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segunda-feira, 28 de março de 2011

QUEM DEVERIA REPRESENTAR OS USUÁRIOS NAS INSTÂNCIAS DE CONTROLE SOCIAL DO SUS?


por Alcides S. de Miranda, Conselheiro Titular no Conselho Nacional e Saúde, representante do CEBES no segmento de Trabalhadores de Saúde
Prolegômenos
Ciente dos questionamentos acerca da natureza, caráter de legitimidade e perfil de representação de interesses dos chamados “usuários” no âmbito das instâncias de Controle Social do Sistema Único de Saúde (SUS), notadamente nos Conselhos de Saúde, resolvi emitir algumas opiniões que, evidentemente, são vistas de um ponto e perspectiva.
Trata-se, pois, de reflexões e discussões acerca dos dilemas e desafios da inserção e interação entre atrizes/atores, grupos e modalidades de representação de interesses em sistemas institucionalizados de ação, sob a tensão dialética entre democracia representativa e participativa, entre formalidade e informalidade, entre poderes e tempos políticos, técnicos e administrativos…
De início, parece que não existem fórmulas prontas ou receitas inequívocas (salvo aquelas típicas dos discursos mais panfletários) para se definir os melhores modos e meios de representação de interesses em instâncias ambivalentes por definição (participação/representação) e plurais por natureza. Trata-se de representação polifônica de interesses variados e diversos (singulares, particulares, corporativos, gerais, com pretensões de universalidade), que subjetivamente se imbricam e se imiscuem entre si, sob a égide da esfera pública. Em outros termos, torna-se muito difícil classificar ou catalogar a priori, a proeminência original da expressão ou a legitimidade de defesa de um determinado interesse, porque muitas as pretensões de legitimidade vezes pode estar escudadas sob a égide pública, para se advogar interesses particulares ou específicos (o que não os torna, por isso, menos legítimos).
Em princípio, o que pressupõe, mas não garante aprioristicamente, a legitimidade na representação de interesses diversos e plurais (privados/públicos, singulares /particulares/gerais/universais) são a preponderância do interesse público e a maior transparência dos espaços sociais da esfera pública, seus processos e práticas de (inter)mediações políticas realizados às claras.
São evidentes e proeminentes as distorções, equívocos e vícios existentes em tais espaços, processos e práticas de representação e intermediação de interesses na esfera pública. Não poderia ser diferente, quando se trata da constituição histórica de atrizes/atores sociais com competências parciais para o exercício de ações sociais e representação de interesses sob constrangimentos normativos e em contextos (inter)institucionais; com motivações e (pre)tensões de protagonismo político, capacidade de expressão e interlocução, díspares estatutos; gradientes de poder (de natureza também diversa, plural e complexa) e margens de autonomia. Quando se trata de enredos políticos contraditórios, tramas e dramas estratégicos em curso, movimentos e manobras circunstanciais.  Em outras palavras, quando se trata do mundo real, de pessoas reais e de interações políticas sob tensões normativas, aquém das formas do pretérito imperfeito ou mais-que perfeito do indicativo.
Em termos de representação legítima de interesses nos espaços ou instâncias da esfera pública, eventuais vícios de origem e equívocos devem ser corrigidos na medida em que são reconhecidos, submetidos ao crivo da crítica, da discussão política e deliberação transparente. O que só é possível se a prerrogativa e o estatuto de legitimidade estiverem substancialmente apostos aos processos e práticas democráticas nos referidos espaços e instancias. Definir, qualificar e classificar preliminarmente o perfil e estatuto de legitimidade para determinados Atrizez/Atores destes espaços e instâncias também implica num risco e dilema: quem isoladamente teria a prerrogativa para emitir tais juízos e classificações de caráter legítimo, em se tratando de representação de grupos de interesses? Quem detém a legítima e inata onisciência, clarividência e juízo de valor para classificar unilateralmente os representantes puros e os impuros dos interesses públicos?
Daí, pois, que é tão importante, quanto aferir e qualificar o estatuto de legitimidade de uma dada representação, realçar as prerrogativas de legitimidade, abertura e transparência dos processos e práticas de representação de interesses e (inter)mediações políticas em espaços e instâncias da esfera pública.
As instâncias de Controle Social do SUS conformam, mesmo que potencialmente, espaços da esfera pública, onde as condições ideais de democracia participativa, abertura, transparência e legitimidade na representação de interesses ainda não estão plenamente dadas, talvez nunca estejam. Tais condições são constituídas historicamente à duras penas, em processos contraditórios, mas essencialmente pedagógicos. Uma pedagogia que emerge e é mais bem produzida a partir de críticas francas, leais e construtivas.
Mas afinal, quem deveria representar os usuários nas instâncias de Controle Social do SUS?
Em se tratando da representação de interesses de usuários do SUS em suas instancias de Controle Social, quais seriam as possíveis leituras e interpretações do (con)texto normativo que versa sobre tal assunto?
Há uma propensão inicial de se caracterizar tal identidade, legitimidade e representatividade de representação de interesses de usuários a partir do discurso normativo da exclusão pela negação, da afirmativa de uma negação. Teriam tal prerrogativa e estatuto, os não-profissionais de saúde, os não-gestores ou não-gerentes, os não-prestadores de serviços… Trata-se de legítima interpretação, inclusive embasada em uma dada leitura da lei 8.142, que estabelece a estratificação e proporção da representatividade formal. Nesta interpretação, o estatuto de representatividade estaria dado pela natureza corporativa do sujeito em sua atividade presente (uma vez profissional de saúde, gestor ou prestador em atividade, não poderia representar o interesse de usuários) ou tipo de instituição representada, não propriamente pelo engajamento, ativismo ou militância do mesmo.
Entretanto, outra leitura e interpretação pressupõem que tal estatuto de legitimidade nas representações de interesses deriva também de um princípio de alteridade, refere-se mais a uma condição de confiança que é estabelecida pelos próprios Movimentos Sociais. Ou seja, se os movimentos e suas instituições possuem pretensão de legitimidade para representar os interesses dos usuários do SUS, seus representantes escolhidos também teriam.
É imprescindível observar o (con)texto normativo em voga e, ao mesmo tempo, reconhecer que o mesmo não pode dar conta da complexidade e dinâmica das representações de interesses sociais. Então, torna-se necessário um arbítrio mais dialético e permanentes mediações políticas sobre tais questões. Inclusive, as contradições dialéticas entre formalidade e informalidade de representação política.
Convém resistir à tentação de se imaginar e instituir, também a priori, a pretensão inata de universalidade na representação de interesses dos usuários. Trata-se também de interesses de grupos com necessidades e demandas específicas ou particulares, sob a égide da esfera pública. Do pressuposto de universalidade inata e originalmente vinculada ao estrato de representação de interesses públicos, pode advir o preconceito de representatividade inata… de difícil precisão e de lamentáveis exemplos históricos. Em certa medida, trata-se de certo purismo preconceituoso, pois, ao instituir um estatuto de representatividade inata dos usuários pelos “usuários puros”, destitui dos Movimentos Sociais a prerrogativa e legitimidade de definir quem pode, ao seu critério e em dado momento, representar melhor os seus interesses.
É claro que a afirmação anterior também guarda certo grau de ingenuidade e pode soar como purismo, pois alguém pode afirmar: pelo Brasil, afora e adentro, gestores e corporações manobram e manipulam representações ao seu bel prazer. É certo, mas quem disse que a constituição e interveniência de razões, modos, meios, processos e práticas de democracia participativa, perante à institucionalidade do mercado político, seriam fáceis ou garantidas somente pela instituição de leis e normas? Quem propugnou que os tempos de instituição de enredos e cunhas de democracia participativa corresponderiam às expectativas de uma geração?
É certo que podem existir dificuldades e problemas de legitimidade ou representatividade de interesses de usuários em inúmeras instâncias de Controle Social do SUS, inclusive no âmbito do próprio Conselho Nacional de Saúde. A maior parte destes problemas ou dificuldades advém de posturas e atitudes ilegítimas ou não representativas, muito mais do que de vícios de origem inata. Contudo, tal constatação não desqualifica tais instâncias ou os processos de participação e representação em curso. Pior do que a eventual “ilegitimidade” de representação inata, pode ser a ilegitimidade de pretensões de unilateralidade, ensaios de opacidade ou atitudes de tutela para com os Movimentos Sociais.
Em todo o caso, é sempre bom retomar tal discussão. Não para depurar a “ilegitimidade” de representações inatas ou imprecisas, nem tampouco para constranger e desqualificar eticamente importantes lideranças comprometidas com o SUS, mas para reiterar o caráter de tensão democrática permanente, necessária em instancias desta natureza.
Não preconizo e nem defendo representações espúrias, manobras ou manipulações de quaisquer interesses legítimos, somente busco chamar a atenção para o necessário cuidado e comedimento no trato com questões de tal ordem. Há que prefira posar de paladino da razão e do interesse públicos, mas talvez a razão e construção democráticas possam prescindir de personagens de tal monta.
Ao longo de seu curto período de existência, o Conselho Nacional de Saúde tem lidado com problemas e dificuldades deste tipo. Muita discussão política, negociação, mediação e acordos têm sido efetivados para (re)compor as representações de interesses dos diversos Atores/Atrizes sociais implicados no Controle Social das políticas públicas de Saúde. Talvez não seja o suficiente para contemplar algumas expectativas mais exigentes ou apressadas, mas trata-se de construção concreta e cotidiana, sempre a requerer mais firmeza e maior transparência, com tolerância e  humildade para se lidar e compartilhar  com o aprendizado democrático.

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