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quarta-feira, 8 de maio de 2013

Alvaro Borba: Médico também adoece


por Alvaro Borba em seu blog


Se Dayana Dams fala suave, Julyana Maiolino fala animadamente. Se Dayana tem uma postura séria e contemplativa, Julyana tem sorriso fácil. Se Dayana é loira, Julyana é morena.  As diferenças acabam por aí. Um par de ípsolons e uma série circunstâncias aproximam as duas.  Ambas são médicas, jovens e começaram a carreira na saúde pública municipal.
Os postos de saúde de Curitiba são feitos de gente como elas: são médicos na casa dos vinte e tantos anos acumulando experiências em um ritmo deveras cansativo. Esses profissionais encaram o posto de saúde como uma passagem necessária; uma escola. Ninguém planeja ficar na escola para sempre.

Julyana e Dayana trabalham  na Unidade de Saúde 24h Albert Sabin, no Fazendinha. Chegaram quase juntas e estão ali há cerca de dois anos e meio; nesse período acumularam fadiga e histórias. De vez em quando, elas precisam dar uma pausa no expediente e visitar uma delegacia. Não é raro que os médicos das unidades de saúde sejam ameaçados ou agredidos. Há duas fontes básicas de conflitos: o atestado médico e o conceito divergente que os profissionais e os pacientes fazem do termo “emergência”.
Quem chega ao posto de saúde precisa passar primeiro por uma triagem. Esse procedimento é liderado por enfermeiros e só pode ser ignorado quando a emergência é muito óbvia; uma fratura exposta, por exemplo. Recentemente, o consultório de Dayana foi invadido por uma mulher que se recusava a esperar; ela trazia a mãe para receber atendimento. A moça aparentemente tinha o seu próprio entendimento daquilo que uma “emergência”  deve ser. Ela pulou a triagem, mandou os enfermeiros para o inferno e abriu a porta do corredor que leva aos consultórios, fazendo balançar a plaquinha que recomenda “Acesso Restrito”.
É difícil imaginar Dayana subindo nas tamancas. Ela é magra e tem um aspecto delicado, quase frágil; além disso há a fala suave de professora de jardim de infância. Um observador ocasional veria nela a virtude utópica da paciência infinita. Era essa paciência que a invasora do consultório estava testando. Dayana pediu que ela voltasse para a triagem. O pedido, claro, não foi atendido. Quando a médica pegou o celular – pretendia mandar uma mensagem  de socorro para a chefia -  a moça ficou irritada. Perseguiu Dayana pelos corredores da unidade de saúde aos berros: “VOCÊ NÃO TEM JESUS NO CORAÇÃO!”
Julyana ajeita no rosto os óculos de aro de tartaruga antes de contar os apuros pelos quais já passou nesses dois anos e meio de saúde pública. Como o sorriso fixo no rosto da médica sugere, as histórias dela tendem a ser cômicas. “Nada deixa a gente mais de cara que as malandragens com atestado”, começa Julyana. Depois disso ela conta o caso de um paciente que pingou limão nos olhos para conseguir se livrar do trabalho alegando conjuntivite e de um outro esperto que jurava ter tido uma febre de quarenta e três graus que o termômetro jamais comprovaria. Julyana confessa que já precisou conceder um atestado que gostaria de não ter carimbado: ela estava sozinha com um paciente bastante agressivo e ouviu ameaças muito claras.
Na véspera da última eleição, a Unidade de Saúde Albert Sabin recebeu um aparelho de Raio X. Mais recentemente, no começo do ano, chegaram as câmeras de segurança.  Nesse mesmo período, o painel eletrônico que convoca os pacientes ao atendimento pifou e ainda não foi arrumado. Desde então, todos são chamados no grito. Pequenos materiais costumam faltar com frequência e as macas estão sem lençóis. A sala de descanso da equipe continua no mesmo estado: há três beliches apinhados num espaço pequeno, há um armário cinza metálico tapando a janela e há um colchão meio puído jogado no chão. Consta que, no ano passado, alguém entrou ali para tirar uma soneca e acordou ao lado de um cachorro de rua; o bicho invadiu o espaço sorrateiramente e se aconchegou no cobertor. A salinha é gelada e tem um aspecto muito mais insalubre que as demais instalações da unidade. Trabalhando das sete às sete, Dayana vai precisar usar o espaço em algum momento. Não há alternativa.
São meia noite e dezesseis quando Dayana faz o décimo sétimo atendimento do seu turno. A paciente é Joselita de Moura, uma mulher de 29 anos que sofre de problemas gástricos. Dayana ouve Joselita narrar seus sintomas e suas tentativas de automedicação enquanto anota tudo no computador. A médica de fala suave e jeito calmo é inesperadamente ágil diante do teclado; bate as anotações como se tivesse sido a melhor aluna de um daqueles velhos cursos de digitação.
Quando Joselita deita na maca e levanta a blusa, imediatamente reclama do frio. Dayana, que usa botas e um pesado casaco bege debaixo do jaleco branco, concorda com a reclamação. Depois de examinar Joselita, a médica volta a conversar com a paciente. Dayana quer se fazer entender e simplifica a linguagem tanto quanto pode: “O bichinho que mais faz isso é a giárdia”. Joselita chegou no posto de saúde às onze e cinquenta e cinco. Vai sair meia noite e vinte e três: “Tá melhor que o convênio”, elogia. Ela tem um cartão da Sulamerica, mas diz que prefere a saúde municipal para o que ela define como “emergências”.
As unidades de zaúde 24h vivem pressionadas pela demanda que a saúde básica não consegue atender e, principalmente, pelos casos psiquiátricos. Cada vez mais, Dayana e Julyana recebem pacientes depressivos e ansiosos, alguns chegam a somatizar e apresentam sintomas físicos severos. Outros querem drogas que elas não se sentem seguras para receitar – não é a função delas.
Recentemente, as demandas da psiquiatria se somaram às loucuras do judiciário para gerar uma situação doida dentro da Unidade de Saúde Albert Sabin: uma mulher diagnosticada com depressão disputava a guarda do filho com o marido na justiça. Quem conhece a história de perto conta que o marido era beberrão e agressivo. Na frente do juiz, ele se porta como um gentleman da Inglaterra Vitoriana. A mulher se irrita com a fraude e surta durante a audiência. O episódio rende uma liminar determinando que a mãe surtada fique contida dentro da unidade de saúde até que a família possa resgatá-la. A família é de Araxá e só chega depois de cinco dias, com passagens de ônibus doadas por um pastor evangélico. Durante a espera, Dayana mantém a paciente com recursos próprios; doa roupas e itens básicos, como pasta de dente. “Tem vezes em que a gente acaba se envolvendo com os dramas das pessoas. Não dá pra evitar”.
Não que Dayana não tenha seus dramas, ela só não faz grande caso deles. O trabalho noturno na unidade de saúde é sua principal ocupação, mas não é a única; ela também trabalha para a iniciativa privada. Há dias em que duas horas e meia de sono são todo o tempo de descanso que ela tem. A adaptação a essa rotina feroz provocou enjôos e longos períodos insones. Recentemente, uma inflamação na garganta a afastou das atividades. Médico também adoece.
Adendo:
Julyana também deve ter seus dramas. Ela estava na equipe que Curitiba enviou para atender os queimados de Santa Maria. Quando estive na unidade de saúde do Fazendinha, não a ouvi mencionar tal experiência em nenhum momento. Seriam as lembranças suficientemente fortes para abalar seu jeito alegre e desfazer o seu sorriso fixo?

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