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sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

RACISMO NÃO É MAL-ENTENDIDO, THAT SIMPLE

Por Charô Lastra no blog 
Indigestivos Oneirophanta

Ficamos chocados quando uma pessoa chama um negro de macaco, mas o fato de uma criança negra ser agredida por estar com uma família branca é um mal-entendido.
Carlos Alberto, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
Apesar de ter feito poucos retratos de pessoas negras, tenho grande admiração por Norman Rockwell (artista e ilustrador estadunidense) que sempre se posicionou sobre a luta pelo direitos civis. Não por acaso escolhi duas de obras mais famosas para ilustrar esse post sobre os mais recentes casos de racismo envolvendo crianças e jovens negros.
Pra começar a estória do menino negro expulso de uma concessionária, enquanto seus pais adotivos brancos compravam um carro importado. Logo em seguida, o blog da Maternidade Santa Joana recomendando o alisamento que dos cabelos “crespos demais” de meninas negras. E para finalizar, a ordem dada em Campinas para que a Polícia Militar abordasse sobretudo pardos e negros.
Um texto dedicado a todos que não se enxergam como racistas num país onde mais de 90% das pessoas afirma conhecer um racista. Aqueles que, diante da discriminação contra uma criança,  desrespeitam a diversidade humana sob o argumento de que a miséria é uma só. Em especial aqueles que nos chamam de idiotas dizendo que foi apenas um mal-entendido.

II. AS CRIANÇAS QUE INCOMODAM OS CLIENTES

Você não pode ficar aqui dentro. Aqui não é lugar para você. Saia da loja. Porque eles pedem dinheiro, incomodam os clientes. Tem que tirar esses meninos da loja.
Gerente da AutoKrafft na Barra da Tijuca, sobre um menino negro que aguardava os pais adotivos (brancos) enquanto compravam um carro importado na concessionária.
New Kids in the Neighborhood, Norman Rockwell, 1967
New Kids in the Neighborhood, Norman Rockwell, 1967
Norman Rockwell Museum Archival Collections
O ano de 1865 foi atribulado. A Guerra de Secessão estava no fim, a abolição da escravidão era acordada e Lincoln foi morto. Quase cem anos depois, a luta pelos direitos civis alcançaria seu clímax. Nina Simone compõe Mississippi Godam, denunciando a morte de Medgar Evers após um bombardeio de uma igreja. Em breve Malcoim X e Matrin Luther King Jr estariam mortos. Norman Rockell também não se calou.
Kids in the Neighborhood trata exatamento desse momento. Fotografa crianças de raças diferentes ocupando os mesmos espaços após um longo período de discriminação. Apesar de vivermos numa democracia racial, deixe-me tossir pois não acredito que escrevi isso, nós ainda estamos engatinhando nesse processo e à duras penas. Os espaços estão sendo conquistados na base da briga através de ações afirmativas.
Detalhe New Kids in the Neighborhood, Norman Rockwell, 1967
Detalhe. New Kids in the Neighborhood, Norman Rockwell, 1967
Norman Rockwell Museum Archival Collections
A obra e o tema são tão complexos que a discussão poderia se estender até amanhã. Mas há um detalhe que impressiona. Lá pelas tantas, no canto superior esquerdo, uma pessoa branca assiste à cena com apreensão, talvez racismo. Parece dizer que as crianças negras estão fora do seu habitat natural, exatamente como menino negro na concessionária AutoKrafft.
Em nota, a empresa declarou que o funcionário não é racista e se encontra extremamente abalado, menosprezando completamente o sofrimento dos pais do menino discriminado. Chegaram a citar uma de suas funcionárias é negra para provar que a empresa não é racista, uma variação do “eu tenho um amigo negro”. Argumentam que houve um mal-entendido e não se retrataram até o momento.

III. UM PROBLEMA COM O QUAL TODAS AS MENINAS NEGRAS VIVEM

Muitas crianças nascem com os cabelos crespos demais. Com a adesão cada vez maior à técnicas de alisamento, muitas mães recorrem a essas alternativas para deixarem essas crianças mais bonitas.
Blog Maternidade Santa Joana, São Paulo
The problem we all live with, Norman Rockwell, 1964
The problem we all live with, Norman Rockwell, 1964
Norman Rockwell Museum Archival Collections
The problem we all live with coloca o racismo em perspectiva e conta a estória de Ruby Bridges, a primeira garotinha (6 anos de idade) negra matriculada numa escola fundamental só para brancos durante a efervercência da luta pelos direitos humanos. Trouxe essa imagem para falar sobre um problema com o qual todas nós mulheres e meninas negras vivemos.
Desde a infância, somos condicionadas a encontrar soluções para tudo aquilo que não deveria ser como é, ou seja, tudo que somos. O modelo de beleza eurocentrado é imposto até mesmo à crianças muito pequenas como atesta a recomendação feita pela Maternidade Santa Joana para as mães deixassem suas filhas “mais bonitas”,
Muitos dirão que se trata de um detalhe menor. Porém é com esses detalhes menores que se constrói uma vida de opressão. Alisei meu cabelo aos 4 anos mas já ouvi relato de meninas que começaram aos 2 anos de idade. Minha mãe por exemplo, tem até hoje uma enorme cicatriz no couro cabelo, após um acidente na hora de alisar o cabelo durante a infância.
Em nota, mais uma vez, a maternidade afirma que o texto era meramente informativo. AShel Almeida fez o resumo da ópera, perguntando o motivo de terem usado a expressão “crespos demais” sem em nenhum momento ressaltar o quanto o cabelo do negro é bonito. Felizmente algumas pessoas fizeram o print do texto que foi rapidamente retirado do ar, as usual.

IV. ESPECIALMENTE PARDOS E NEGROS

Também precisamos questionar a ordem de serviço expedida pelo coronel Ubiratan de Carvalho Goes Beneducci em Campinas. O documento explícita a intensificação deabordagens a traseuntes e em veículos em atitude suspeita, especialmente indivíduos de cor parda e negra.
Num país que se pretende uma democracia racial, onde o preconceito segue invisível e a discriminação institucional costuma não ter nome e nem sobrenome, o presente documento é de uma importância ímpar. Sabemos não somente onde e quando a ordem racista foi redigida, mas também por quem e com que finalidade.
Apesar disso, houve quem argumentasse que estavam procurando suspeitos de um crime em especial, o que oxalá será prontamente desmentido com a leitura integral do texto. Está plenamente caracterizada a ofensa as não a uma pessoa ou (mais) pessoas mas sim uma agressão a um grupo indeterminado de indivíduos com base em sua cor de pele.
O que nos parece é que, se fosse o caso de uma diligência em específica, maiores informações teriam sido acrescentadas ao texto. Nesse panorama hipotético, não faz sentido ampliar o número de suspeitos para um universo tão grande como pardos e negros. Se alguém estivesse na mira, teriam sido tomadas precauções para que as abordagens fossem dirigidas a esse alguém.

V. THAT SIMPLE

Mesmo que a discriminação não tenha sido a intenção do funcionário da Autokrafft, da Maternidade Santa Joana e da Polícia Militar de Campinas, ficou caracterizada o preconceito para com crianças e jovens negros, crimes inafiançaveis que o opressor costuma minimizar chamando de mal-entendido.
Racismo é toda atitude que impede o indivíduo de ir e vir, destrói sua autoestima e lhe confere tratamento diferenciado em função da cor da pele. A meu ver, todas essas estórias são casos inequívocos de discriminação racial, que exemplificam um pouquinho o que é a vida de uma pessoa negra nessa sociedade sem racistas.
As empresas envolvidas e o comando da polícia militar, ao invés de punirem com severidade seus funcionários e se desculparem com os ofendidos, foram ainda mais racistas ao tentarem explicar (e negar) o inexplicável. Como disse a Feminista Cansada, parecem prezar muito mais seus funcionários que as vítimas.
Ao deixarem de lado a hipótese de retratação, demonstraram que esses episódios foram tudo, menos um simples mal-entendido. Já está mais que na hora de inventarem outra desculpinha menos mequetrefe porque essa já está muito surrada. Tá pegando mal pessoas. O ideal seria que se retratassem de uma vez, sem maiores delongas e nheco nheco. That simple.

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