Pesquisa revela discriminação da imprensa na cobertura de desastres e sugere um ranking macabro
O professor da Universidade George Washington William Adams resolveu calcular esse valor com base na cobertura televisiva de desastres naturais. O re sultado, publicado no Journal of Communications, foi surpreendente.
“Era de se esperar que tragédias que causem 10 mil ou 25 mil mortes atrairiam e mereceriam mais atenção que aquelas que causem 300 ou mil mortes. E no entanto a estimativa de mortes explica apenas 3% da variação no tempo de cobertura que os desastres recebem nos telejornais”, escreveu Adams no estudo intitulado “Whose Lives Count?” (algo como “Quais vidas importam?”).
O ano de 1976 foi considerado por muitos como “amaldiçoado” pelo número de terremotos ocorridos.
O noticiário desses desastres, ocorridos em seis países diferentes, mostrou a desigualdade: na Itália cerca de mil pessoas morreram, mas o tempo dedicado ao fato pelos principais canais de tevê americanos foi mais de três vezes maior do que o destinado ao tremor que matou 4 mil na Guate mala no mesmo ano.
Usando um espaço mais am plo de tempo (35 desastres ocorridos entre 1972 e 1985), Adams tirou então seu cálculo (veja na tabela): a morte de um americano ou europeu equivale à morte de três europeus orientais, nove latino-americanos, 11 árabes do Oriente Mé dio e 12 asiáticos. Um macabro “ranking de sangue”.
As explicações para isso vão desde o fato de que a imprensa ape nas reflete os interesses da sociedade em geral até a ascendência do jornalista, que daria mais valor aos países com os quais tem mais afinidade.
Apesar de o estudo ter sido feito décadas atrás, o noticiário atual dá exemplos fartos de que as coisas não mudaram muito, apesar do avanço na discussão dos “direitos humanos”, que pregam a igualdade de todos os homens e mulheres.
Um caso em que o ranking de sangue ficou explícito foi o do atentado terrorista a casas noturnas de Bali, na Indonésia, em 2002. Duzentas e duas pessoas foram mortas na explosão de duas bombas, e o mundo parou para chorar e acompanhar as investigações. Depois, ergueu monumentos de homenagem. O motivo: 75% dos mortos eram estrangeiros, em sua maior parte australianos e europeus, incluindo dois brasileiros.
A mesma compaixão e horror não foram expressos a partir de 2003, com a invasão dos EUA ao Iraque e a série de atentados a bomba que até hoje ceifam vidas às dezenas em Bagdá, quase diariamente. A importância do even to só aumenta se civis ocidentais ou soldados estiverem entre os mortos.
“Outro exemplo do ranking de sangue foram os ataques terroristas de Eilat e Taba”, compara o consultor de marketing israelense Eran Ketter. No primeiro caso, o atentado resultou na morte de três pessoas que trabalhavam em uma padaria no sul de Israel, em 2007, com pouquíssima repercussão. Já no segundo, um caminhão entrou no hall do hotel Hil ton Taba, da turística Ras al-Shitan, e matou 31 pessoas, sendo 15 egípcios, 12 israelenses, dois italianos, um russo e um americano. Nem é preciso dizer que ganhou as manchetes.
Casos de polícia
A sociedade internacional também usa “dois pesos e duas medidas” em casos judiciais e de polícia. O jurista João Baptista Her kenhoff descreve em Gênese dos Direitos Humanos o que considera uma contradição dos países ricos: a plena vigência dos Direi tos Humanos quando se trata de nacionais ‘puros’, e o desrespeito aos Direitos Humanos quando as pessoas envolvidas são imigrantes ou clandestinos, minorias raciais e minorias nacionais.
Algumas vezes a discriminação acaba até sendo legalizada. Aconteceu na semana passada em Jerusalém: um homem havia se apresentado a uma mulher co mo um judeu solteiro em busca de relacionamento afetivo e os dois tiveram relações sexuais consentidas. O clima só durou até a mu lher descobrir que o amante era, na verdade, árabe. O que teria si do uma briga de casal em outro país, em Israel acabou indo à Jus tiça, que se pronunciou assim na última terça-feira: “O tribunal es tá obrigado a proteger o público de criminosos sofisticados que po dem enganar vítimas inocentes a um preço insuportável – a santidade de seus corpos e suas almas”.
O Hamas, milícia que controla a Faixa de Gaza, tenta usar essa ideia de que os israelenses seriam mais valiosos do que os palestinos a seu favor na negociação pela libertação do soldado Gilad Sha lit. Há algumas semanas, o grupo ofereceu devolvê-lo em troca não de dez ou cem prisioneiros palestinos, mas mil, levando o escritor druso Salman Masalha a questionar: “Ninguém se pergunta o que isso significa de um ponto de vista moral, em termos da forma co mo os árabes encaram o valor de cada árabe individualmente. Quan to vale um prisioneiro israelense comparado com um prisioneiro árabe ou palestino?”, escreveu ao jornal Haaretz.
O assunto pode ganhar até mesmo um teor cômico. Foi o que aconteceu há algumas semanas, quando EUA e Rússia fizeram a maior troca de espiões desde o fim da Guerra Fria. Só que desigual: foram três espiões americanos em troca de 11 russos. Questio nado, o vice-presidente Joe Biden argumentou que os americanos “eram espiões muito bons”.
Direitos na prática ainda não são iguais
A história dos direitos humanos sugere que saímos da barbárie da escravidão para a vida civilizada em que todos os homens são iguais perante a lei. Mas nem a barbárie dos antigos nem a civilidade de nossos contemporâneos se mostram absolutas.
Se no Egito antigo apenas a família do Faraó tinha direitos, e todas as outras pessoas eram es cravas, o Império Romano se ex pandiu com uma estratégia que envolvia a aceitação da cultura de outros povos e até a venda do direito de cidadania.
Avançando muitos séculos, o ideal iluminista, materializado na Constituição Francesa dos Di reitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ainda acabava fazendo certas diferenciações. Apesar de representarem um avanço rumo à igualdade, as cartas de direitos (bill of rights) das colônias ame ricanas não davam aos escravo os mesmos direitos dos homens livres.
A Carta de Direitos Humanos da ONU surge em 1948 como um marco da igualdade. “A dignidade do ser humano passa a ser o elemento essencial a ser protegido”, diz a advogada especialista em direitos humanos Chrystiane Paul.
No entanto, em incontáveis momentos esses direitos ainda são infringidos. Um exemplo são os imigrantes em nações desenvolvidas, justamente aquelas que serviram de berço à gestação dos direitos.
“Não há pudor em se discutir nos Parlamentos normas regressivas, que violam um princípio fundamental no direito internacional – o pacto de não regressão das conquistas em matéria de direitos humanos”, avalia a professora da UniBrasil Carol Proner.
“A desigualdade social, o preconceito e as discriminações de gênero, etnia e raça, assim como a falta de acesso adequado à educação e à Justiça podem ser citados como os principais fatores para que ainda não tenhamos direitos iguais”, avalia Chrys tiane.
Apesar de a imprensa por vezes reforçar a discriminação, ela é considerada relevante para combater abusos. “Vejo claramente um avanço [na conquista de direitos iguais], e os meios de comunicação difundem essas ideias, apesar das críticas”, diz o professor de Geografia da UFPR Francisco Mendonça.
“A mídia deve permitir que mais pessoas se expressem para evitar estereótipos e tratamento diferenciado”, acredita o professor de filosofia política da UFPR Emmanuel Appel.
“Apesar de toda a tecnologia, a imprensa ainda trabalha com muitos silêncios”, concorda a professora de comunicação da UFPR Rosa Maria Dalla Costa.
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