Jairo Bisol
“Talvez o que é propriamente científico seja destruir a ciência que precede”
Roland Barthes
A tese assente entre os teóricos do emergente direito sanitário brasileiro consiste em supor que ele está consubstanciado sobre um duplo nível sistêmico: um avançado sistema de saúde positivado num sistema de normas constitucionais e infraconstitucionais. A conclusão é inevitável: o problema crucial do SUS é o da efetivação das normas que o positivam. Em outras palavras, trata-se de um problema de aplicação do direito, seja pela via administrativa como política pública, seja no plano jurisdicional por violação decorrente de sua não efetivação administrativa.
Esta tese supõe o direito como um sistema de juízes e normas. Reduz o fenômeno jurídico ao plano normativo estatal e toma como dado objetivo um dos mais intrincados problemas jurídicos: a norma. Consolida-se, por este viés, o caminho da dogmatização do direito sanitário.
Bem observado, o texto legal constitui um conjunto de significantes e não de significados. Por mais que os significantes delimitem o fenômeno da significação, todo texto é sempre texto aberto. O poder penetra no direito posto exatamente pelo jogo da significação: a interpretação da lei. A dogmatização consiste na consolidação do texto legal como significado normativo, como interpretação autorizada estabelecida pelo poder jurisdicional e seus arrabaldes de saber: o saber magistral dos doutrinadores. Dogmatizar o direito, em síntese, é fixar jurisprudencial e doutrinariamente o sentido normativo do dogma, ponto de partida indissociável no qual as decisões devem se fundamentar – o texto legal.
A dogmática jurídica traduz-se numa sofisticada técnica de controle de significação dos textos normativos por estruturas de poder. Não por outro motivo, funciona como um instrumento de segurança para o poder, uma técnica refinada de comunicação das censuras e de adestramento político dos cidadãos. No centro desta concepção dogmática e normativista do direito encontra-se um dos mais preciosos fetiches do Estado de Direito: o conceito de norma jurídica.
A idéia de norma jurídica – a unidade estruturante do texto legal – confere à lei aparência de sistema normativo dotado de sentido objetivo: um fetiche cujo poder simbólico cumpre, entre outros, o papel de atribuir ao ato jurídico-decisório uma suposta neutralidade ética e política. Simula, a um só tempo, sistematizar o discurso da lei e emprestar controle racional às decisões: a validade da decisão decorre da validade da norma que a fundamenta.
O saber dogmático do direito camufla assim, sob a aparência de ciência, a teatralidade que envolve o discurso do poder, ocultando a finalidade política das censuras que veicula sob o argumento da racionalidade, da neutralidade e do universalismo da norma geral. Ademais, ao almejar a condição de discurso oficial, constitui-se num saber servil e obediente ao poder.
A arena da interpretação é palco de importantes jogos de poder nos sistemas de direito legislado, a batalha da significação normativa; a outra batalha lhe é anterior, e toma corpo no campo político-legislativo, onde se fixam os textos a serem interpretados. É erro tomar como definitiva vitória alcançada no plano legislativo, supondo técnica a interpretação e aplicação das leis.
Inegável a importância estratégica da batalha da significação normativa da base legal do SUS no plano jurisprudencial e doutrinário. Mas reduzir o direito sanitário a um sistema de juízes e normas significa concebê-lo numa estranha síntese entre uma concepção sanitária avançadíssima, construída pela via político-social como uma das mais ousadas e abrangentes políticas públicas de inclusão social do mundo atual e um pensamento jurídico obsoleto, calçado em pressupostos epistemológicos do século XIX. Ainda que importante, pois amplamente manejado pelos juristas, não está ao alcance deste modelo construir um direito sanitário que realize uma saúde cidadã.
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