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domingo, 31 de dezembro de 2017

Luís Carlos Bolzan: 2017, o ano em que o municipalismo traiu sua história e afiançou o golpe na saúde mental, ressuscitando o inferno dos manicômios


Quem nasceu para Quirino Cordeiro Júnior (barbudo, coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde), Ricardo Barros (ministro da Saúde) e Mauro Junqueira (presidente atual do Conasems, o barbicha calvo que aparece sorridente na reunião da CIT que destruiu a política nacional de saúde mental) , nunca chegará aos pés do vanguardista médico David Capistrano Filho
O golpe não tira férias. De forma ilimitada, as forças golpistas seguem sua sanha destruidora para fazer regredir avanços técnicos e humanitários.
Na reunião de 14 de dezembro, em Brasília, a Comissão Intergestores Tripartite – CIT, se reuniu para pactuar a nova política de saúde mental do SUS.
Em pouco mais de três minutos, sem permitir manifestações contrárias, a mesa coordenadora da CIT sentenciou a volta dos manicômios ao cenário oficial da saúde brasileira.
Em conluio as três entidades de gestores do SUS: Ministério da Saúde; Conass, que representa secretarias estaduais de saúde; e Conasems, representante das secretarias municipais de saúde.
Essas três entidades – Ministério da Saúde, Conass e Conasems — selaram traição pactuada a seis mãos contra legislação federal e estaduais existentes em vários estados do país.
A nova/velha política remonta à Idade Média, e atende apelo de entidades ligadas a psiquiatria e manicômios, além de entidades religiosas que conseguiram incluir suas “comunidades terapêuticas” como integrantes da rede de atenção psicossocial/RAPS.
Segundo matéria da Agência Brasil publicada no dia 14/12/17 o presidente do CONASEMS, Mauro Junqueira, disse que “boa parte da proposta é muito interessante, tem avanços”, afirmando que mudanças não implicarão aumento de internações psiquiátricas.
Ainda segundo a Agência Brasil, o presidente do CONASEMS enalteceu pontos positivos na política pactuada como
“a criação de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) Ad-R para atender municípios acima de 500 mil habitantes, onde há as chamadas cracolândias; a criação de ambulatório de saúde mental como serviço intermediário entre a Atenção Básica e o Caps; e manutenção do valor integral do pagamento do leito psiquiátrico em hospital geral, com reajuste das diárias por paciente. Segundo o presidente do Conasems, são necessários pequenos ajustes na política, os quais têm sido dialogados com o ministério”.
Em vídeo publicado na mesma quinta-feira, o presidente nacional dos secretários municipais comemora as conquistas e omite seletivamente a inserção dos manicômios na rede de atenção psicossocial, em conjunto com as “comunidades terapêuticas”, e a previsão orçamentária milionária para custeio de ambos.
O descaso com os fatos o faz afirmar em vídeo que cumpriram compromisso de nenhum leito a mais em hospitais psiquiátricos, e silenciar sobre a união entre manicômios e Conasems.
O Ministério da Saúde, sob comando do Ministro Ricardo Barros (PP), está a serviço do golpe desde abril de 2016.
O Conass é entidade sem credibilidade dentro do SUS.
Dele, o Conass, há muito tempo pouco ou nada se espera, exatamente por jamais ter contraposto política de desfinanciamento de boa parte de seus representados, os estados, contra o SUS, sempre silenciando sobre os bilhões de reais não investidos todos os anos pelas gestões estaduais e a inclusão de gastos em saúde com serviços estranhos ao SUS, mesmo após a Lei Complementar 141/2012.
Mas o Conasems tem história. Foram as gestões municipais do SUS que sempre inovaram com práticas ousadas, tentando mudanças e avanços antes mesmo de qualquer possibilidade de co-financiamentos federal ou estaduais.
Foi assim com a implantação das estratégias de saúde da família, com práticas de promoção da saúde como atividade física no SUS, com a fitoterapia, radicalizando em diferentes formas de gestão participativa.
Foi assim também na atenção à saúde de povos ribeirinhos, indígenas, populações carcerárias, rurais, ciganos, quilombolas, pedindo por mais médicos para atender população que resultou no programa Mais Médicos.
E claro, com a reforma psiquiátrica brasileira, rompendo com práticas de tortura e reclusão insistentemente apresentadas como científicas e terapêuticas, dentre tantas outras iniciativas municipais no SUS.
No Rio Grande do Sul, os casos de São Lourenço do Sul, Alegrete e Bagé são exemplos desta vanguarda municipalista, e em Santos, a mais pesquisada dentre todas e de profundo impacto, na gestão do ex-secretário de saúde e depois do ex-prefeito David Capistrano Filho.
Pois esse Conasems, que outrora foi vanguarda e fez história, se associou ao Ministério da Saúde e ao Conass para, ao estilo sabujo, ser o afiançador político da mudança da política nacional de saúde mental, elogiando em público a medida enquanto o Ministério se escondia.
O presidente do Conasemns tem feito parecer  que valeu a pena para os municípios o acerto. E anuindo, concordando caninamente, e talvez, como deixa impressão o apoio integral do presidente da entidade, até mesmo barganhar por mais recursos para, em troca, defender o retorno da prática medieval da tortura calaboucista manicomial e entregar os usuários a pior sorte.
O Conasems é historicamente a mais plural, diversificada e democrática das entidades de gestores do SUS.
Teria a atual direção do Conasems submetido este tema aos demais gestores municipais, e toda sua ampla gama de implicações?
Teria a entidade ouvido seu qualificado corpo de técnicos/assessores sobre a “nova política de saúde mental” e o retrocesso da inclusão de manicômios na RAPS?
Ou foi uma rápida e centralizadora decisão de gabinete com seus parceiros de destruição da reforma psiquiátrica brasileira?
O Conasems associado ao Conass e ao Ministério da Saúde parece ter aplicado o método do governo golpista de comprar votos de congressistas para aprovar reformas.
Só que, em se tratando da CIT, essa postura depõe contra o Conasems, atirando-o na mesma vala comum da gestão estadual em geral e federal atual.
Ou os recursos enaltecidos pelo presidente do Conasems, bem como os serviços acrescidos servirão como cortina de fumaça para despistar o violento retrocesso que representa esta sórdida pactuação?
Como arranjado previamente, os acréscimos “benéficos” servem para tirar atenção do retrocesso brutal do abraço ao inferno dos manicômios e das “comunidades terapêuticas”?
É de entendimento pacífico entre os gestores municipais receber mais dinheiro nas contas dos fundos municipais de saúde para, em troca, sentenciar usuários de saúde mental e outros indesejados às internações em masmorras manicomiais e violências aos direitos humanos destas pessoas?
Não se pode apagar da história a marca profunda do fracasso da psiquiatria manicomial na arquitetura, funcionamento e experiência em nomes de vários hospitais psiquiátricos no Brasil.
Para quem não conhece este flagelo, pode se apropriar de parte disso lendo a obra de Daniela Arbex, chamada “Holocausto Brasileiro” (2013).
Não é ficção, mas triste e diabólica realidade, sujeita a voltar pela pactuação monstruosa e ilegal feita pelas entidades de gestores do SUS como numa confraria higienista.
A desfaçatez da escumalha manicomial é tamanha, que buscam com uma mera norma administrativa, uma portaria que resultará desta pactuação sobre a qual o Ministério da Saúde não se pronuncia, suplantar leis federal e estaduais que vigem no país.
Como se não divulgar a existência de tais leis fosse o suficiente para implantar uma portaria e tudo apagar.
A mais antiga das leis existentes no país sobre a reforma psiquiátrica, a lei estadual 9.716/1992 do Rio Grande do Sul diz explicitamente em seu artigo 3ᵒ:
“Fica vedada a construção e ampliação de hospitais psiquiátricos, públicos ou privados, e a contratação e financiamento, pelo setor público, de novos leitos de hospitais.”
A lei gaúcha não é a única, sendo seguida por um conjunto de leis estaduais com esta mesma redação.
Com a absurda inserção dos manicômios na rede de atenção psicossocial, surge o financiamento destinado pela “nova” política.
Apesar da rapidez da pactuação em meio a censura ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), ao qual esta matéria não foi submetida, a fanfarra manicomial festeja e já contabiliza a soma de R$140 milhões destinados para garantir recursos para os 159 manicômios existente no país.
Ou seriam masmorras com verniz de hospital?
Aos manicômios, instituições com registros de práticas típicas dos campos de concentração nazistas, o Ministério da Saúde e seus irmanados parceiros gestores querem presentear a milionária soma, para manter internações no patamar que estão? Obviamente que não.
Pensar como o presidente do Conasems maliciosamente sugere, é no mínimo ingênuo, para não dizer burrice, ou talvez ainda, uma tentativa de esquivar da culpa pelo desastre que sabe que acontecerá.
Todo este dinheiro servirá para ampliar internações em estruturas defasadas, nocivas e de práticas contrárias aos direitos humanos, pois a psiquiatria manicomial se sustenta nestes exemplos desde seu surgimento.
Somados aos R$120 milhões reservados para as “comunidades terapêuticas”, a orgia com dinheiro público para beneficiar manicomialistas e igrejas chega aos R$260 milhões, de recursos do SUS, em um único ano.
Aliás, como será rateado o recurso? Com quais critérios? Ou é um butim a ser dividido por ordem de chegada?
Ou ainda, primeiro para os amigos mais chegados? Para os que tem as melhores celas? Os que internam mais premiando a “produtividade”?
Ou talvez os que dão mais choques e recuperam mais rapidamente a mutilação pela lobotomia, práticas tão “brilhantemente” desenvolvidas pela “ciência” da tortura?
Nada definido pela pactuação da CIT do medievalismo. Será acertado a portas fechadas, novamente sem o controle social previsto em legislação do SUS?
Este ataque das “comunidades terapêuticas” já havia ocorrido no governo Dilma, e foi estancado pela situação irregular da grande maioria daquelas entidades.
Agora, sem apreço nenhum por “regularidades”, o golpismo se refestela no clientelismo ao melhor estilo Temer e Congresso, e abre os cofres para todo tipo de práticas destas “comunidades”, indo da reza, passando pelo “trabalho para a comunidade”, a reclusão em celas (como ocorreu em unidade deste tipo que resultou na morte de pacientes trancafiados, em incêndio no RS em 2016) até, quem sabe, o exorcismo, diante de convulsões epiléticas ou surto psicótico de algum paciente, tomado por “possessão demoníaca”.
Algumas das igrejas que mantêm estas entidades são as mesmas que defendem o obscurantismo medieval chamado “cura gay”.
Para os que ainda têm dúvidas, o internamento constitui prática de alienação antiga de afastamento, segregação daqueles considerados indesejáveis para os grupos dominantes.
Desde pobres, desempregados, famintos, pedintes, prostitutas de rua, criminosos, adversários políticos, bêbados, familiar a ser punido, serviçal a ser calado, menor abusada a ser desacreditada, os tuberculosos, leprosos, enfim, toda sorte de pessoas que “infestam as cidades e prejudicam a ordem”, incluindo por fim, os loucos somados por último aos demais grupos.
A segregação, o banimento social através do internamento para limpar as cidades da ralé que impede as classes dominantes de circularem livremente sem serem importunadas, desde muito, é prática destinada aos hospitais, grandes hospitais, que lidam com a limpeza das impurezas das classes populares, conforme demonstra a literatura, entre eles Foucault em seu “História da Loucura” (1999).
Esta prática encontrou apoio na medicina, em especial sua filha mais ideológica, a psiquiatria manicomial, como instrumento para suportar anseios morais travestidos de técnica científica, sendo um híbrido de ciência e religião, em seu tratamento moral da doença mental, e todos demais indesejados.
Usando da reclusão e tortura como práticas terapêuticas, esta besta de duas cabeças avança sobre tudo que respira e desenvolve seu intenso desejo de controle, sofrimento alheio e morte sob o manto da busca pela cura, e desprezo absoluto pelo cuidado.
Com efetivação de técnicas de suplício, choques térmicos com mergulhos alternados em banheiras de água quente e fria, acorrentamentos, camisas de força, exposições públicas, chegando os manicômios, ao refinamento tecnológico dos choques elétricos, coisa de dar inveja aos médicos pesquisadores nazistas e suas cobaias de “raças inferiores”.
A psiquiatria “curadora” chega ao seu ápice com o reconhecimento pelo prêmio Nobel de medicina para a mutilação cerebral conhecida como lobotomia, no ano de 1949, aplicada em larga escala em todo mundo para os mais diversos casos, desde irritação, crianças com déficit de atenção, depressão ou esquizofrenia, ou ainda esposa adúlteras.
Este procedimento atinge o requinte de ser aplicado com um rápido golpe de um furador de gelo na cabeça da vítima, procedimento este feito em larga escala por médico nos Estados Unidos. Os resultados foram tão trágicos quanto os do campo de Auschwitz. Nunca esquecendo que, ambientes como celas eram comuns em hospitais para pessoas indesejadas, especialmente as de isolamento, totalmente fechadas.
As instituições manicomiais e suas ideologias servem como elementos de proteção da estrutura socioeconômica, afirma Basaglia (1975).
Diante do ataque violento e covarde da pactuação tripartite, das entidades de gestores de mãos dadas contra direitos humanos dos usuários e contra a reforma psiquiátrica brasileira, não cabe recuo.
Somente o enfrentamento aos desmandos de quem não sabe ouvir, de quem não quer diálogo, é postura digna. Somente a denúncia dura e constante da traição por “dinheiros”, virando as costas para uma construção coletiva de décadas será capaz de derrubar, superar a frieza sádica do coronelismo manicomial.
As entidades de gestores do SUS fizeram seu conchavo, sem amplo e democrático debate, excluindo o controle social do SUS, e talvez excluindo seus próprios representados.
Estão na latrina da história sanitária brasileira. Fazem do SUS um “tudo por dinheiro” no pior estilo programa de auditório.
Transformam a CIT pública em espaço privado, censurado aos não gestores, para condenar, sem resistências, pessoas ao flagelo manicomial.
Ao não permitirem contraditório pensam estar mais confortáveis para lidar com barbaridades que cometeram.
Na verdade, apenas buscam adiar o inadiável, o acerto de contas com a História. Nada aterroriza mais a covardia golpista do que serem chamados do que são: golpistas e traidores.  Assim passam à História Ministério da Saúde, Conass e Conasems.
O municipalismo renuncia ao vanguardismo libertador de David Capistrano para abraçar o fracasso da psiquiatria manicomial.
Omitir o que fizeram não faz desaparecer suas culpas, mas demonstram que sabem o que fizeram e querem negar.
E se o espelho lhes negar esta visão diária de suas faces sem escrúpulos, os movimentos sociais da reforma psiquiátrica serão eternamente seus espelhos denunciando a vergonha das entidades da gestão do SUS.
A condenação à de servir como faca enfiada em suas consciências, ou do que restou delas.
A luta mentaleira vai se intensificar, pela dignidade humana. Pela eternidade sem manicômios!
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. São Paulo. Geração Editorial, 2013;
BASAGLIA, Franco. Psiquiatria, Antipsiquiatria y Orden Manicomial. Barcelona. Barral Editores, 1975;
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo. Editora Perspectiva, 1999.
Luís Carlos Bolzan – psicólogo, especialista em psicologia da saúde e mestre em gestão pública com ênfase em saúde pela FIOCRUZ. Foi secretário municipal de saúde de Novo Hamburgo/RS e São Francisco de Paula/RS, ex-presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Rio Grande do Sul – COSEMS/RS, ex-presidente do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul – CES/RS, ex-conselheiro do Conselho Nacional de Saúde pelo CONASEMS, foi diretor do Departamento Nacional de Auditoria do SUS – DENASUS/MS, e diretor do Departamento de Ouvidoria Geral do SUS – DOGES/MS.

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