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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Maria Rita Kehl: ‘O Brasil está sendo catequizado como os índios foram no século 16’

Para psicanalista, moralismo de costumes ou político de Bolsonaro e seu governo faz lembrar as Cruzadas. A política foi substituída pela moral: "Bolsonaro é a voz dos ressentidos"


A mais nova intervenção do presidente Jair Bolsonaro sobre questões relativas à chamada “moral e bons costumes”, neste quarta-feira (5), foi em defesa da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e sua pregação por abstinência sexual, no contexto pré-carnavalesco do país. Para a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl, a questão envolve ou pode envolver mais do que aspectos de ordem propriamente psicanalítica.

“Dizer que a culpa da depravação é do PT é tão ridículo que comentar é dar importância a um oportunismo mau caráter. O antipetismo virou uma espécie de bandeira que admite todas as canalhices”, diz Maria Rita.

“Quando ela fala em abstinência sexual, esculhambam ela. Quem quer? Eu tenho uma filha de nove anos, você acha que eu quero minha filha grávida no ano que vem? Não tem cabimento isso aí”, disse Bolsonaro nesta quarta-feira (5). “Essa liberdade que pregaram ao longo (do governo) do PT todo, que vale tudo, se glamoriza certos comportamentos que um chefe de família não concorda, chega a esse ponto, uma depravação total”, acrescentou o chefe de Estado.

Maria Rita analisa a questão sob os pontos de vista da psicologia, religioso e também politicamente. “Eles descobriram um nicho puritano na sociedade, de uma ala evangélica. O Brasil está sendo colonizado de novo, com esse preposto do (bispo) Edir Macedo. O Brasil está sendo catequizado como os índios foram no século 16”, diz a psicanalista.

Para ela, acreditar num “ser superior” que nos ama e que sabe o que é bom ou mal instala as pessoas “no lugar mais infantil, que é: ‘o meu pai cuida de mim, não tenho contradição, não tenho dúvidas e, se eu errar, me ajoelho e peço perdão. Isso é fascinante para muita gente, porque dá uma sensação de conforto e proteção. Freud disse isso sobre a religião”.

De outro lado, a operação Lava Jato “criou um ambiente de tal hostilidade ao PT” que esse tipo de posição, e outras, “ressoa com força, numa parte importante da população”. “O Estado, sob o capitalismo, se move com a corrupção. Tem corrupção em todos os partidos. Mas a Lava Jato serve para criar uma indignação moral no lugar da política. A ideia de que o PT devastou o país com a corrupção torna muita gente, que talvez até tenha votado no PT, muito vulnerável ideologicamente”, observa Maria Rita.

Ela cita uma frase do escritor alemão Thomas Mann para ilustrar o Brasil de hoje: “’Toda época que tem medo de si mesma se inclina à restauração’. Acho que isso explica o Brasil hoje”, afirma. “O Brasil tem medo de si mesmo, tem uma decepção, uma desilusão. O PT não pode voltar, embora a ditadura possa, porque tem gente achando bacana se ela voltar – e vai apostando no pior, no mais conservador, no mais ignorante, e tem os ressentimentos. Bolsonaro é a voz dos ressentidos.”

A mistura de religião, lavajatismo antipetista e moralismo de várias ordens formam o ambiente de hoje, em que Bolsonaro fala o que para muitos soa absurdo, mas ecoa na parcela significativa da população brasileira que ele sabe que o apoia. “Há dez anos ele podia falar essas coisas, mas não teria tanta gente concordando com ele”, observa Maria Rita. Um dos motivos desse cenário se deve ao crescimento de uma ala significativa das igrejas evangélicas. Ela ressalva, porém, que há setores progressistas e contrários a Bolsonaro nessas igrejas.

“É estranho como um tipo de fé vira um fanatismo que perde sua origem minimamente cristã. Porque, em nome dessa fé, se apoia uma pessoa que defende a tortura. Quando é que isso é cristão? Parece as Cruzadas, parece que estamos na época de matar mouros. Tem setores hoje que estão no século 14.“

Para o frei Leonardo Boff, a parcela da sociedade que, embora se professe cristã, apoia um governo que defende armar a população, tem a visão “do cristianismo tradicional” trazido pelos colonizadores portugueses.

No entanto, o fenômeno do moralismo anticorrupção, a partir da Lava Jato, só tem olhos para um lado, aponta Maria Rita Kehl. “Já tem gente que quer inocentar o Flávio Bolsonaro. Na hora de desmontar o PT, a política foi substituída pela moral. Isso é grave, do ponto de vista sociológico. Não sou a favor de corrupção e não estou dizendo que a política tem que ser amoral ou imoral, mas tem que ter sua ética. Quando a política é dominada por argumentos morais, o bom contra o mal, o certo contra o errado, fica muito fácil demonizar um grupo, porque você não está de fato debatendo.”

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