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sexta-feira, 12 de março de 2010

A agricultura familiar e a falta de leitura


A relevância econômica e social da agricultura familiar brasileira e estrangeira, assim identificadas, está fartamente documentada e reconhecida nas estatísticas e na boa literatura técnico-científica. Quando o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes (foto), questionou a propriedade da utilização da expressão "agricultura familiar", em um artigo intitulado “Agricultura Familiar: uma leitura apressada”, creio que na verdade foi um ato falho, uma confissão, ele fazia uma auto-crítica. 
Em 24/02/2010, em artigo publicado no jornal Valor Econômico (Agricultura familiar: uma leitura apressada), o Ministro da Agricultura, Sr. Reinhold Stephanes, questionou a propriedade da utilização da expressão “agricultura familiar” para este segmento de produtores diferenciando-os dos empresários rurais. Como o próprio Ministro reconhece, o meio rural brasileiro é extremamente heterogêneo, devendo-se por isto mesmo aceitar que para mais de 85% dos estabelecimentos a agricultura é mais que um negócio, é uma forma de vida, portadora de história, sociabilidade própria e relação particular com a natureza. Portanto não é “apenas” a gestão familiar, embora esta faça muita diferença. Uma leitura apressada, pobre e errada é tentar uniformizar toda esta diversidade por meio dos produtos que geram.
Felizmente, também não é verdade que nos países avançados se verifique apenas a existência de “propriedades mais eficientes e tecnificadas”. Os crescentes problemas ambientais e de saúde criados pela “moderna tecnologia agrícola”, a importância na geração de empregos e de serviços ambientais, a preservação de modos de vida e valores culturais associados a cada região e suas formas de exploração agrícola levam a que os governos dos países “mais avançados” como diz o Ministro valorizem, protejam e estimulem seus agricultores familiares.

É falsa a oposição que sugere o Ministro entre produção, produtividade, integração mercantil e agricultura familiar. Os dados do último Censo Agropecuário divulgados no ano passado mostram que esta é responsável pela maior parte dos alimentos consumidos diretamente pelos brasileiros e adicionalmente por parte relevante das exportações. Nestas culturas sua produtividade iguala-se ou supera àquela dos estabelecimentos empresariais. Este desempenho significativo só foi possível justamente pelo reconhecimento das especificidades de suas necessidades, adequando-se as políticas de desenvolvimento rural à diversidade dos produtores e não os igualando pelos produtos que produzem através das políticas apenas agrícolas. Observe-se que esta mudança na institucionalidade pública brasileira já era prevista e amparada na Constituição de 1988 e na lei agrícola de 1991. Em 1996, fruto da pressão dos movimentos sociais rurais, criou-se o Ministério Extraordinário de Política Fundiária, transformado em 2000 no Ministério do Desenvolvimento Agrário. Enquanto existia apenas o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento este segmento de produtores sempre foi alijado das políticas públicas.

Embora cause estranheza ao Ministro, desde 2006 a categoria social e produtiva dos Agricultores Familiares está reconhecida em lei federal aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República. Se existe este reconhecimento “dentro e fora do governo” como diz o Ministro, no mínimo é para cumprir-se o que determina a lei, apesar de que, reconheça-se, esta nem sempre tem sido uma preocupação do Ministro Stephanes, pois a lei também exige a atualização dos índices de produtividade agrícola que ele recusa-se a fazer. O que temeria o produtivo agronegócio brasileiro? Ou aí sim se trata de uma birra ideológica, a serviço do atraso?

Por fim, após anos desta discussão quando parecia que a convivência entre os dois Ministérios encaminhava-se para um reconhecimento e aceitação das especificidades, uma coexistência se não sem diferenças e tensões, pelos menos respeitosa, por que o Ministro Stephanes volta a tencionar as relações? O que pretende com isto? Mostrar-se um porta-voz aguerrido do setor mais belicoso e conservador do meio rural visando as próximas eleições? Levantar a poeira de velhas arengas para acobertar outros verdadeiros problemas que continuam intocados?

A relevância econômica e social da agricultura familiar brasileira e estrangeira, assim identificadas, está fartamente documentada e reconhecida nas estatísticas e na boa literatura técnico-científica. Quando o Ministro intitulou seu artigo de “Agricultura Familiar: uma leitura apressada” creio que na verdade foi um ato falho, uma confissão, ele fazia uma auto-crítica. 

CARLOS MIELITZ Eng. Agrônomo, Doutor em Economia. 
Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

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