1984. Notificação do primeiro caso de aids em criança no Brasil. Inicialmente a transmissão é apenas sanguinea por transfusão ou produtos derivados de sangue contaminado pelo HIV, o vírus da aids.
1985. É notificado o primeiro caso transmissão vertical, ou materno-infantil no País. O HIV passa da gestante infectada para o bebê. Torna-se a causa mais freqüente de transmissão de HIV em crianças.
1996. Brasil incorpora o resultado do memorável estudo ACTG 076, feito em 1994, nos Estados Unidos. Ele comprovou que o uso do AZT pela gestante (antes e durante o parto) e pelo recém-nascido reduzia drasticamente a transmissão vertical.
O Ministério da Saúde (MS) passou então a garantir acesso ao AZT às gestantes HIV-positivas e aos seus bebês. Depois, o esquema triplo [utilização de três antirretrovirais durante a gestação], a cesariana programada e a substituição do aleitamento materno pelo leite em pó reduziram ainda mais a transmissão vertical, que pode chegar a 30%, se não houver nenhuma intervenção.
Ou seja, de cada 100 crianças nascidas de mães infectadas pelo vírus da aids, 30 podem se tornar HIV-positivas. Porém, com medidas de prevenção a transmissão vertical pode cair para menos de 1%. Em 1996, os casos de aids por transmissão vertical somaram 893. Em 2007, caíram para 369.
2010. Aids é uma doença crônica. Os portadores do HIV vivem cada vez mais. Claro que eles precisam tomar seus remédios e se cuidar. Mas têm vida praticamente normal. Trabalham, estudam, se apaixonam, mantêm relações sexuais. E, como a maioria dos casais, muitos desejam constituir família. Um direito de todas e todos.
"Em 2008, cerca de 3 mil mulheres sabidamente soropositivas e em uso de antirretrovirais resolveram engravidar", cientifica Mariângela Galvão, diretora do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, do Ministério da Saúde. "Esse é o mundo real. Não adianta tampar o sol com a peneira."
Esses dados combinados à divulgação de novos estudos científicos levaram, em 2009, o Ministério da Saúde a criar dois comitês técnicos para avaliar a gravidez dos soropositivos para orientá-los mais adequadamente. Um deles, voltado para os adultos. Outro, para os bebês. Até o final de junho, as orientações devem ser divulgadas.
No dia 4 de maio, porém, reportagem publicada pela Folha de S. Paulo deixou meio mundo aturdido. A manchete da primeira página:
O deu no Ministério da Saúde? Como estimular HIV-positivo a ter filho? Essa notícia deve estar errada? esta repórter chegou a ouvir de algumas pessoas. O Viomundo entrevistou a doutora Mariângela Galvão para esclarecer melhor essa questão tão delicada.
Viomundo – Doutora Mariângela, o Ministério da Saúde planeja estimular a gravidez em portadores do HIV?
Mariângela Galvão – De jeito nenhum. O Ministério da Saúde não estimula as pessoas a engravidar – sejam soropositivas ou não. Quem decide se quer ou não engravidar é a mulher, o casal. O que cabe ao ministério fazer é, no caso do planejamento familiar, é disponibilizar os métodos contraceptivos. E, aí, cada casal, com ajuda de um profissional de saúde, decide o que é mais adequado: o DIU (dispositivo intrauterino), a pílula ou diafragma, por exemplo? Mas todos são orientados a usar preservativo masculino – a camisinha – nas relações sexuais.
Viomundo – A manchete da Folha era mentirosa?
Mariângela Galvão – Infelizmente, sim. Faltou responsabilidade profissional.
Viomundo – A Folha contatou o ministério para apurar o assunto?
Mariângela Galvão – O jornal entrevistou uma técnica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que atua com reprodução assistida em casais soropositivos e está há um mês no Departamento de DST e Aids do ministério. A Folha disse que existe um plano pronto, o que não é verdade. Eu gostaria de deixar bem claro que as recomendações ainda estão sendo trabalhadas pelos dois grupos técnicos que criamos em 2009. Não há nenhuma definição de como serão as orientações.
Viomundo – Afinal, o que planeja o Ministério da Saúde?
Mariângela Galvão – O objetivo é que os soropositivos que desejam ter filhos engravidem em condições as mais seguras possíveis seguras para si próprios e para seus bebês. Atualmente, não há uma padronização de conduta; cada médico orienta com base na sua experiência. Além disso, receando que o médico contraindique a gestação, muitas mulheres já chegam grávidas para a consulta.
Viomundo – Quantas brasileiras soropositivas engravidam por ano?
Mariângela Simão – Em 2008, cruzando dados de testes laboratoriais, notificação de doenças, acesso a medicamentos, verificamos que 3 mil mulheres sabidamente soropositivas e em uso de medicação antirretroviral engravidaram. Esse é o mundo real. Não adianta tampar o sol com a peneira, fingir que ele não existe. Os soropositivos vivem cada vez mais devido aos tratamentos disponíveis. Eles têm vida praticamente normal: trabalham, estudam, se apaixonam, mantêm relações sexuais, se casam e querem constituir suas famílias. É uma necessidade verdadeira, como a dos demais brasileiros e brasileiras. Também um direito sexual e reprodutivo de todas e todos.
Viomundo – Na Suíça, tem aquele estudo famoso que acompanha há uns cinco ou seis anos casais sorodiscordantes [apenas um dos parceiros é HIV-positivo]. Em que ele pé ele está?
Mariângela Galvão – Na Suíça, os casais cujo parceiro soropositivo tem carga viral indetectável são orientados a não usar preservativos nas relações sexuais. Chegou a esse ponto lá. Mas é só na Suíça que isso acontece. O acompanhamento desses casais tem demonstrado que a transmissibilidade não é tão grande quanto se imaginava, quando a carga viral [quantidade de HIV presente no sangue] do parceiro soropositivo é indetectável pelos testes disponíveis.
Além disso, nos últimos dois anos saíram vários artigos na literatura científica internacional sobre transmissibilidade do HIV. Eles correlacionavam carga viral com quantidade de HIV no esperma e nos fluídos seminais, visando justamente estratégias de redução da transmissão na gravidez. Eles descobriram que quando o parceiro infectado tem carga viral indetectável a possibilidade de o outro se infectar pelo HIV é mínima e o risco de o bebê gerado por esse casal ser soropositivo é inferior a 1%.
Pois bem, juntando todos esses dados de realidade, o Ministério da Saúde resolveu criar em 2009 dois grupos técnicos, para estudar a literatura e estabelecer quais as melhores recomendações para os soropositivos que planejam ter filho. Se um dos parceiros é soropositivo, não existe risco zero. Nem para o parceiro negativo nem para o bebê, embora o risco seja menor do que 1%.
Viomundo – Quando as orientações saem?
Mariângela Galvão – Os grupos técnicos devem finalizar a redação daqui a 20, 25 dias. Até o final de junho serão divulgadas.
Viomundo – Os dois comitês técnicos do ministério devem ter ouvido vários especialistas. Daria para adiantar a tendência deles?
Mariângela Galvão – Por enquanto, não, pois, como já disse, não estão finalizadas. Mas orientações vão depender da situação do casal. Basicamente existem dois grandes grupos: casais sorodiscordantes – um parceiro é positivo e o outro, negativo; e casais soroconcodantes – os dois são HIV-positivos. Cada grupo vai abrir várias chaves. Uma coisa é quando a mulher é soropositiva, outra coisa, quando o homem é soropositivo.
Viomundo – Suponhamos que a mulher seja positiva para HIV, o marido, negativo. O uso de técnicas de inseminação artificial seria a forma mais segura de gravidez?
Mariângela Simão – Essa é uma das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). Em toda relação sexual sem camisinha há troca de fluidos e contato de mucosas. Se a pessoa infectada usa o "coquetel" antirretroviral e a quantidade de HIV no sangue está em níveis muito baixos, o risco de transmissão é menor. Porém, não há risco zero. O uso de técnicas de inseminação artificial seria a forma mais segura de gravidez: evitaria o contato direto do indivíduo HIV-negativo com uma fonte HIV-positiva.
Viomundo – E para os casais em que o homem é HIV-positivo e a mulher HIV-negativa?
Mariângela Simão – Uma das recomendações da OMS é a inseminação artificial com a lavagem do esperma para que não contenha nenhum resíduo de vírus. Esse processo reduz o risco de transmissão do HIV para a mulher inseminada e, subsequentemente, para o feto.
Viomundo – Mas a OMS tem outras recomendações?
Mariângela Simão – Sim. Uma delas: no caso de o parceiro ser negativo, colocar o esperma numa seringa e injetar na vagina. A reprodução assistida é um procedimento caro e o HIV está muito presente em países pobres, onde as pessoas não têm acesso a esses métodos. Por isso, a própria OMS coloca entre as orientações a possibilidade de uso de métodos naturais de contracepção. Aí, o casal no período fértil não usaria preservativo, desde que o parceiro positivo estivesse tomando corretamente a medicação e a carga viral fosse indetectável. Depois, como prevenção, o parceiro negativo deveria receber durante um período tratamento antirretroviral.
Viomundo – Do jeito que a Folha divulgou inicialmente pareceu que o plano do governo visaria apenas à reprodução natural entre os HIV-positivos.
Mariângela Simão – É o que a Folha disse inicialmente, mas não é verdade. Entre as orientações do Ministério da Saúde estará certamente a reprodução assistida para determinadas situações. As recomendações vão depender de diversos fatores: idade, medicação usada, adesão ao tratamento, carga viral, se o homem ou a mulher é soropositivo. O que nós queremos é que o casal passe a ser devidamente informado em bases científicas e tome a sua decisão, considerando o tamanho do risco de cada um.
Viomundo – Basicamente, o que deve constar dessas orientações?
Mariângela Galvão – Os métodos que podem ser usados, por quem, em que circunstâncias, quando. Também quando se deve esperar mais.
Viomundo – A reportagem da Folha levou o jornalista Alexandre Garcia a dar declarações mais equivocadas ainda. Quais as conseqüências de matérias como essas?
Mariângela Galvão – Infelizmente, estimulam o preconceito e a discriminação contra os HIV-positivos. Esquecem que as pessoas soropositivas têm direito a uma maternidade segura e a um filho saudável, como todos nós.
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