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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

MÉDICOS NA CONTRAMÃO

 
Uma das estratégias mais utilizadas em marketing de vendas é a indução da necessidade e do desejo para o futuro cliente. O primeiro passo é desenvolver uma campanha publicitária para demonstrar, por exemplo, que seu carro atual está ultrapassado, seu computador desatualizado, o guarda-roupa fora da moda, o corpo fora de forma, o lazer não tem graça etc., resumindo, sua vida não está nada boa. O passo seguinte é demonstrar que tudo pode melhorar, basta que você tenha dinheiro ou crédito para comprar.

Você resiste, resiste, resiste, mas um triste dia sua autoestima vai lá para baixo, uma vontade de chorar, sumir, desaparecer, romper com tudo. De repente, não se sabe como, provavelmente sob efeito das mensagens publicitárias explicitas ou subliminares, você é empurrado para as compras. Às vezes nem é preciso tanto sofrimento, está tudo muito bem na sua vida, mas quando você se dá conta, está entrando em um shopping e sucumbindo aos apelos do consumo.

Uma vez lá dentro, as preocupações passam a ser outras: comprar o biquini azul ou rosa, carro com cambio manual ou automático, aceitam cheque ou cartão. Na medida em que os desejos ou necessidades vão sendo supridos, a tristeza, a infelicidade, a angústia costumam ir embora. O efeito é paliativo porque daqui a pouco você será bombardeado por novas informações que mostrarão um acessório desenvolvido para potencializar a imagem, o som, a cor, a forma, o gosto, o prazer daquilo que você recém comprou. Acumula-se no subconsciente a mensagem de que ainda é possível melhorar, e assim segue a vida. Fabricantes e vendedores estimulando o desejo para que depois clientes realizem a compra. Resultado final: aumento das vendas e lucro das empresas. 


Com a saúde não funciona assim. Médicos não estimulam comportamentos nocivos à saúde para que as pessoas adoeçam e sejam seus pacientes. Imagine como seriam as campanhas: “Fumar um cigarro após as refeições traz uma sensação de bem estar”, “Andar de moto sem capacete lhe reforça a sensação de liberdade”, “Preservativos tiram o prazer da relação sexual”, “Permaneça o dia inteiro no sol e deixe suas amigas morrendo de inveja”.


  Médicos atuam na contramão desta estratégia. Ainda que saibam que a maioria dos pacientes só os procura em caso de doença, o trabalho realizado sempre é no sentido de promover a saúde, mesmo que isto lhes esvazie os consultórios e traga possíveis danos financeiros. A visão empresarial fica em segundo ou terceiro plano, a prioridade é o paciente. Mais exemplos? 

 Atender gestantes em trabalho de parto que nunca realizaram acompanhamento pré-natal é mais ou menos como vender um produto para alguém que não tem como pagar. As chances de complicação são grandes, mas o médico não se importa, vai lá e faz o parto, assumindo todos os riscos de atender uma gestação mal cuidada. Primeiro a vida, depois o resto.

Trabalhar em hospitais sem condições é parecido com vender um produto e não ter condições de entregar. O paciente é admitido na internação hospitalar e depois cabe ao médico plantonista comunicar que falta material, não existem leitos suficientes, o plano de saúde não autoriza tal tipo de tratamento. Por vezes precisa decidir quem será transferido para a CTI, quem ficará aguardando vaga, quem vai ser operado.  Mesmo assim o médico está ali, dia e noite, dando explicações, buscando soluções, atendendo, preenchendo guias...

 Focados quase que exclusivamente nos pacientes, médicos não perceberam que a saúde foi globalizada e se transformou em um grande negócio, envolvendo bilhões de dólares e interesses múltiplos. Continuaram preocupados em curar, amparar, aliviar e salvar vidas. Claro que também se preocuparam com seus honorários, mas ficaram na contramão da história. Apesar da mola propulsora da saúde ser o médico, sua posição hierárquica no “negócio saúde” foi caindo gradualmente até o ponto em que hoje, a gestão da saúde está praticamente na mão de administradores que decidem onde, como, quando e quanto ficara para o povo.

Numa época em que a classe médica sofre cobranças de governo, administradores e pacientes, sempre é bom lembrar que na visão dos médicos, pacientes não são encarados como consumidores comuns do mundo empresarial. A expectativa de cura não pode ser e nem é tratada como um negócio. A vida, a saúde, a compaixão tem a prioridade. Será que os médicos estão mesmo na contramão? A multa está sendo paga por eles, mas por enquanto, o dinheiro ainda não apareceu na saúde.


Ildo Meyer é palestrante motivacional e médico com especialização em anestesiologia e pós-graduação em Filosofia Clínica pelo Instituto Packter.

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