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quinta-feira, 6 de maio de 2010

Parteiras, heroínas da resistência



VINICIUS BOREKI na gazeta do povo
Profissão está quase extinta nos grandes centros. Mas em locais distantes elas são o único apoio para quem vai dar à luz
Elfrida, 80 anos, foi parteira diplomada por 26 anos na região do Boa Vista: de 300 a 600 partos
Elas contam os anos trabalhados pela idade dos homens e mulheres que colocaram no mundo. Atualmente, porém, sua profissão foi relegada pelo avanço tecnológico da medicina, situação proibitiva para a continuidade de seu trabalho. O crescimento dos hospitais, sobretudo nos grandes centros, facilitou a migração do parto dos domicílios para os centros de saúde, criando uma sombra sobre a figura da parteira. Apesar de a profissão estar praticamente esquecida nos municípios desenvolvidos, comemorou-se ontem o Dia Internacional da Parteira, data instituída pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1991.
No Paraná, 99,5% dos partos de hoje ocorrem nos hospitais, de acordo com a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa). As parteiras, contudo, não respondem nem sequer pelos 0,5% restantes, pois nesse índice está incluída a maioria dos nascimentos ocorridos no deslocamento para os centros médicos. Realidade diferente das regiões Norte e Nordeste, onde perto de 60% dos nascimentos acontecem nos hospitais. No interior e em locais mais distantes, é difícil mensurar a relevância das parteiras, muitas vezes o único ponto de apoio para as parturientes. Esse cenário, hoje tão distante da realidade curitibana, era recorrente na cidade há 20 anos.
Entidades sustentam presença de médico
O Conselho Federal de Medicina (CFM), a Sociedade Brasileira de Pediatria e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia sustentam a posição de que o parto sempre requer assistência e presença de um médico.
Elfrida Taborda Siqueira, de 80 anos, foi uma dessas parteiras, atuando durante 26 anos na região do Boa Vista, na capital. A simpática senhora desconhece quantos partos fez ao certo no tempo de serviço, mas estima a realização de um a dois por mês, somando entre 300 e 600 partos. “Se for mais, não faz mal”, diz. Ao lado de Elfrida, outras quatro parteiras atuavam no Boa Vista, mas todas já morreram. O diploma de parteira prática de Elfrida data de 1964, e ela seguiu na profissão até 1990. Não continuou pelas constantes dores na região lombar, pois vontade não faltava. “Não dava para ficar mais abaixada por muito tempo e estava perdendo a agilidade necessária”, relata.
Apesar de haver curso, o dom é fundamental para as parteiras, especialmente para não se desviar do caminho considerado correto. Enquanto realizava a média de um parto por mês, diariamente alguém batia na porta de Elfrida solicitando abortos. “Eu seria rica se tivesse feito o que me pediam. Mas minha consciência não teria sossego”, conta. Elfrida pediu a Deus a força para trilhar um caminho digno: “Pedi para que não passasse no teste se me pervertesse em algum momento”. Coragem é outro dos atributos necessários. “Na hora do parto, é só Deus e mais ninguém”, conta a ex-parteira leiga Zilda Aparecida da Silva, de 53 anos, que realizou 8 partos nos 17 anos de atuação.
O ideal para a parteira era acompanhar a gestação, mas, em muitos casos, era inviável. O chamado surgia só no momento do nascimento. “A gente chegava em cima da hora e fazia o parto. Quando via que (o bebê) não estava em posição, mandava para o hospital”, lembra Elfrida. Nos 26 anos de atuação, a parteira do Boa Vista se orgulha de êxito em todos. “Só em um não deu certo, mas não por minha culpa. Quando cheguei, o bebê já estava morto”, diz. Zilda também colocou todos os bebês no mundo com sucesso, o último deles há 17 anos.
Zilda sabe e aceita que sua profissão está fadada ao esquecimento, reconhecendo os benefícios da evolução tecnológica. “Hoje existem muitos recursos, além de mais médicos e enfermeiras. Com isso, o pessoal quase não precisa mais procurar as parteiras”, diz. “Mas, se precisar, estou disposta a ajudar.”
Emoção
Ser parteira é também se emocionar. Não com os nascimentos em si, mas com fatos ocorridos mais tarde. Elfrida tem vivo na memória o dia em que um homem desconhecido, com cerca de 45 anos, bateu em seu portão. Em razão da violência, Elfrida hesitou em atender, mas algo a instigou a seguir em frente. Ela não se arrependeu. “Eu havia feito o seu parto, e ele veio me agradecer dizendo: ‘Foi a senhora que me pegou nas mãos pela primeira vez’”, conta. “Eu conheço todos eles. Me chamam de mãezinha ou tia. É emocionante, um prazer muito grande sentir esse carinho todo”, afirma Zilda.
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“Elas nasceram do ventre úmido da amazônia, no extremo norte do Brasil, no estado esquecido do noticiário chamado Amapá. O país pouco as escuta porque perdeu o ouvido para os sons do conhecimento antigo, para a música de suas cantigas. Muitas não conhecem as letras do alfabeto, mas são capazes de ler a mata, os rios e o céu. Emersas dos confins de outras mulheres com o dom de pegar criança, adivinham a vida que se oculta nas profundezas. É sabedoria que não se aprende, não se ensina nem mesmo se explica. Acontece apenas. Esculpidas por sangue de mulher e água de criança, suas mãos aparam um pedaço ignorado do Brasil. O grito ancestral ecoa do território empoleirado no cocoruto do mapa para lembrar ao país que nascer é natural. Não depende de engenharia genética ou operação cirúrgica. Para as parteiras, que guardaram a tradição graças ao isolamento geográfico do berço, é mais fácil compreender que um boto irrompa do igarapé para fecundar donzelas que aceitar uma mulher que marca dia e hora para arrancar o filho à força.”
Trecho da reportagem “As parteiras da floresta”, uma de dez matérias publicadas no livro O Olho da Rua, de Eliane Brum, da Revista Época. Ela esteve no Amapá, onde 90% da população nasce da mão das parteiras. O livro foi publicado pela Editora Globo em 2008.

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