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terça-feira, 28 de maio de 2013

Brasil levaria mais de 40 anos para ter número suficiente de médicos

Publicado originalmente no blog Certas Palavras, do jornal Gazeta do Povo. (via Dr. Rosinha)
CÉLIO MARTINS
Uma piada que está circulando nos últimos dias retrata alguns dos absurdos que persistem na sociedade brasileira. É a seguinte: "Um avião caiu sobre uma pequena cidade do interior do Amazonas e atingiu algumas casas. O saldo da tragédia foram dezenas de passageiros, tripulantes e moradores mortos e feridos. Na cidade havia apenas um médico para atender às vítimas, o que é comum em pontos remotos da Amazônia, mas entre os passageiros sobreviventes estavam médicos espanhóis, portugueses e cubanos. Preocupado com as imposições brasileiras, o prefeito da pequena cidade mandou uma mensagem com urgência ao Conselho Federal de Medicina (CFM) perguntando se os médicos estrangeiros poderiam ajudar no tratamento às vítimas. Mas a resposta que teve foi que, antes, os estrangeiros precisavam fazer o Revalida, o exame que dá direito aos profissionais de outros países de exercerem a profissão no Brasil". É claro que se trata de uma anedota, mas o humor é um tipo de arte e, como tal, serve para evidenciar anomalias sociais, que não podem ser aceitas.
Décadas e décadas de descaso dos governos com a saúde pública deixaram o Brasil numa situação de horror. Soma-se ao relapso do poder público a cultura de uma medicina mercantilista e elitista.

Em um passado não muito distante, só os filhos de famílias ricas estudavam Medicina no Brasil [voltando um pouco mais no tempo, constata-se que só se estudava Medicina no exterior]. Nas cidades do interior, entre as pessoas mais ricas estavam os médicos, que acumulavam riqueza e compravam fazendas. Hoje essa situação mudou, com maior presença de filhos da classe média nas universidades e nos hospitais, mas ainda é baixíssimo o acesso de estudantes de famílias pobres aos cursos de Medicina. A crítica que se faz ao elitismo da Medicina não deve ser entendida como um desmerecimento àqueles bons profissionais que conseguem altas rendas com seu trabalho. É um direito que esses profissionais têm de serem bem remunerados pelo serviço que prestam. O problema está no lado pobre do Brasil, carente de atenção médica.
É uma falácia dizer que o número de médicos no Brasil hoje é suficiente. O país tem, segundo o CFM, pouco mais de 370 mil médicos. Traduzindo, temos 1,8 médico para cada grupo de mil pessoas – no Maranhão e no Amapá, segundo o Ministério da Saúde, essas taxas são de 0,58 e 0,76 respectivamente.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), na Argentina, por exemplo, a proporção é de 3,2 médicos por mil, na Dinamarca 3,4, na França 3,3, na Espanha, 3,9 e em Cuba, a primeira do mundo, 7,1 médicos por mil habitantes.
As faculdades brasileiras formam cerca de 14 mil médicos anualmente. Nesse ritmo, para o país atingir níveis como os da Espanha seriam necessários pelo menos 40 anos. Não é possível esperar quatro décadas. São necessárias medidas imediatas: mais escolas de qualidade, melhor estrutura no interior e a vinda de profissionais competentes de fora.
Menos de 40 anos atrás, muitos doentes de cidades do interior de estados do Sul e Sudeste, as regiões mais desenvolvidas do país, precisavam percorrer distâncias de até 100 a 200 quilômetros para consultar um médico. Não eram poucos os que morriam no caminho. Essa situação permanece hoje em pontos remotos do país, nas regiões mais pobres.
Uma inverdade é afirmar que os médicos atualmente instalados no Sul/Sudeste estão dispostos a se transferir para os bolsões de pobreza. No Amapá, por exemplo, o governo fez concurso público com 97 vagas para médicos atuarem no interior do estado, com salário de R$ 26 mil. Mesmo assim, apenas dois profissionais preencheram os cargos. São US$ 13 mil (treze mil dólares), não está se falando de salários de menos de mil reais como se paga para professores, profissionais tão importantes quanto médicos.
A proposta para a vinda dos estrangeiros, pelo que foi divulgado até agora, demonstra razoabilidade. Seriam profissionais de países com tradição de boa Medicina e boas universidades. O governo descartou a possibilidade de trazer médicos de países que têm situação pior que a do Brasil, estabeleceu um período máximo de 3 anos de permanência, limitou a área de atuação deles e exigiu comprovação de formação e experiência profissional.
Vários países, principalmente os desenvolvidos, têm médicos estrangeiros trabalhando. A Inglaterra é um deles, com cerca de 40% dos seus profissionais formados em outros países, assim como a Austrália. Nos EUA chega a 25%. No Brasil? Nada mais que 1%.
E as entidades médicas, o que propõem para a urgência que o país tem em ampliar o acesso da população ao atendimento médico? É como no caso da anedota do avião que caiu no Amazonas: não dá para esperar. É preciso atendimento de urgência, não é uma questão de anos ou meses como defende o CFM. É de poucos dias, horas para ser mais preciso.
A população brasileira deve ter uma enorme gratidão aos seus médicos, principalmente àqueles que enfrentam falta de estrutura e condições mínimas de trabalho. Mas também deve defender o seu direito de ter um médico que a atenda quando precisar, seja profissional brasileiro ou estrangeiro. É um direito inquestionável, que está assegurado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

CÉLIO MARTINS, jornalista, é editor de Mundo do jornal Gazeta do Povo, Curitiba, e diretor do Sindicato dos Jornalistas do Paraná.

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