferta de serviços ou necessidades de qualificação de recursos humanos, por exemplo, eu assino o contrato falando que esta é a minha região, com esse conjunto de equipamentos e serviços que se articulam dessa maneira e o meu papel é esse. E que eu posso ir até aqui, é esse o papel que assumo nessa rede. Mas e se isso não for suficiente?”, questiona. Adelyne concorda: “O coap é um instrumento de gestão que todos os gestores assinam, mas, sozinho, sem financiamento, ele não garante nada”. Para Luciana, além do montante de recursos, o financiamento traz questões sobre as relações interfederativas. “Acho que esses instrumentos ainda são frágeis porque não rompem com uma lógica que privilegia a relação do Ministério da Saúde com os municípios, sem considerar adequadamente o papel do estado nesse processo”, avalia.
Odorico concorda que o decreto não trata de financiamento, mas acha que ele age positivamente também nesse sentido: “Agora, temos visibilidade sobre de quem são todos os recursos. O coap racionaliza o uso da tecnologia, otimizando os recursos”, opina. E exemplifica: excetuando-se os casos em que já se diagnosticou risco, um mamógrafo atende regularmente mulheres de 50 a 69 anos, que requerem em média um exame a cada dois anos. Para evitar ociosidade, explica o secretário, não é necessário que todo município tenha um equipamento desses. E é aí que entra a regionalização. Em relação ao papel dos entes federados, ele acredita ainda que o coap vai orientar o investimento dos estados que, de fato, não têm responsabilidades claras estabelecidas.
Outra questão, que não aparece no texto do decreto e ainda não está equacionada é sobre a ‘punição’ que será aplicada ao gestor que não cumprir o que estiver no contrato. Para Odorico, a solução está no que ele chama de ‘constrangimento republicano’. “Se tirarmos o dinheiro do município, vamos sacrificar ainda mais a população e isso não podemos fazer. Se o gestor não cumprir, podemos repactuar ou, no limite, transferir a administração dos recursos para o estado ou mesmo para outro município”, explica.
SUS municipal?
Odorico destaca como um diferencial da experiência brasileira uma descentralização política, e não apenas administrativa, da saúde. Isso quer dizer que, diferente de todos os outros países com sistemas universais de saúde, aqui cada secretário municipal é operador e gestor do sistema. Esse modelo fez com que a responsabilidade dos municípios aumentasse muito em relação à saúde da população, mas mostrou também, segundo ele, a necessidade de se dar um passo adiante. “A grande sugestão que eu daria para os prefeitos e secretários de saúde que vão assumir agora é: olhem a saúde regionalmente. A etapa de sistemas municipais de saúde foi superada. A integralidade hoje, com a mudança no perfil demográfico e epidemiológico e com a necessidade de acesso à tecnologia, não se dá mais no nível municipal”, conclui.
2 - FINANCIAMENTO
Para o presidente do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems), Antonio Nardi, o maior desafio prático que está posto aos novos gestores municipais é a efetivação não só do decreto 7508, que trata da integração regional, mas também da Lei Complementar 141, que regulamenta a Emenda Constitucional 29/2000, estabelecendo percentuais mínimos de recursos a serem aplicados em saúde pelos entes federados e definindo o que pode ser considerado ação de saúde para fins de financiamento. “Precisamos que os três entes federados coloquem recursos para cobrir o vazio que temos hoje. Se não for de uma vez, que seja de forma escalonada”, apela.
Segundo ele, embora a Emenda Constitucional 29 estabeleça que os municípios devem aplicar no mínimo 15% do produto da arrecadação dos impostos em saúde, a maior parte deles têm investido mais de 20%. De fato, dados do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), do Ministério da Saúde, mostram que, em 14 dos 26 estados do país a despesa liquidada (pura) dos municípios ultrapassou os 20% em 2011. E em outros cinco estados, o gasto chegou quase a esse percentual.
No texto ‘Gasto público municipal em saúde 2011’, Gilson Carvalho, médico sanitarista que estuda financiamento, mostra, também com dados do Siops, que naquele ano o conjunto dos municípios gastou R$ 13,7 bilhões a mais que o mínimo determinado por lei. Se tentarmos identificar a distribuição desse investimento, a discrepância entre os municípios também não é grande: em 2011, apenas 20 aplicaram menos que os 15%.
Esses cálculos apontam uma distribuição desigual dos gastos em saúde pelos entes federados, sobretudo quando se leva em conta a arrecadação. De acordo com o mesmo texto de Gilson Carvalho, 60% do total de recursos arrecadados ficam com a União, 24% com os estados e 16% com os municípios. “Os municípios brasileiros gastaram com saúde em 2011 R$ 42 bi e ficaram com apenas 16% de tudo que se arrecadou, podemos estimar que na mesma proporção os estados, que ficam com 24% das receitas, deveriam ter alocado em Saúde R$ 63 bi e a União, que fica com 60% da receita, deveria ter alocado R$ 157,5 bi. Neste raciocínio do ‘óbolo da viúva’, demonstra-se facilmente que quem menos arrecada é que está gastando mais com a saúde!”, conclui o texto. E completa: “O total possível, nesta hipótese, seria R$ 262 bi. Cerca de 70% a mais que os R$ 154 bi de recursos públicos da saúde em 2011”.
Embora destaque como desafio a efetivação da Lei complementar 141, Antonio Nardi cita a campanha ‘Saúde + 10’, que visa exatamente alterar essa lei, como uma estratégia importante nesse problema do financiamento. O Conasems é uma das instituições que assinam o manifesto do movimento, que busca a coleta de 1,5 milhão de assinaturas para propor um Projeto de Lei de Iniciativa Popular “que assegure o repasse efetivo e integral de 10% das receitas correntes brutas da União para o SUS”, como explica o site do ‘Saúde + 10’.
Quem repassa, quem regula
Na opinião do presidente do Conasems, a necessidade de a União investir mais se desdobra também para uma discussão da forma como se dá esse financiamento. Um dos problemas, segundo ele, é que parte do gasto do governo federal vem na forma de editais, dependendo, portanto, da adesão dos gestores municipais. “Tem que ser para todos”, defende. Na opinião de Odorico, todas essas questões são parte de uma cultura que coloca o Ministério da Saúde como indutor das políticas. Ele avalia que a transferência de recursos fundo a fundo [fundo nacional para fundo municipal], por exemplo, acabou inibindo o planejamento local. “Porque era mais importante o secretário municipal aderir às portarias ministeriais para receber o dinheiro do que planejar”, diz. Nesse sentido, o pacto de gestão teria sido um avanço ao desfragmentar um pouco a lógica do financiamento, que deixou de ser em ‘caixinhas’ para ser em blocos. “A meta é que cada vez mais o recurso seja repassado em função do planejamento”, aposta.
Adelyne Pereira, da EPSJV/Fiocruz, destaca ainda outro problema nessa forma de financiamento por incentivos: a falta de autonomia na gestão financeira dos recursos que vêm da União ou dos estados. “O município só tem autonomia em relação aos recursos dele. E, em geral, esse dinheiro não é suficiente”, diz. Isso tem colocado, segundo ela, um outro obstáculo para a gestão municipal: ir além da prestação de serviços, avançando na formulação de políticas.
De fato, como você já viu na parte inicial desta matéria, toda essa nova forma de se pensar a integração regional que veio com o decreto 7508 praticamente não gerou mudança em relação ao financiamento da saúde. Luciana de Lima, pesquisadora da ENSP/Fiocruz, lamenta porque acredita que o financiamento poderia fornecer um “instrumento potente”, capaz de solidificar os acordos regionais. Um exemplo? “Eu acho que o fundo regional é uma questão interessante. Com isso, a integração seria para valer, tendo como referência a região de saúde: um fundo regional, com participação tripartite e a presença do estado na regulação do processo, que reunisse pelo menos o conjunto de recursos necessários para financiar as ações de nível secundário e terciário que se articulam nesse ambiente regional”, propõe.
3 - GESTÃO DO TRABALHO E DA EDUCAÇÃO
Se você já achou que há problemas suficientes para os novos gestores em relação ao financiamento da saúde, é bom saber que ainda não chegamos a um dos maiores pontos de ‘estrangulamento’ dos municípios: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que se concretiza, na prática, como um problema para a gestão do trabalho no SUS. Trata-se da lei 101/2000, que estabelece que municípios não podem gastar mais do que 60% da receita corrente líquida com pagamento de pessoal e, desses, apenas 54% são reservados ao Executivo.
É claro que a LRF não incide apenas sobre os municípios – para o estados, o percentual máximo de contratação é também de 60% e, para a União, 50%. Mas como, entre os entes federados, o município é o que mais executa ações de saúde, ele acaba sendo também o que mais contrata. Para os críticos da lei de responsabilidade fiscal, ela impõe uma limitação incoerente com as necessidades próprias das áreas sociais. Na saúde, por exemplo, a demanda por expansão dos serviços é necessariamente crescente, o que implica a necessidade também de contratação de mais pessoal. “Tem que haver uma proposta de flexibilização dessa lei para a saúde”, defende o presidente do Conasems, Antonio Nardi. Algumas iniciativas nesse sentido já se tornaram projetos em tramitação no legislativo. Os mais recentes são os PLP 35/2001, de autoria do deputado Washington Reis (PMDB/RJ), que exclui os gastos com pessoal da Estratégia de Saúde da Família da LRF, e 25/2011, de Amauri Teixeira (PT-BA), que pede a exclusão das despesas de pessoal com todas as ações e serviços de saúde.
A LRF tem sido o argumento utilizado por muitos municípios para a contratação de organizações sociais (OS) e outras instituições como gestoras de suas unidades de saúde. Com esse modelo, que transfere da administração direta para instituições privadas – ainda que sem fins lucrativos – a contratação dos trabalhadores, os municípios conseguem fugir da lei de responsabilidade fiscal. O curioso é que essa solução mantém os gestores na legalidade, mas sem atingir aquilo que era o objetivo original da LRF: diminuir os gastos com pessoal e reduzir a dívida pública. Ao contrário, as despesas aumentam: um estudo realizado pelo Tribunal de Contas de São Paulo mostra que os hospitais geridos por OS custaram R$ 60 milhões a mais do que aqueles administrados diretamente pelo Estado e que, embora o número de funcionários contratados fosse menor do que na administração direta, os gastos com pessoal foram mais altos.
A situação dos ACS
Um caso exemplar de embate legal relacionado à lei de responsabilidade fiscal é a situação dos agentes comunitários de saúde (ACS). O artigo 2° da Emenda Constitucional 51 estabelece que os ACS e os agentes de combate a endemias “somente poderão ser contratados diretamente pelos estados, Distrito Federal ou pelos municípios”. Essa determinação legal, acompanhada da luta política que os agentes comunitários de saúde têm tocado, fez com que o cenário de precarização desses trabalhadores se transformasse em poucos anos. De acordo com informações da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs), a maioria esmagadora dos ACS já é contratada por vínculo direto com o município. Pesquisa realizada pela Confederação em 2011 mostra que principalmente a região Nordeste teve avanços significativos: em Sergipe, por exemplo, 100% dos ACS são atualmente contratados diretamente pelos municípios. Em seguida vêm o Amapá, onde apenas 1% dos agentes não têm vínculo direto com o município; e o Rio Grande do Norte, onde esse percentual é um pouco maior: 1,12%. Na outra ponta, o maior problema está no sudeste: o Rio de Janeiro lidera o ranking de ‘desobediência’ à lei, com 20,31% dos agentes comunitários do estado contratados por terceirização. Em seguida, vem o estado de São Paulo, com 10,55%. Segundo Elane Alves, assessora jurídica da Conacs, a situação nesses estados é em parte também resultado da pouca capacidade de organização da categoria, que se fragmentou exatamente por ser contratada por meio de instituições diversas, como OS e Oscip (Organização da sociedade civil de interesse público).
Para a Conacs, a desprecarização deve se estender a todos os ACS do país e mais do que isso: precisa acontecer na forma da lei. O secretário de gestão do trabalho e da educação na saúde do Ministério da Saúde, Mozart Sales, no entanto, pondera: “O que importa é a garantia de direitos”. E opina: “Não necessariamente a contratação precisa ser direta com o município. As estratégias utilizadas são diferentes, com OS ou fundações, por exemplo, atendendo à realidade de cada região”. O secretário argumenta ainda que é preciso respeitar a autonomia federativa. “Preconizamos o vínculo direto, com o máximo de direitos, mas o Ministério da Saúde não pode dizer como os municípios vão contratar”, alega. Mas a Confederação Nacional dos ACS acredita que o Ministério poderia usar seu papel de indutor financeiro das políticas em favor desses trabalhadores. “O governo federal tem sido omisso”, acusa Elane. E completa: “Desde 2005, o Ministério aumentou em 40% o repasse para os municípios exatamente para financiar a desprecarização. Portanto, poderia exigir que isso fosse feito na forma da lei”, diz Elane.
Apesar das discordâncias, como o panorama nacional já é muito mais favorável – inclusive com a maioria desses profissionais contratados por Regime Jurídico Único (RJU), de acordo com o relatório da Conacs –, o principal apelo que os ACS farão aos novos gestores municipais é outro: uma definição sobre o piso salarial da categoria. O piso, junto com a criação de um plano de carreira dos ACS, foi objeto da Emenda Constitucional 63 que, agora, precisa ser regulamentada por uma lei federal que estabelecerá, entre outras coisas, o valor. Mas, sobre isso, ainda não houve acordo.
Segundo Elane, a proposta inicial era que o governo federal aumentasse progressivamente o repasse aos municípios de modo a financiar esse piso, que chegaria a dois salários mínimos. Ela conta que o governo fez uma contraproposta fechando o piso em R$ 722. “Menos do que 8% acima do salário mínimo: é inaceitável”, diz. A luta agora é para que os 40% a mais de repasse que o governo federal faz para financiar a desprecarização sejam utilizados pelos municípios para garantir o piso. Nesse caso, os encargos ficariam por conta dos próprios municípios ou dos estados. De acordo com Elane, a União já aceitou e 11 estados assinaram, por meio dos seus conselhos estaduais de secretários municipais de saúde (cosems), uma moção e apoio à proposta. Nada foi definido ainda. Ela, no entanto, reconhece que, na prática, boa parte dos municípios brasileiros já pagam aos ACS 1,4 salários, mesmo sem qualquer determinação legal. “O governo federal precisava investir mais e os estados deveriam ter alguma contrapartida. Os municípios precisam entrar nessa briga”, apela.
A questão salarial tem, segundo a Conacs, influenciado também os rumos da formação desses trabalhadores. O curso técnico, cujos referenciais curriculares foram publicados em 2005, só teve a sua primeira parte, de 400 horas, financiada pelo Ministério da Saúde nacionalmente. Nos locais em que o curso aconteceu na íntegra, como no município do Rio de Janeiro e em cidades de Pernambuco e Ceará, ele foi pago com recursos do município ou do estado. Mas essa não é a regra. “É complicado investir num curso técnico sem expectativa de melhoria salarial. Além disso, o gestor municipal diz para o ACS que se pagar o curso técnico não vai ter dinheiro para pagar o salário dele”, analisa Elane.
O que o Ministério da Saúde incentiva
A demanda por um plano de carreira, cargos e salários não se restringe, no entanto, à categoria dos agentes comunitários de saúde. Tanto que, em 2006, foram aprovadas pela Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS e pela Comissão Intergestores Tripartite, e referendados pelo Conselho Nacional de Saúde diretrizes nacionais para um Plano de Carreiras, Cargos e Salários no âmbito do SUS.
Mais recentemente, em 2012, a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) do Ministério da Saúde lançou duas iniciativas para incentivar a implementação desses planos nos estados e municípios. A portaria 2517, de novembro de 2012, funciona como um edital voltado para estados e o Distrito Federal. No total, serão investidos R$ 5 milhões em três projetos de planos de carreira de abrangência intermunicipal ou regional e R$ 2 milhões em sete projetos que podem incluir também a desprecarização dos vínculos. A outra iniciativa é o Prêmio Inova-SUS Carreira, que teve sua primeira edição em 2011 e em 2012 contemplou sete estados, municípios, consórcios de saúde ou fundações públicas que tinham experiências bem sucedidas de planos de carreiras com R$ 200 mil para serem aplicados na área de gestão do trabalho e da educação. Esse, no entanto, continua sendo um ponto de dificuldade para os municípios no modelo atual de financiamento da saúde. “Criar carreira nos cerca de 4 mil municípios brasileiros que têm menos de 20 mil habitantes, por exemplo, é difícil. Precisamos pensar o papel do estado nesse processo”, opina Odorico Andrade, secretário de gestão estratégica e participativa do Ministério da Saúde.
O Ministério da Saúde está tentando atuar também no problema que o Conasems aponta como um dos maiores obstáculos para a saúde nos municípios em relação à gestão do trabalho, especialmente para a atenção básica: a fixação de profissionais. E, de acordo com Antonio Nardi, esse desafio só tem aumentado. “Esse não é mais um problema apenas para as áreas mais remotas; hoje envolve também os centros urbanos”, informa.
A iniciativa em curso para tentar minimizar esse problema é o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab), instituído pela portaria 2087/2011, pelos ministérios da saúde e da educação, que, no entanto, é voltado para “municípios considerados áreas de difícil acesso e provimento ou de populações de maior vulnerabilidade”. O Provab consiste em oferecer aos profissionais já formados que aceitem trabalhar nessas localidades de difícil acesso um curso de especialização em Saúde da Família à distância, por meio das universidades públicas que compõem o Sistema Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS).
Além disso, o Provab contempla apenas médicos, enfermeiros e cirurgiões-dentistas. Segundo o diretor do departamento de atenção básica da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, Heider Pinto, o programa não envolve profissionais de nível médio porque o principal nó crítico é a fixação do médico. De acordo com informações da assessoria de imprensa da SGTES/MS, o Provab conta atualmente com 2269 profissionais entre contratados pelas secretarias municipais de saúde e bolsistas.
4 - ATENÇÃO BÁSICA
Essa dificuldade de fixação de profissionais talvez se justifique por aquilo que o diretor do departamento de atenção básica da Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da saúde, Heider Pinto, considera o pior desafio que os novos gestores municipais vão ter que enfrentar: a baixa legitimidade da atenção básica, que se manifesta tanto entre os profissionais de saúde quanto entre a população usuária e a opinião pública de um modo geral. “Na hora de contratar, os profissionais veem a atenção básica como um trabalho provisório, que não atende às suas expectativas”, conta, e completa: “Precisamos convencer também a população de que a melhor maneira de ela se cuidar é perto de casa, pela equipe que a conhece”. E aponta como esse problema se reflete facilmente nos rumos da gestão: “Caso contrário, o gestor se sente motivado a investir em outras ações que são muito menos efetivas mas que são mais fáceis de serem explicadas à imprensa e à câmara dos vereadores do seu município”.
Essa baixa legitimidade, no entanto, não se reflete na avaliação de quem já passou pela atenção básica. Isso é verdade, pelo menos, em relação à Estratégia de Saúde da Família que, segundo o Sistema de Indicadores de Percepção Social realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2011, foi o “serviço de saúde” mais bem avaliado pela população, ficando à frente tanto do atendimento nos outros postos de saúde que também integram a atenção básica, quanto do atendimento de especialistas e urgência e emergência, além da distribuição de medicamentos.
Mas dados de outro estudo, mais antigo, mostram ainda a atualidade de um velho problema: a ampliação do acesso. Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) que analisou dados sobre o panorama da saúde no Brasil, realizada em 2008, menos de 50% dos domicílios estavam cadastrados no então chamado Programa Saúde da Família. O Nordeste aparecia como a região com maior número de domicílios cadastrados – 64,8% –, enquanto o Sudeste e o Centro-Oeste tinham menos da metade da população cadastrada. O relatório destaca ainda um corte de renda nesses dados. “Foi observado que quanto maior era a classe de rendimento mensal domiciliar per capita menor era a proporção de domicílios cadastrados no Programa”, diz o texto.
Qualidade da atenção básica
Os novos gestores vão ser ‘convidados’ a, além do acesso, pensar e pactuar no seu município estratégias de melhoria da qualidade da atenção básica. Esse é o objetivo do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), que
Heider destaca como a grande novidade – e apoio – que os secretários municipais de saúde vão encontrar
pela frente.
A mudança se deu a partir da inserção de um componente de qualidade no Piso de Atenção Básica (PAB) Variável, que significa um recurso a mais para o município que aderir ao programa e for bem avaliado. Isso mesmo: esse financiamento também se dá por adesão, a partir da pactuação de determinados compromissos. Mas traz uma novidade polêmica: além do gestor municipal, as equipes de saúde precisam querer se inscrever. Isso significa que um município pode aderir ao programa apenas com algumas equipes. “A ideia é forçar o diálogo entre os gestores e as equipes”, explica Heider. Isso não geraria uma distorção do diagnóstico? “O PMAQ não quer mostrar como o Brasil está. Sua finalidade é intervir na realidade. Por isso a adesão é um aspecto central do programa: a equipe e a gestão precisam se convencer da necessidade de mudança”, responde.
Segundo Heider, o governo federal já repassou quase R$ 600 milhões para os 3972 municípios que aderiram ao PMAQ. A aplicação do recurso recebido pelo município – que começa com 20% do componente de qualidade do PAB-variável, no momento de adesão e, dependendo da avaliação que receber, pode chegar a 100% –, não precisa ser nas equipes que participaram do PMAQ, ficando, portanto, a cargo do gestor. O que motivaria as equipes a participarem do programa, então? Heider explica que, na pactuação entre gestor e equipes, podem ser estabelecidos investimentos específicos, como a compra de equipamentos que melhoram a infraestrutura do local de trabalho – um ar condicionado, por exemplo –, e a formação de profissionais. Mas não é só isso: de acordo com ele, no momento de avaliação do PMAQ se identificou que 1035 equipes cadastradas acordaram com o gestor mecanismos de premiação dos profissionais por produtividade.
Os parâmetros pelos quais a qualidade é avaliada no PMAQ foram definidos, segundo Heider, a partir do mapeamento dos nós críticos da atenção básica no Brasil. Educação permanente e vínculos trabalhistas são exemplos de dois critérios de pontuação das equipes. A educação permanente engloba tanto cursos formais quanto outras estratégias relacionadas ao cotidiano das equipes, como roda de discussão de casos clínicos. Já a pontuação referente à inserção do trabalhador, de acordo com o diretor do DAB, prioriza os vínculos que garantem mais perspectivas de continuidade. Nesse quesito, explica, as equipes que têm trabalhadores concursados em regime estatutário pontuam o máximo. Se a contratação for pela administração direta, mas de forma temporária, pontua-se menos do que um vínculo CLT. Não sendo temporários, os vínculos públicos garantem sempre mais pontos do que os privados. “Nada me diz que um é melhor do que o outro. São os dados que vão nos dizer isso”, aposta Heider. Outros elementos relacionados à gestão do trabalho, como a forma de seleção, também determinam a pontuação – nesse caso, a contratação por concurso público é a que garante mais pontos.
5 - JUDICIALIZAÇÃO
Quando alguém assume a gestão de uma pasta importante e complexa como a saúde, sabe que encontrará pela frente um conjunto de demandas e problemas inerentes à própria área. O que esse gestor talvez não imagine é que ele vai enfrentar também pressões vindas do judiciário, como resultado de um processo que vem se tornando recorrente no SUS e que, de acordo com Felipe Machado, professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz que estudou este tema no doutorado, atinge principalmente os municípios. “Mesmo que ele não seja o responsável direto pela ação que se questiona na justiça, costuma-se, principalmente nas cidades do interior, entrar com a ação contra o município, porque ele é mais fácil de ser notificado. E a justiça, em geral, aceita, porque entende que os entes federados são solidários”, explica.
Funciona assim: um cidadão precisa, por exemplo, de um medicamento que não está disponível no SUS. Ele entra com uma ação na justiça e o juiz determina que o gestor da saúde precisa providenciar o medicamento num determinado prazo. Nem o custo nem a compra – como um procedimento administrativo – estavam previstos no planejamento de saúde daquela localidade, mas o gestor não tem opção, precisa cumprir. “A judicialização orienta a decisão do gestor. É o judiciário interferindo na política”, explica Felipe. A mesma lógica tem valido para a realização de procedimentos de saúde: “O mandato judicial passou a ser uma via de acesso ao sistema”, diz.
Felipe, no entanto, não acha que se deva tratar a judicialização como um problema para a gestão. “Tenho defendido que devemos analisá-la como um ‘indicador’ da atenção à saúde”, diz. Isso porque a simples acusação de interferência do judiciário não dá conta da complexidade desse processo, que, segundo o pesquisador, tem causas identificáveis no próprio funcionamento do SUS. Quando, por exemplo, um município não oferece os medicamentos que constam da lista oficial do SUS, a ação judicial vem resolver uma insuficiência do sistema. O mesmo raciocínio vale para o que ele chama de “vazios assistenciais”, ou seja, as situações de doenças para as quais o SUS não criou protocolos clínicos. Mas Felipe aponta também duas outras situações geradoras desse processo de judicialização: uma é quando o médico prescreve um medicamento em desacordo com os protocolos do SUS; e a outra, segundo ele também recorrente, é quando grupos empresariais influenciam a adoção de medicamentos ou equipamentos tecnológicos de saúde por interesses privados.
Associado a esse último aspecto, existe ainda o que se costuma chamar de ‘efeito Fantástico’, numa referência ao programa de domingo da TV Globo. Segundo Felipe, basta o programa veicular uma matéria sobre algum medicamento ou procedimento novo, mesmo que ainda em fase experimental, para choverem ações judiciais obrigando os gestores a fornecerem sem qualquer avaliação de pertinência.
Felipe explica que, nesse processo, entram em embate dois princípios do SUS: a equidade e a universalidade. A ideia de que a atenção deve levar em conta as diferentes necessidades dos usuários é ferida quando, por exemplo, o gestor tem que cumprir uma decisão judicial, que analisa apenas um caso individual, sem, portanto, considerar onde aquele recurso era mais necessário. Mas a essa questão se responde com a lembrança de que o SUS é universal: precisa atender a todos, sem discriminações – pouco importando, por exemplo, que o perfil dos autores das ações judiciais seja, na maioria das vezes, de classe média, com mais acesso a recursos do que outra parcela da população. Como sair desse conflito? “O que deve ser colocado em questão é o financiamento, a falta de recursos para atender a todos”, responde. Mas chama atenção para a naturalização de um caminho pouco coletivo para a solução de problemas da saúde pública. “A lógica do judiciário é a do atendimento individual. Ele não pode atuar sobre aquilo para o qual não é demandado. Portanto, se comporta diferente da política: não olha o todo”, descreve. E completa: “O direito à saúde está virando um direito de consumidor”.
Mas há quem acredite que isso está mudando. Pelo menos essa é a aposta que Sonia Fleury, professora da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, faz no artigo ‘Judicialização pode salvar o SUS’, publicado na revista Saúde em Debate de abril/junho de 2012. “A judicialização da saúde no Brasil foi vista até agora como uma interferência indevida sobre a capacidade de planejamento e ação do Executivo e também como uma ameaça à ação dos gestores locais, fruto do hiperativismo da procuradoria. No entanto, creio que esta fase está sendo superada e defendo que a judicialização é, hoje, a maior aliada ao SUS”, escreve. Embora concorde que na “sua fase inicial”, esse processo era orientado pelo “princípio do direito subjetivo, de caráter individual”, Sonia vê com bons olhos outros tipos de ação, que ela identifica como uma tendência. ”Já começamos a ver medidas judiciais que não estão voltadas para a compra de um medicamento exótico, mas para exigir do gestor que seja organizada uma central para leitos de UTIs, o que mostra a importância da tutela coletiva na defesa do direito à saúde”, diz o texto. E ela dá outro exemplo recente, que envolve diretamente uma gestão municipal e a forma como ela vem lidando com a gestão do trabalho. “Não poderia deixar de acrescentar minha satisfação com a decisão da segunda turma do STF em favor da ação do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, exigindo o fim das relações trabalhistas de 9500 profissionais da área de saúde terceirizados, que trabalham em clínicas da família, UPAs e hospitais municipais”, escreve. Com a decisão, o município pode continuar mantendo OS na gestão das unidades de saúde, mas seus profissionais de saúde deverão ser servidores públicos concursados.
Reportagem publicada na Revista Poli N° 26, de janeiro/fevereiro de 2013 (acesse aqui o PDF da revista )
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