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sábado, 29 de agosto de 2009

A escolha de Sofia // Em busca da dignidade perdida


Médicos no Nordeste lutam por melhores condições de trabalho e psicóloga paraibana propõe a criação do Índice do Atendimento Humanizado

Aline Moura no Diário de Pernambuco

alinemoura.pe@diariosassociados.com.br


A medicina convive com siglas e nomes difíceis, além das batalhas vencidas e perdidas pela vida. A lepra virou hansieníese, a paralisia infantil é chamada de poliomielite, a gripe suína se transformou em influenza AH1N1. Os nomes ganharam pompa ao longo dos anos. Os médicos não. Durante os últimos sete dias, os Diários Associados no Nordeste retrataram, de forma profunda, como anda a vida desse profissional que atua na rede pública do Nordeste, cada vez mais fragilizada. A série A escolha de Sofia, publicada em quatro jornais da região, revelou abuso de remédios na categoria, distúrbios mentais e sexuais, agressões e mortes sofridas nas emergências, doenças, pessimismo e insatisfação com o SUS. O Ministério da Saúde, entretanto, silenciou às perguntas: o que fazer, quais as saídas?

A assessoria do ministério informou que, por conta da gripe AH1N1, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, estava com "problemas de agenda" para falar sobre a roda-viva dos médicos. Dores físicas e mentais que se arrastam nos profissionais há anos e se refletem nos doentes - alguns, inclusive, com AH1N1 e que estão sendo tratados por especialistas que se tornaram pacientes do SUS. Ou seja, também estão doentes, sem tratamento, e algumas vezes "cínicos", como disse o doutor Dalton de Souza Barros, intensivista da Bahia e autor de uma pesquisa inédita sobre síndrome de Burnout, ou síndrome de desistência.

O Nordeste tem mais de 55 mil médicos, cujos problemas se refletem na população em forma de mau atendimento, greves frequentes e demissões. Na semana passada, por exemplo, uma das principais notícias que circulou nos sites da categoria em toda a região foi o pedido de demissão coletiva dos médicos de Caruaru, no Agreste de Pernambuco. Um desrespeito, um martírio para quem está do lado de fora, com dor e à espera de atendimento. Mas uma questão de dignidade, na opinião de quem trabalha nos hospitais dos SUS. Homens e mulheres que se sentem cada vez mais infelizes.

O plano B - O que fazer, então, além de esperar pela regulamentação da emenda 29, que tramita na Câmara dos Deputados desde 2003? Especialistas e estudiosos do assunto apontam soluções possíveis de executar. A psicóloga Gislene Farias de Oliveira, com doutorado na Paraíba sobre o Trabalho e o bem-estar subjetivo dos médicos, sugere que entidades médicas de representatividade, como o Conselho Federal de Medicina, criem um Índice de Atendimento Humanizado (IAH), com critérios capazes de permitir que a população saiba qual hospital trata o enfermo de forma humanizada. Assim, segundo ela, haveria um ranking negativo por estado e isso seria uma forma de pressionar os gestores. "Proponho um índice semelhante ao IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Isso seria bom para os usuários, que saberiam onde estariam pisando, e para os médicos", declarou.

Para resolver a questão da superlotação e dos baixos salários - dois pontos alegados e que causam quase todos os males físicos e emocionais dos médicos, representantes dos dois estadosmais pessimistas do Nordeste afinam a proposta. O presidente do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco, André Longo, e o presidente do Sindicato dos Médicos da Bahia, José Caíres, propõem a criação de uma carreira de estado, como acontece com juízes e promotores. "Isso estimularia dedicação exclusiva, a ida dos profissionais para o interior, tanto para as policlínicas como para os PSFs, e evitaria a sobrecarga dos hospitais da região metropolitana", declarou Longo.

Pernambuco

Infelizmente, o médico não tem tempo de cuidar da própria saúde. Há 17 anos que eu não faço um hemograma e ainda tem gente que nos agride, nos acusa de mercenário. Algumas dessas pessoas deveriam passar 12 horas numa emergência para ver quanto tempo um médico passa em pé, em quanto tempo come, quantas pessoas precisa socorrer. Teve um dia que estava tão cansado, quando ainda fazia residência, que cochilei em cima da moto e cai.

Hesíodo de Farias Neves, 49 anos, psiquiatra em Pernambuco

R. G. do Norte

O que ocorre no Hospital Walfredo Gurgel não dá para acreditar. As pessoas ficam deitadas no chão, em pedaços de papelão, jogadas como animais. Aliás, como animais não, porque, hoje em dia, tem muito animal sendo mais bem tratado do que gente. Você imagina o que é estar grávida, prestes a dar à luz, e ficar sentada num banco de madeira cheia de dor, esperando com mais 12 pessoas para ser atendida? Isso acontece direto aqui.

Júlio César Cavalcanti da Rocha, pediatra aposentado após infarto em hospital

Paraíba

Aqui, na Paraíba, temos médicos que não recebem Equipamento de Proteção Pessoal (EPI), como bata, luvas... Não é questão de preconceito, mas trabalhamos com várias doenças contagiosas e infecciosas, precisamos de proteção. O médico de UTI vive fazendo a escolha e Sofia, apostar naquele que tem mais chance de se salvar. Isso é muito cruel, muito perverso, você ser obrigado a tomar essas decisões.

José Demir, anestesista na Paraíba

Alagoas

A mortalidade dos médicos é muito grande em Alagoas, em decorrência do estresse e de acidentes de carro. Recentemente, tivemos duas mortes súbitas, um infarto e uma morte por acidente de carro quando um médico se dirigia de um plantão para o outro. Estamos à flor da pele. Em média, cinco mil cirurgias eletivas deixam de ser realizadas em Maceió porque os médicos que trabalham nos hospitais conveniados não aceitam mais fazer cirurgias pela tabela do SUS.

Wellington Moura Galvão, especialista em hematologia e hemoterapia em Alagoas

Maranhão

Cerca de 80% dos médicos processados pelo Ministério Público do Maranhão são da rede pública, trabalham no SUS. Os maiores números de processos dizem respeito aos ginecologistas e obstetras. Isso porque as pacientes peregrinam por vários hospitais e, quando são atendidas, o bebê já está passando por sofrimento. Isso é muito cruel para um médico, porque, conscientemente, nenhum vai querer deixar uma mãe e um bebê sofrer.

Deíla Barbosa Maia, médica e professora de Biotética no Maranhão

Ceará

A pressão sobre o médico é tão grande que o número de suicídios na categoria aumentou muito aqui no Ceará. Não temos estatísticas nem estudos ainda sobre isso, mas é uma realidade. A sobrecarga de trabalho é muito grande e a culpa de tudo recai no médico. Talvez porque seja mais fácil culpar só o profissional que está mais perto. O médico hoje virou paciente do SUS.

José Maria Pontes, cirurgião geral no Ceará

Piauí

Há cerca de três anos, quando fiz o concurso da prefeitura, passaram 18 médicos. Hoje, só tem meia dúzia porque os outros pediram demissão. É difícil aguentar. No hospital municipal Miguel Couto, onde trabalho, só há um pediatra de plantão. Eu fiz até uma denúncia ao Ministério Público porque um dia atendi a 158 crianças e as pessoas me xingavam de vagabundo no corredor. Pensei: "Vou ser linchado". Até agora nada mudou.

Renato Leal, pediatra do Piauí

Sergipe

Tem mães que passam 12 horas com uma criança no colo. Quem é que aguenta isso? Então, a gente atende e interna a criança, porque sabe que ela não está bem, mas a mãe não quer ficar ali, naquele desconforto, e se volta contra o médico que está atendendo. Eu me sinto vocacionada para a medicina, mas tem muita gente desistindo, porque é uma luta diária para não abandonar a família e toda vida pessoal.

Glória Tereza Lima Barreto Lopes, pediatra em Sergipe

aBahia

"Existem municípios, aqui na Bahia, que não têm um leito hospitalar sequer. O município só arca com a atenção básica, só que até isso não funciona. Nos PSFs, que recebem verba do governo federal e do município, a situação é muito precária. Como não tem concurso, o gestor recebe pressão, dá um jeito na hora, arruma um médico que fica três ou quatro meses e depois manda ele embora".

José Caíres, clínico urgentista na Bahia

Um comentário:

  1. É vergonhoso a classe médica sofrer agressões e doenças por querer trabalhar e não ter condições. Quando sempre se imagina culpa do médico, esse é o mais incapaz de resolver problemas por motivo de uma gestão que não funciona ou funciona a base da hipocrisia.

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