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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

CASO ROGER ABDELMASSIH: Vai cair a casa do amo?

Acompanho as práticas de Roger Abdelmassih há mais de duas décadas. Não foi preciso entrevistá-lo nem fazer plantão na clínica dele. Bastou acompanhá-lo na mídia, onde vinha desrespeitando o código de ética médica sistematicamente, expondo clientes famosos.
Na extinta revista Manchete, na atualíssima Caras, no eterno programa da Hebe Camargo, em seus trajes de dândi, desfilava propagandeando o seu negócio: fazer bebês. Quem não ficou sabendo dos "trigêmeos de proveta" do Pelé? Lembro-me, entre tantas aparições, de uma "visita" que o programa da Hebe fez à sua clínica e como foram motivo de piada as revistas Playboy na sala de coleta de esperma.
No site dessa que era a "maior clínica da América Latina", atributo repetido até hoje nos telejornais – bem ao gosto da mania guinessiana de maior-do-mundo brasileiro – a história do sucesso de Abdelmassih é contada, atribuindo-o ao "efeito Pelé". Foi através desse precioso garoto-propaganda que ele vendeu a técnica da injeção de espermatozoides dentro dos óvulos – a ICSI, usada para "tratar" problemas de infertilidade masculina. Pelé, pai várias vezes, tinha feito vasectomia.
Estou falando só de homens e espermas porque Roger Abdelmassih é urologista, e não ginecologista.

Denúncia caiu no vazio
As primeiras perguntas que se impõem são: o que fazia esse urologista distribuindo beijos carinhosos – segundo suas próprias palavras, defendendo-se! – em pacientes mulheres? Onde estavam os Conselho Regional de Medicina de São Paulo - Cremesp e o Conselho Federal que não viram a exposição de pacientes? Eles nunca leram asCaras em suas salas de espera? Onde estava a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia – Febrasgo, que nunca estranhou a defesa de famosas como Luiza Thomé indo ao socorro de um urologista que manipulava seu aparelho reprodutivo?
Mais recentemente, com a espetacularmente divulgada corrida às células-tronco e sua miraculosa capacidade de gerar lucros, Roger Abdelmassih instalou na clínica um laboratório onde se buscava desenvolver óvulos e espermatozoides a partir de dentes de leite. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária teria sido informada? Ou será que, a exemplo de mais de 85% das clínicas de reprodução – aliás, Bancos de Células e Tecidos Germinativos, como passaram a ser denominadas – não pediu licença e nem enviou seus relatórios a essa agência governamental?
Todas as clínicas integram hoje um Sistema Nacional de Produção de Embriões - SIS-Embrio. O seu, como os demais bancos, não recebeu nenhuma punição por isso?
Há cerca de dois anos atrás, convidada por Jurema Werneck e Carmen Lucia Luiz, fiz uma explanação para os componentes do Conselho Nacional de Saúde sobre as minhas preocupações quanto às consequências dessas práticas para as mulheres, postas a fabricar óvulos para a indústria farmobiotecnológica. Apresentei, inclusive, páginas da Caras com fotos da festa dos "5.000 bebês do dr. Roger Abdelmassih", onde estavam os famosos e demais clientes. Presente, um membro do Conselho Federal de Medicina. Se nunca tinha lido, leu naquele dia.
Apesar do apoio das companheiras, a denúncia caiu no vazio.

170 depoimentos sobre idoneidade
Quando finalmente explodiram as denúncias (lembrar que não bastou uma nem duas mulheres para formalizar uma investigação, mas dezenas – e bastarão?) iniciei um abaixo-assinado para ser enviado ao Ministério Público no sentido de tomar providências para responsabilizar o Cremesp por omissão. Depois de mais de 100 assinaturas, a Rede Feminista de Saúde resolveu encampar a iniciativa. A entrada e abertura de protocolo, junto ao Ministério Público, em São Paulo, e ao Cremesp, foi feita pela companheira Rosa de Lurdes. Vivendo em Salvador, não pude acompanhá-la nessa que foi uma solitária entrega.
Não sei de outros pronunciamentos ou providências cabíveis por parte de instâncias de controle social, como a Comissão de Saúde da Mulher - Cismu, do Conselho Nacional de Saúde.
Passada a emoção da notícia da condenação e lendo depois os discursos nos telejornais, fico com a forte impressão de que ele muito provavelmente não cumprirá pena. Não entendo como uma pessoa condenada a 278 anos de cadeia não oferece perigo para a sociedade e aguarda solto o recurso. Para quem, na sociedade, ele não oferece perigo? Para os homens que se omitiram todo esse tempo? Para Gilmar Mendes, que mandou soltá-lo? Para a Febrasgo, o Cremesp? Na TV, foi grande o espaço para os argumentos do advogado de defesa, de que não foram levados em conta depoimentos sobre a idoneidade do estuprador, dados por 170 testemunhas – sobretudo de maridos de pacientes, como fez questão de salientar.

Submetidas a ainda piores tempos
São as vozes masculinas sobrepondo-se às denúncias das mulheres abusadas. E, assombros dos assombros!, a sentença foi proferida – incômodo detalhe a ser suprimido – por uma juíza.
"O homem de famílias", como diz no site da clínica, o "homem dos 5.000 bebês" são falas da apropriação do processo reprodutivo pelo poder médico patriarcal, pano de fundo das técnicas invasivas e mentirosas (85% de fracasso).
Roger Abdelmassih se acha no direito pleno de beijar as pacientes. O "fazer os bebês" passa, parece evidente, pela fantasia – levada grosseiramente à prática – de fazer sexo com essas mulheres. O corpo delas lhe pertence. Como a todos os demais homens, com suas Playboys, seus "supremos" tribunais de fancaria, seus conselhos disso e daquilo, suas CPIs do aborto e seu poder de impedir qualquer mulher de se dizer dona do próprio corpo. Inclusive uma presidenta da República.
Sabemos todas que é nessa apropriação coletiva que se ancora o patriarcado. O corpo das mulheres é a primeira propriedade, garantida através da heteronormatividade. Antes de inventarem o direito à propriedade, os homens inventaram a propriedade dos direitos.
Como alertou a poeta negra, lésbico-feminista Audre Lorde, não se pode destruir a casa do amo com as ferramentas do amo. Nosso desafio é criar outras ferramentas. Urgentemente. O caso Abdelmassih é um termômetro do que vem por aí, com os talibispos fazendo dos nossos corpos o seu território de poder. Ou nos organizamos para resistir – com nossas ferramentas próprias – ou seremos submetidas a ainda piores tempos.

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