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segunda-feira, 9 de março de 2009

ENTREVISTA - GUILHERME CASSEL - Carta Maior

"É preciso superar a ferida da concentração fundiária"

"O que até hoje impediu a regularização fundiária massiva na Amazônia Legal foi a legislação que sempre tratou o tema da regularização fundiária como exceção e não como objeto de uma política pública dirigida a garantir o direito à terra e o reordenamento agrário", diz o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, em entrevista à Carta Maior. Agora, com o programa Terra Legal, o governo federal quer mudar esse quadro.

BRASÍLIA - A criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) foi uma das novidades trazidas pelo governo Lula ao cenário político brasileiro. Nesses seis anos de trajetória, sob o comando inicial de Miguel Rossetto e, em seguida, de Guilherme Cassel, o MDA se consolidou como um dos principais instrumentos de aplicação das novas políticas públicas elaboradas no país para promover a inclusão social e a diminuição da pobreza, como, por exemplo, o fortalecimento da agricultura familiar e a aceleração do processo de reforma agrária.

Nos últimos meses, o MDA tem estado no centro de temas polêmicos, como a regularização fundiária na Amazônia Legal, o papel dos assentamentos no desmatamento das florestas e a disputa interna no governo ligada a esses dois temas. Outra polêmica recente é a relação do ministério com os movimentos sociais de trabalhadores rurais sem-terra, alvo da crítica dos setores mais conservadores da sociedade desde que quatro seguranças de uma fazenda em Pernambuco foram assassinados em uma fazenda ocupada pelo MST.

Nesta entrevista exclusiva à Carta Maior, o ministro Guilherme Cassel trata desses e de outros assuntos, reafirma a sintonia com o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e analisa a disputa com a Secretaria de Assuntos Estratégicos pelo controle do Programa Terra Legal, que tem o objetivo de regularizar 296 mil propriedades na Amazônia até 2011. Cassel também fala da relação do MDA com o Poder Judiciário e ressalta o papel do Incra na execução das políticas públicas. Leia a seguir a entrevista:

Carta Maior - O MDA se considera preparado para executar o Programa Terra Legal? Quais são os requisitos necessários para cumprir a gigantesca tarefa de regularizar 296 mil propriedades rurais na Amazônia Legal em apenas três anos?

Guilherme Cassel - Quando falamos em regularização fundiária na Amazônia, ninguém tem direito de vender facilidades. Não é um trabalho fácil. É um trabalho complexo que nunca foi feito pelo Estado brasileiro. O MDA e o Incra têm condições de executar esta tarefa. E a razão fundamental disso é que a legislação está mudando. O que até hoje impediu a regularização fundiária massiva na Amazônia Legal foi a legislação que sempre tratou o tema da regularização fundiária como exceção e não como objeto de uma política pública dirigida a garantir o direito à terra e o reordenamento agrário. Agora temos uma legislação moderna e adequada que nos permite fazer a regularização. Tenho convicção de que os técnicos do MDA e do Incra têm condições de cumprir esta tarefa.

CM - Ficar com a coordenação do Terra Legal foi, como dizem alguns analistas, uma vitória política do MDA sobre a Secretaria de Assuntos Estratégicos comandada pelo ministro Mangabeira Unger? Quais são hoje as maiores divergências internas no governo no que concerne às políticas para a Amazônia?

Cassel - Este é um tema polêmico que mobilizou várias opiniões. Não se trata de divergência políticas dentro do governo. Tratou-se de um debate aberto, de um debate público sobre um tema complexo onde cabiam e cabem várias opiniões. O principal núcleo do problema estava no diagnóstico. O que nós dizíamos, e se mostrou correto, é que o problema da regularização fundiária no Brasil não era um problema operacional, apenas. Não era um problema de quem iria realizar, se o Incra, ou um novo órgão federal ou o Exército. Mas o grande problema era a legislação que precisava ser atualizada. Venceu a nossa posição e foi isso que encaminhou a discussão dentro do governo.

CM - O Incra, ao lado do Ibama, é o órgão público que mais sofre pressão na grande mídia e demais setores conservadores que desejam "dirigir" sua atuação. Após seis anos de governo Lula, qual balanço sobre a atuação do Incra e sua relevância no processo de reforma agrária?

Cassel - No Brasil, propriedade da terra e poder político sempre andaram de mãos dadas. O latifúndio sempre teve um papel político muito importante e o Incra sempre foi visto por este setor como o órgão que se opõe à concentração de terra, ao trabalho escravo e à monocultura. Mas isso faz parte do trabalho do Incra. No governo Lula, o Incra mostrou que trabalha com muita eficiência, desde que haja vontade política do governo em fazer a reforma agrária. O melhor argumento para isso são os dados, os números da reforma agrária.

O Brasil tem em torno de um milhão de famílias assentadas em toda a sua história. Destas, 520 mil famílias, ou seja, 59% delas, foram assentadas nos últimos seis anos, durante o governo do presidente Lula. No mesmo período, nós já destinamos para a reforma agrária 43 milhões de hectares de terra ou 53% de tudo aquilo que foi destinado para reforma agrária na história brasileira. Fizemos em seis anos mais da metade de tudo o que foi feito desde que o país existe. É possível fazer a reforma agrária, sim. O Incra tem capacidade para fazer. A gente tem que ter, como estamos tendo, vontade política de fazer a reforma agrária no país.

CM - No primeiro mandato de Lula, a relação entre o MDA e o MMA foi de fina sintonia. Isso mudou no atual governo? Ainda existem divergências entre os dois ministérios quanto ao papel exercido pelos assentamentos da reforma agrária no desmatamento do bioma amazônico?

Cassel - A gente continua tendo uma sintonia muito fina com o MMA. Já tínhamos com a ministra Marina Silva e continuamos tendo com o ministro Carlos Minc. É uma sintonia construída a partir de um diálogo franco no enfrentamento de problemas que não são de fácil solução. Volta e meia nos deparamos com problemas que precisam ser olhados com atenção, onde a gente precisa sentar, discutir e buscar a melhor alternativa. E estamos conseguindo isso, tanto nas ações voltadas para o combate ao desmatamento e a grilagem, como na promoção da produção sustentável dos assentamentos da reforma agrária, da agricultura familiar e das comunidades rurais da região.

CM - Uma nova onda de críticas ao suposto "apoio financeiro" dado pelo MDA aos movimentos de trabalhadores rurais sem-terra surge na grande mídia após o episódio do assassinato de seguranças de uma fazenda em Pernambuco. Qual balanço o senhor faz da evolução da relação do governo federal com esses movimentos nos últimos seis anos?

Cassel - Em primeiro lugar, tenho uma posição muito clara contra a criminalização dos movimentos sociais. A História, não só a brasileira, mas a mundial, tem muitos exemplos de que quando enveredamos por este caminho isso nos leva a retrocessos e, inclusive, a tragédias. O MDA, desde a época do ministro Miguel Rossetto, e sintonizado com a postura democrática do governo Lula, tem trabalhado junto com a sociedade e os movimentos sociais. Não acredito numa reforma agrária feita a frio nos gabinetes, longe da experiência dos agricultores e agricultoras. O mérito das nossas políticas públicas é que elas têm sido construídas juntas com os trabalhadores e movimentos sociais, buscando o conhecimento e a experiência adquiridos por estas pessoas. Diálogo e participação social só contribuem. É assim que a gente trabalha e assim continuaremos trabalhando.

CM - O presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, tem manifestado publicamente diversas posições pessoais acerca do processo de luta pela terra no campo. O Judiciário é um foco de resistência às políticas levadas a cabo pelo MDA?

Cassel - Eu espero que não. A sociedade brasileira é madura e entende cada vez mais, seja no Executivo, no Legislativo ou no Judiciário e mesmo na sociedade civil, que para o país se desenvolver de uma maneira adequada ele precisa ter mais equilíbrio entre o campo e a cidade. E para alcançar o equilíbrio é preciso superar a ferida da concentração fundiária. Um país moderno, que gera emprego e renda, que tenha segurança e soberania alimentar, é um país que tem muita gente trabalhando no campo e que não convive com concentração fundiária.


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