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Processo nº8592-07/2012
DECISÃO
Trata-se de pedido de internação compulsória, feito pelo Ministério Público, na qualidade de legitimado extraordinário de direitos individuais indisponíveis, do cidadão Peter Cesar Rezende Moutinho, em face do Município de Queimados.
Há decisão deferindo a internação a fls.42, para que o Município de Queimados a providencie.
Ofício do Município informando que não há vagas, no momento, para internação.
O Ministério Público, as fl. 47v e 52v, reitera o cumprimento da tutela deferida.
O Município apresenta resposta às fls. 59/60, com os documentos de fls.61/63.
A fl. 68v, cota do MP, com requerimentos e pedido de cumprimento da tutela antecipada.
A fl. 69 informação do MP de que o cidadão Peter não está interditado, bem como que não corre contra si ação de interdição.
As fls. 82/83 ofício do CAPS-AD de Queimados informando sobre o relatório clínico do cidadão Peter César Rezende Moutinho.
Eis o breve relatório. Decido.
Inicialmente, atenda-se ao MP, as fls. 67v, item 1, no tocante à exclusão de Peter, segundo réu, do polo passivo.
Rejeito a denunciação da lide de fls. 59/60, eis que há responsabilidade solidária constitucional na prestação do direito à saúde, na forma, do art. 197 da CR, como já assentado pela jurisprudência pacífica deste Tribunal, sendo, inclusive, objeto da súmula nº 65.
No tocante ao cumprimento do pleito antecipatório, qual seja, a internação compulsória de Peter, faz-se necessário tecer alguns comentários.
O pedido foi requerido com base na Lei 10.216/01, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. Essa lei constituiu as bases da Reforma Psiquiátrica Brasileira, tendo tramitado por 11 anos no Congresso.
A história da Psiquiatria é marcada pelo asilamento e tratamento desumano aos chamados “doentes mentais” (já que a própria existência da doença mental é controvertida na própria Psiquiatria)[1]. A Lei nº 10.216/01 pretendeu romper com essa ordem. O objetivo foi privilegiar a desospitalização dos internos nos manicômios, com a sua extinção progressiva.
Contudo, o art. 6º do referido diploma legal manteve a internação psiquiátrica de modo excepcional e sempre mediante laudo médico. São 3 as modalidades: 1) voluntária; 2) involuntária; 3) compulsória, que é a determinada pelo Poder Judiciário e hipótese dos autos.
O art. 9º, por sua vez, dispõe que a internação compulsória será determinada de acordo com a legislação vigente e pelo juiz competente. Dessa forma, deve-se procurar, no ordenamento jurídico, outra lei (que não a lei nº 10.216/01) que determine a internação compulsória.
Atualmente, as leis que contém essa autorização são os art. 99 da LEP, bem como o art. 319, VIII do CPP, que tratam da aplicação da medida de segurança de internação provisória para a hipótese de uma pessoa semi ou inimputável cometer um ato definido como crime.
Diz-se atualmente, pois, está tramitando no Senado o PLC 37/13 (antigo PL 7663/11), que altera a lei de drogas (Lei nº 11.343/06) e passará a autorizar a internação forçada de usuários de drogas, o que leva a uma conclusão óbvia: se a lei de drogas irá passar a prever a internação forçada de usuários de drogas, logo, atualmente não há qualquer dispositivo legal que autorize tal ato.
Desse modo, considera-se ilegal qualquer pedido nesse sentido (pedido juridicamente impossível), pois, não há, no ordenamento jurídico brasileiro qualquer norma que autorize a internação compulsória de um dependente químico que não tenha cometido um crime ou tenha sido interditado para esse fim[2].
Assim, o pedido de internação compulsória, desacompanhado da interdição da pessoa a que se pretende internar, não encontra amparo no nosso ordenamento jurídico.
Ainda que, por amor ao debate, considere-se legalmente possível tal pedido, mesmo que acompanhado do pedido de interdição, ter-se ia que equiparar o dependente químico a uma pessoa com transtorno mental e, aí sim, aplicar a Lei nº 10.216/01.
Todavia, entende-se impossível tal equiparação, eis que o usuário de drogas não possui qualquer doença mental, mas sim um transtorno comportamental. Esse é o entendimento da Psiquiatria Crítica mais abalizada.[3]
Visto sob o ângulo da Constituição, o deferimento de internações compulsórias de dependentes químicos é ainda mais assustador. Violam-se a um só tempo os direitos constitucionais da liberdade de locomoção, da dignidade da pessoa humana e, especialmente, da saúde; muito embora grande parte das decisões favoráveis utilizem tais argumentos.
Ao contrário, a própria ONU não recomenda a internação forçada, equiparando-a à tortura, conforme o Relatório da Comissão de Direitos Humanos da ONU, datado de em 05 de março de 2013:
Cuidados médicos que causam grande sofrimento sem nenhuma razão justificável podem ser considerados um tratamento cruel, desumano ou degradante, e, se há envolvimento do Estado e intenção específica, é tortura.(...)
A institucionalização não consensual, imprópria ou desnecessária de indivíduos pode constituir tortura ou maus-tratos, bem como o uso da força para além do que é estritamente necessário (grifei).[4]
No caso em tela, o laudo médico produzido pelo próprio Ministério Público (fls. 29/30) é expresso: “Peter não é portador de uma patologia mental incapacitante, mas de uma dependência química, que, uma vez tratada, devolve o estado mental do paciente ás suas funções plenas” (grifei).
O relatório do CAPS-AD (fls. 82/83) atesta que Peter não aderiu ao tratamento, especialmente em razão do contexto familiar, em que seu pai é usuário de álcool e, conforme relato da própria mãe, provoca o seu filho.
Entende-se, assim, que o tratamento forçado de dependentes químicos, além de ser inconstitucional e ilegal, é, também, ineficaz. Isso porque se não houver o desejo de parar do paciente, a cada retorno de uma internação forçada, haverá uma recaída. No caso em questão, é notória a necessidade de tratamento de toda a família.
No tocante ao tratamento da dependência química, as experiências em países europeus, que sempre tiveram taxas altíssimas de mortes por abuso de drogas, demonstram que é ineficaz uma política baseada exclusivamente em internação: cerca de 97% dos internados apresentam recaídas (Hughes e Stevens:2007).[5]
ConformeInternacional Drug Policy Consortium, tratamentos que tenham a abstinência total como foco são insuficientes para reduzir o uso de drogas e os danos associados a ele. Agências da ONU recomendaram a extinção das internações compulsórias e dos centros de reabilitação por não haver evidências científicas de que estes métodos são eficazes no tratamento de dependentes químicos (UNAIDS:2012)[6].
Especificamente em relação ao crack, cujos usuários são marginalizados socialmente e fazem uso simultâneo de mais de uma droga (lícita ou ilícita), o tratamento é mais complexo. Evidências internacionais indicam que, para o sucesso do tratamento, são necessárias intervenções psicossociais, com a participação da comunidade e do meio cultural. No entanto, essas intervenções só são efetivas quando é estabelecido um vínculo de confiança com o dependente químico, que opta voluntariamente pelo tratamento (Connolly e Donavan:2008)[7].
O Poder Judiciário é o guardião natural dos Direitos Humanos. Não se pode, de modo algum, e sob nenhum fundamento, admitir qualquer violação de direitos humanos por parte de seu guardião.
Dessa forma, e por todo o acima exposto, REVOGO A TUTELA ANTECIPADA DE FLS. 42, e, por consequência, a internação compulsória do cidadão PETER CESAR REZENDE MOUTINHO.
Intimem-se.
ISABEL TERESA PINTO COELHO
JUIZ DE DIREITO
[1] Nesse sentido, Szasz (2010:xii) afirma não existirem doenças mentais, pois, “o diagnóstico de doença mental como desordens do cérebro não é baseado em pesquisa científica; é uma mentira, um erro, ou um restabelecimento ingênuo de uma premissa há muito desacreditada da teoria da doença”. In SZASZ, TS. The myth of mental illness. New York: Harper Perennial; 2010.
[1]
[2] O art. 1.185 do Código de Processo Civil, estabelece a possibilidade de interdição do usuário de drogas. Este dispositivo vem sido utilizado recentemente para requerer a internação compulsória de usuários de drogas por seus familiares.
[3] Por todos: Joel Birman. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2001.
[3]
[4] RELATÓRIO DA ONU. 2013. [acesso em 12 de setembro de 2013]. Disponível em:http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/RegularSession/Session22/A.HRC.22.53_English.pdf
[5] HUGHES, C. e STEVENS, A. (2007). European Monitoring Center for Drugs and Drug Addiction (2010).“2010 Annual report on the state of the drugs problem in Europe”. [acesso em 29 de agosto de 2013]. EMCDDA, Lisboa, Novembro. Disponível em:http://www.emcdda.europa.eu/publications/annual-report/2010.
[6] UN AIDS, Joint Statement (2012). “Compulsory drug detention and rehabilitation centres”. [acesso em 29 de agosto de 2013]. Disponível em:http://www.unaids.org/en/media/unaids/contentassets/documents/document/2012/JC2310_Joint%20Statement6March12FINAL_en.pdf.
[7] CONNOLLY, J., FORAN, S., DONAVAN, A., CAREW, A. e LONG J. (2008). “Crackcocaine in the Dublin region: an evidence base for a crackcocaine strategy.” [acesso em 29 de agosto de 2013]. HRB Research Series 6. Disponível em:http://www.hrb.ie/uploads/tx_hrbpublications/HRB_Research_Series_6.pdf
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