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sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O homem de 'La Rambla' e o de 'Punta Carretas' | Artigo Dr. Rosinha




Terminado o discurso, o povo —literalmente encharcado de água e também de alegria— sai, espontaneamente, em passeata por Montevidéu
 
 
Terça feira, 2 de dezembro de 2009. Antes das sete horas da manhã, caminho por "La Rambla", avenida beira rio/mar de Montevidéu. Vejo um homem sentado, de cara triste. Segura uma cordinha na mão. Na outra ponta da corda, um cachorro. Olho os dois com atenção, e imediatamente sou tomado de assombrosa dúvida: "Qual dos dois tem a cara mais triste?"
 
Continuo andando e me perguntando o porquê de tanta tristeza assim, tão cedo. Não procuro a resposta, até porque ele mesmo pode não tê-la. Às vezes, as pessoas têm a cara de tristeza, mas não são tristes.
 
Pode ser que esteja em silêncio, envolto em seus pensamentos, em seu passado, mirando "hacia dentro, hacia lo más profundo de su memória", como escreve Ernesto Sabato. E a tristeza do cachorro?
 
O homem de "La Rambla" contrastava com tudo o que eu tinha visto nos últimos dois dias em Montevidéu. Cheguei ao NH Hotel, na capital uruguaia, onde me hospedei, no domingo às seis e meia da tarde. Tinha muita gente no hall de entrada do hotel, e um clima de festa. Naquele momento, o hotel era o quartel-general da Frente Ampla. Havia no olhar e no rosto de todos e todas a expectativa alegre da vitória. Era dia de eleição no Uruguai, e esperavam o resultado vitorioso.
 
Fora do hotel, a população foi chegando e, de algumas centenas quando cheguei, até as nove da noite já eram milhares. Com bandeiras nas mãos, dançavam e cantavam. No céu, foi se armando uma tempestade, que caiu no momento em que o presidente eleito, José "Pepe" Mujica, discursava. Ninguém arredou pé. Terminado o discurso, o povo —literalmente encharcado de água e também de alegria— sai, espontaneamente, em passeata pela cidade.
 
O discurso de Pepe Mujica foi curto, não sei se pela tempestade que se desenhava e acabou desabando, ou se por outra razão. Foi como qualquer discurso vitorioso: agradeceu aos eleitores, disse que não há vencidos e nem vencedores, e que está de mão estendida para a oposição, além de outras obviedades de um discurso vitorioso. Também afirmou que quando se é veterano, experiente, pode melhor executar as coisas, tanto para o bem como para o mal. Em seguida, afirmou que trabalharia para o bem.
 
Experiência é o que não lhe falta, apesar desse item ter sido muito questionado ao longo da campanha. O Partido Nacional, de direita, fez questão o tempo todo de lembrar que Pepe foi um dos líderes do grupo guerrilheiro Tupamaros. Há os que afirmam que foi justamente essa sua experiência, e a capacidade de superar todas as dificuldades que a vida lhe armou, uma das razões da vitória.

Pepe nasceu em 1934, ficou órfão ainda criança e ajudou sua mãe a manter a casa. Na adolescência, começou a militar em organizações anarquistas. No final da década de 1950, inicia a militância no Partido Nacional (o mesmo que ele acabou de derrotar), permanecendo até o inicio da década de 1960, quando passa à União Popular, um conglomerado formado pelo Partido Socialista.
 
No final dos anos 60, Mujica entra para a organização Tupamaros e, numa ação, em 1970, é ferido —recebeu seis tiros— e preso. Foi levado à penitenciaria de Punta Carretas, onde, no mesmo local, há hoje um shopping de mesmo nome.
 
No mesmo ano da prisão, Mujica e mais 105 outros presos políticos fogem. Um mês e meio depois, é novamente preso. E depois escapa mais uma vez. Ao total, Mujica cumpriu 13 anos de prisão. Foi duramente torturado, física e psicologicamente, colocado em cela sem ventilação, quase sem água e comida.
 
Pepe é um trabalhador rural e atualmente exerce o mandato de senador. Veste-se de maneira simples: não usa gravatas e quase sempre está com o cabelo solto ao vento. Sua eleição significa mais uma ruptura na América do Sul.
 
Agora temos um operário governando o Brasil, um índio a Bolívia e um ex-guerrilheiro no Uruguai que inicia uma nova fase e enterra, pelo menos naquele país, o discurso anticomunista.
 
Será que o homem de "La Rambla" é do Partido Nacional e está triste pela derrota, ou olha para dentro no mais fundo de sua memória? Mas e a tristeza do cachorro? É solidariedade ao dono?
 
 
Dr. Rosinha, médico pediatra, é deputado federal (PT-PR) e membro do Parlamento do Mercosul (Parlasul).
 

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