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sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Sigilo médico ameaçado?

por Conceição Lemes no blog da Saúde no Vi o Mundo

Hipócrates, o Pai da Medicina, já dizia há quase 2.400 anos: aquilo que o médico tomar conhecimento em razão da sua profissão é como se nunca tivesse sabido.

O Código de Ética Médica tem um capítulo inteiro dedicado ao sigilo médico. Pareceres do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) reforçam-no. É direito do usuário dos serviços de saúde ter resguardado o segredo sobre os seus dados pessoais. O princípio estende-se aos planos de saúde.

“Desde muito tempo, esse sigilo vem sendo quebrado”, denuncia o cardiologista Renato Azevedo Júnior, vice-presidente do Cremesp. “Suspeitamos que alguns planos de saúde às vezes ‘solicitam’ dados sigilosos dos pacientes. Para complicar, a TISS, em vigor desde 1º de junho de 2007, deixou os usuárioainda mais vulneráveis.”

A TISS é a Troca de Informações em Saúde Suplementar, norma da Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS), ligada ao Ministério da Saúde.

“A TISS é um dos instrumentos mais modernos de troca de informações no mundo”, rebate o médico Leoncio Feitosa, diretor da ANS. “Questioná-la por causa do sigilo não tem cabimento. Durante cinco anos, o seu projeto foi discutido com médicos, enfermeiros, donos de hospitais, operadoras. Logo, essa queixa não tem validade alguma. Por trás, deve haver algum outro interesse ou mal entendido.”

ANS E PLANOS DE SAÚDE VERSUS CONSELHOS DE MEDICINA
Sabe aquela guia que o médico do convênio preenche quando requisita exames e outros procedimentos ou encaminha você para uma especialidade?

Pois a TISS é uma guia mais detalhada do que o formulário de papel. Feita por internet, ela objetiva maior rapidez, melhor controle e identificação mais apurada do perfil de doenças que atingem usuários de determinadas regiões.

Os conselhos de medicina são contra o preenchimento do campo do CID na TISS e a ANS e os planos de saúde, a favor. CID é o Código Internacional de Doenças, estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Cada doença tem o seu número. Hipertensão arterial, por exemplo, é CID I10.

“Quebra o sigilo das informações sobre a saúde do paciente. Viola-se um princípio basilar da ética médica”, argumenta Azevedo. “Sem sigilo, não há relação médico-paciente adequada, que se baseia na estrita confiança.”

“Por que os conselhos de medicina nunca falaram nada contra o SUS [Sistema Único de Saúde], que exige o CID?”, refuta Feitosa. “Como é que o médico vai pedir um exame ou uma cirurgia e não colocar o CID na guia de solicitação? Não tem cabimento!”

“Na época, em que a guia era só de papel, o CID era opcional. Agora, na forma eletrônica, é obrigatório, mas os processos são carregados de confidencialidade. Tudo é criptografado; só a ANS vai ter acesso às informações”, prossegue Feitosa. “Quem escolhe se o CID vai ser ou não colocado na guia é o paciente e não o médico. O real proprietário do sigilo é o paciente; o médico é apenas o seu portador.”

Vamos por partes, pede Azevedo e justifica:

1ª) Uma coisa é a exigência do CID no SUS, que não vai utilizar indevidamente as informações sobre o estado de saúde dos seus usuários. Outra, bem diferente, são planos de saúde. Nosso receio é que alguns possam utilizar os dados dos formulários para discriminar pessoas com determinadas doenças. Afinal, a colocação do CID permite não só descobrir o diagnóstico mas o prognóstico das doenças.

2ª) ANS e planos de saúde alegam que a colocação do CID é importante para se ter o perfil epidemiológico dos seus usuários. Ou seja, verificar que doenças atingem mais determinadas populações, fatores que interferem na sua propagação, sua freqüência, evolução e meios necessários à prevenção. Porém, para fazer um estudo epidemiológico não é preciso identificar o paciente. Basta o informar o diagnóstico sem relacioná-lo a quem é atendido. Não é preciso quebrar o sigilo médico individual. Desde quando para se calcular a renda nacional é preciso quebrar o sigilo bancário de cada cidadão?

3ª) Ao tornar opcional a anotação do CID nas guias de papel, a ANS possibilitou que algumas operadoras exijam que médicos quebrem o sigilo médico, que é um direito do paciente. Tanto que o Conselho Federal de Medicina (CFM) teve de editar a Resolução 1.819/ 2007, que proíbe os médicos de colocar o CID e/ou diagnóstico nos formulários.

A prática, porém, tem sido outra: os planos de saúde não fazem nenhum procedimento se os médicos não colocam o CID; os que resistem às vezes nem os honorários profissionais recebem. Em conseqüência, passaram a solicitar aos pacientes a autorização para colocação do CID nos respectivos formulários.

“A maioria dos pacientes assina”, revela Azevedo.

-- Mas isso é coerção do médico sobre o paciente que, muitas vezes fragilizado pela doença, aceita qualquer coisa...

“Concordo”, resigna-se Azevedo. “Tanto que entramos com uma ação na Justiça Federal do Rio de Janeiro, sede da ANS, para desobrigar os médicos da exigência do CID, e ganhamos.”

A liminar, de caráter nacional, está em vigor. Ela decidiu que os planos de saúde e a ANS devem “se abster, permanentemente, de exigir o preenchimento da CID como condição para realização de exames e pagamentos de honorários médicos”.

PREOCUPAÇÃO MAIOR É COM OS USUÁRIOS DE PLANOS COLETIVOS
“A ANS tem de entender que a exigência do CID não se justifica”, insiste Azevedo. “Nosso temor é que as informações sejam utilizadas contra os usuários, em especial os de planos coletivos [de empresas para os funcionários], que são a maioria.”

“Tememos principalmente que os planos de saúde passem informações às empresas, levando à demissão de funcionários com certos problemas de saúde”, justifica. “Afinal, os beneficiários de planos coletivos têm menos poder de pressão que os detentores de planos individuais ou familiares, pois não são os contratantes do serviço.”

“Não há motivo para essa preocupação”, refuta Leoncio Feitosa. Primeiro, porque o representante da operadora inscrito na ANS tem senha própria e é responsável pelas informações contidas na TISS. Se houver vazamento em prejuízo do paciente, ele será identificado e sofrerá todas as sanções da lei. Segundo, como a operadora não pode romper unilateralmente o contrato nem aumentar a mensalidade a seu bel prazer, de que adianta descobrir que o paciente tem aids ou hepatite, por exemplo? Esse beneficiário não poderá ser excluído. De qualquer forma, a operadora está de mãos atadas.”

“Mas qual a garantia da ANS de que os beneficiários de planos coletivos não terão qualquer prejuízo?”, Azevedo questiona e responde. “É impossível dar essa garantia.”

Em dezembro de 2008, havia no Brasil 40,9 milhões de beneficiários de planos de assistência médica vinculados a 1.138 operadoras médico-hospitalares. Apenas 26% eram usuários de planos individuais e familiares; os 74% restantes estavam associados a planos coletivos.

O fato é que o papel institucional da ANS é defender os direitos legais dos cidadãos brasileiros usuários dos planos de saúde. E até agora ela não abriu mão do CID na TISS, posição apoiada pelas operadoras de assistência médica.

Pelo histórico dos planos de saúde no Brasil, alvo constante de queixas nos órgãos de defesa do consumidor, tem de se ficar com o pé atrás com a medida. Azevedo propõe: “É preciso pressionar a ANS para rever o CID na TISS”.

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