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segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Mercantilização na saúde e no ensino superior

A divulgação recente de más notícias sobre o desempenho de empresas atuantes da área da saúde e do ensino superior traz à tona o necessário debate a respeito da preocupante mercantilização dos serviços públicos em nosso País e dos impactos negativos desta no atendimento à população.


Paulo Kliass na Carta Maior



A divulgação recente de más notícias sobre o desempenho de empresas atuantes da área da saúde e do ensino superior traz à tona o necessário debate a respeito da preocupante mercantilização dos serviços públicos em nosso País. À medida que parcela expressiva destes setores passou a ser composta de corporações capitalistas, os impactos negativos se fazem sentir pela maioria da população.

No início do ano, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) acabou por decidir pela interdição de 225 planos de saúde operados por 28 empresas atuantes no setor. Esse tipo de medida não é uma grande novidade. Antes disso, em outubro passado, esse órgão regulador do sistema havia proibido 301 planos de venderem seus produtos. E ainda em julho de 2012, a lista de proibição contemplava 268 planos. Ainda que tais fatos possam passar a idéia de que o Estado está agindo e fiscalizando, a pergunta que deve ser feita vai em sentido oposto. Como é possível que uma área tão sensível, como a saúde, chegue a tal extremo de descontrole e regulamentação?

Outra decisão que causou grande impacto foi a operação de venda da empresa líder de saúde privada, a Amil. Em novembro de 2011, o Estado brasileiro autorizou que ela fosse comprada por uma das maiores operadoras globais, a norte-americana United Health, pelo valor de R$ 10 bilhões. Além das dificuldades envolvendo a internacionalização do setor, a decisão gerou muita polêmica por afrontar o impedimento legal de que hospitais (também incluídos no pacote) sejam propriedade de grupos estrangeiros.

Ensino superior privado: mercantilização crescente

Na área do ensino superior, em dezembro passado, o Ministério da Educação proibiu 207 cursos de realizarem concursos vestibulares para novos alunos e no início do presente ano comunicou que outros 38 cursos haviam sido punidos com a proibição de expandirem o número de vagas, tal como solicitado pelas instituições proprietárias. A educação universitária também vem sendo objeto de profunda transformação empresarial e corporativa, de modo que o crescimento da parcela de setor privado no conjunto do sistema é bastante expressivo.

De acordo com os dados oficiais do INEP, existem 2.365 instituições de ensino universitário no Brasil. A repartição de tais faculdades e universidades revela que 88% do total são entidades privadas, restando apenas 12% no setor público (considerando o conjunto federal, estadual e municipal). Em termos numéricos: 2081 privadas e 284 públicas. Se a análise for para o total de alunos inscritos, o setor privado oferece 76% do total e o setor público fica com apenas 24%.

Em termos de matrículas, a expansão quantitativa foi expressiva ao longo da última década. Em 2002 havia 3,5 milhões de matrículas no ensino superior e em 2011 atingiu-se o marco de 6,7 milhões de alunos inscritos. Porém, a maior parcela desse crescimento de 75% deveu-se ao setor privado. As matrículas no setor público cresceram 69% ao longo dos 10 anos, ao passo que as do setor privado cresceram 105%.

Esse crescimento expressivo das escolas particulares encontrou na própria formulação de políticas públicas um importante aliado. Por um lado, pelos longos períodos em que a orientação de contenção de gastos públicos provocou um verdadeiro sucateamento do modelo das universidades públicas, em especial as federais. Restrições orçamentárias em seqüência contribuíram para inviabilizar investimentos necessários da rede física e de seus equipamentos, Além disso, a política de recursos humanos não contribuía para atrair e manter pessoal qualificado. 

PROUNI: socialização dos custos da baixa qualidade

Por outro lado, o governo criou um programa de apoio a bolsas de estudos para as escolas privadas. Através desse modelo, as empresas do setor passaram a ter praticamente assegurada uma significativa da receita correspondente às vagas oferecidas. O discurso oficial soltava loas a um modelo que parecia agradar a todos, menos a um futuro com educação de qualidade assegurada. A população de baixa renda via finalmente chegar o sonho do diploma de ensino superior. As empresas operantes no sistema de educação privada reduziram de forma significativa o risco em suas operações e nem se preocupavam com os resultados obtidos, pois o Estado assegurava suas receitas operacionais, por meio das bolsas oferecidas.

Atualmente, o PROUNI custeia 1,1 milhão de bolsistas, sendo 740 mil na modalidade integral (100% do valor da mensalidade) e 360 mil na modalidade parcial (50% do valor da mensalidade). Além disso, existe a opção do financiamento a juros subsidiados. O programa FIES oferece recursos para pagamento de despesas com matrículas e mensalidades. As regras existentes prevêem um período de carência durante o curso e o reembolso posterior a juros anuais de 3,4%, quando o beneficiário teoricamente tiver obtido ganhos salariais derivados de sua formação. Com esse incentivo, as empresas que operam na educação universitária passaram a ter um mercado cativo para suas vagas. 

Saúde e educação: mercadoria ou direito universal?

Esses dois exemplos evidenciam os impactos negativos do caminho da mercantilização crescente das áreas de serviços públicos. A conversão desses direitos democráticos - acesso à saúde e à educação – em simples mercadorias oferecidas pelas leis de oferta e demanda compromete a qualidade desses importantes pilares de cidadania e de construção de uma sociedade inclusiva e sem desigualdades de natureza social ou econômica.

Dentre as conseqüências do período de hegemonia absoluta do pensamento neoliberal, encontra-se a tentativa de disseminação da idéia de que a ação pública é sempre ineficiente e prejudicial ao conjunto da sociedade. Assim, a melhor solução seria sempre aquela encontrada nos termos das relações de troca, no ambiente determinado pelas leis do mercado. Direitos e serviços públicos, a exemplo da saúde e da educação, passam a ser encarados e tratados como simples mercadorias, a exemplo de todas as demais existentes em uma economia capitalista. Conceitos como oferta, demanda, cliente, preços, taxa de retorno, multa, contrato, inadimplência, valor de prestação, carência, entre outros, passam a fazer parte do dia-a-dia de quem convive com categorias como saúde, doença, vida, morte, educação, pesquisa, ciência, conhecimento. Uma inversão completa de valores!

Ora, parece evidente que esse processo de mercantilização é contraditório com aquilo que se pretende justamente com sistemas de educação e de saúde portadores de qualidade para seus usuários e para o próprio País. 

Quando a lógica de operação de um hospital ou de uma universidade passa a ser a da maximização do retorno do investimento realizado a qualquer custo, está comprometida a própria natureza pública do serviço a ser oferecido. As prioridades estratégicas, as áreas de maior urgência social, a distribuição espacial de acordo com necessidades regionais, a remuneração dos trabalhadores nos sistemas, tudo isso passa a ser relegado a um segundo plano nas decisões empresariais.

Serviço público: interesse social ou lógica privada?

A contabilidade fria do modelo capitalista busca a realização do lucro por meio da dinâmica de elevação de receitas e redução das despesas. Essa abordagem favorece o atendimento dos interesses dos proprietários e acionistas da empresa, mas quase nunca satisfaz as necessidades de áreas socialmente sensíveis. Essa é a principal razão, inclusive, que levou boa parte dos países do mundo capitalista à opção por delegar ao Estado a prestação de tais serviços. Ou então, pela constituição de modelos que contam com subsídios públicos destinados a instituições privadas, mas que demonstram efetiva competência e qualidade naquilo que oferecem à sociedade.

No nosso caso, o risco do processo que atravessamos é o de ficarmos com o pior dos mundos. As áreas de excelência do setor público estão, aos poucos, sendo sucateadas e perdendo competência e qualidade. As áreas de expansão do setor privado encontram um potencial de crescimento com baixa capacidade de regulação e fiscalização do Estado. A mercantilização tende a provocar uma segmentação baseada no nível de rendimento dos usuários dos sistemas, com a complementação de recursos públicos sem a correspondente qualidade na prestação dos serviços “públicos” oferecidos. A relação mercantil pressupõe um contrato. E o contrato estabelece a restrição do uso ao pagamento prévio. 

Os recursos orçamentários deixam de ser utilizados para reforçar e reconstruir um sistema público à altura das necessidades de nossa população. Na verdade, são drenados para apropriação privada em um sistema onde a lógica predominante é a da remuneração do capital.


Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

2 comentários:

  1. Caro Mario Lobato, eu ia divulgar o presente texto, pois concordi com quase tudo e gostei dos dados, mas não gostei do seguinte trecho:
    "Ou então, pela constituição de modelos que contam com subsídios públicos destinados a instituições privadas, mas que demonstram efetiva competência e qualidade naquilo que oferecem à sociedade."
    Me parece favorável às OS e privatização via OSCIPs.
    Grande abraço,
    Tarso Cabral Violin

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  2. Estimado Mario, o blog dissemina importante debate sobre o papel do estado provedor e os limites de atuação do mercado privado. Ao meu ver, não trazendo qualquer novidade, nossa Constituição coloca saúde e educação num patamar de direitos essenciais de cidadania, mas... deixa explícito a quem cabe prover tais direitos: Ao estado? Ao mercado? Não, a ambos. De tal forma transitamos no limbo entre o público e o privado, sem limites claramente definidos.
    Ao meu ver existem alguns marcadores que distinguem Estados democráticos e socialmente responsáveis de Estados embrutecidos, dentre tais marcadores destaco a saúde e a educação públicas, universalizadas e com investimentos necessários à qualidade que as mesmas devem ter.
    O problema de programas como o PROUNI e da expansão do ensino superior privado, fortemente impulsionado durante os governos FFHH, está na incapacidade estatal em concretizar o conceito da universalização com qualidade. Aqui valeria uma interessante discussão sobre o que veio primeiro "o ovo ou a galinha"? Como assim? A saúde e a educação não conseguem dar acesso universal com qualidade por que os governos são pouco competentes? Por que União, Estados e Municípios não dispõem de recursos? Ou por conta de um forte projeto neoliberal que busca sucatear o SUS e as universidades públicas em benefício dos empresários do ensino e da doença? Complicado entrar no mérito agora, mas, finalizando, saúde e educação são "bens de consumo" tão especiais e tão singulares para um projeto de Brasil que o acesso aos mesmos não poderia jamais ser mediado pelo poder de compra do cidadão. Saúde e educação deveriam ser colocados como atribuições públicas exclusivas. Tal afirmação, que soa como um soco no estômago de brasileiros, norte-americanos e outros, não é novidade para os também capitalistas Canadá, Reino Unido, Noruega, etc.
    Enfim, é briga das boas e que infelizmente não veremos o epílogo.
    Abraços, Antonio C. Nascimento (SMS Curitiba e UP, uma univ. privada!).

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