Entre 1999 e 2001, ex-prefeito Cassio Taniguchi (DEM) anistiou de forma ilegal mais de meio milhão de multas de trânsito registradas por radar; deputado Dr. Rosinha (PT-PR) critica pagamento à Consilux e vê conexão entre a fraude e as eleições de 2000
O Ministério Público (MP) do Paraná exige na Justiça que o secretário de Planejamento do governo Beto Richa (PSDB), Cassio Taniguchi (DEM), devolva R$ 141,9 milhões aos cofres públicos da Prefeitura de Curitiba.
O valor se refere a infrações de trânsito registradas por radares controladores de velocidade da empresa Consilux entre os anos de 1999 e 2001. Na época, o então prefeito Taniguchi promoveu uma anistia de mais de 546 mil multas de radar, ilegalmente convertidas em “notificações educativas”. Em 2000, ele foi reeleito, tendo Richa como vice-prefeito.
A ação civil pública do MP tramita em fase inicial na 2ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba. Também é réu no processo o ex-presidente da Urbs --empresa que gerencia o transporte e o trânsito da cidade-- , Fric Kerin.
Conforme a Promotoria de Proteção ao Patrimônio Público, o ex-prefeito Taniguchi e Kerin, na condição de autoridade executiva de trânsito, cometeram atos de improbidade administrativa que causaram prejuízo ao erário e atentaram contra os princípios da administração pública.
“Por ação dolosa dos requeridos Cassio Taniguchi e Fric Kerin, o município de Curitiba deixou de arrecadar a quantia de R$ 69.819.232,03 em multas de trânsito, em valores da época que, se devidamente atualizados, correspondem a valores de R$ 141.975.131,77”,diz trecho da ação do Ministério Público.
A investigação, que durou mais de cinco anos, começou em maio de 2004, quando o então vereador Adenival Gomes (PT), que hoje integra a assessoria do deputado federal Dr. Rosinha (PT-PR), protocolou um pedido de providências ao MP. Em setembro de 2009, a promotoria ingressaria com a ação civil pública.
Uma auditoria do MP apontou que, de setembro de 1999 a setembro de 2001, foram emitidas 546.787 “notificações educativas”, aptas a gerar multas por infrações de trânsito, mas que não foram aplicadas. Os motoristas só eram multados a partir da terceira infração de trânsito.
“Além de não aplicar as multas e abrir mão ilegalmente de uma renda pública, a Prefeitura de Curitiba ainda pagou R$ 3,7 milhões à Consilux, o que comprova que, em época eleitoral, Taniguchi e Richa fizeram, sim, cortesia com o chapéu alheio, com o dinheiro público de todos os curitibanos, inclusive de quem não tem carro”, observa Dr. Rosinha. “Está comprovado que a vitória apertada do ex-PFL e do PSDB, nas eleições municipais de 2000, foi baseada numa fraude, num rombo milionário aos cofres públicos.”
Em valores atualizados para o mês de junho de 2009, o valor pago à Consilux –-após solicitação administrativa aprovada pela prefeitura apenas depois da eleição-- atinge R$ 6,5 milhões. O MP pede ainda a devolução deste valor, caso a Justiça não condene os réus a reaver a renda que seria obtida com a devida aplicação das multas ilegalmente anistiadas.
Interesse eleitoral
O primeiro contrato da Prefeitura de Curitiba com a Consilux foi firmado em julho de 1998. O contrato previa que a empresa seria remunerada com o pagamento de R$ 9,50 por “infração com imagem digitalizada” - na época o pagamento era vinculado ao número de infrações.
“A contratada somente poderá pleitear os pagamentos dos serviços que resultem em imagens digitalizadas após o efetivo recebimento das multas por parte da Urbs”, dizia trecho do contrato.
Ocorre que, em entrevista coletiva à imprensa, realizada em agosto de 1999, Cassio Taniguchi e Fric Kerin determinaram que as sanções somente fossem aplicadas a partir da terceira notificação do infrator. “Tal determinação foi tomada sem que houvesse edição de ato administrativo”, aponta o MP. “Não houve ato administrativo e inexistiu qualquer publicação oficial.”
“Com a sistemática das “notificações educativas”, o requerido Cassio Taniguchi não buscou qualquer finalidade pública em sua ação, mas, ao contrário, buscou, especialmente, não desgastar seu nome e sua administração às vésperas de uma campanha eleitoral, eis que candidato à reeleição [...]”, diz outro trecho da ação do MP.
Assinam a ação civil pública os promotores Paulo Ovídio dos Santos Lima, Cláudio Smirne Diniz, Adriana Rabello Câmara e Danielle Gonçalves Thomé.
“A não emissão de mais de meio milhão de multas pelos radares certamente teve impacto na opinião de parte dos eleitores curitibanos em 2000”, avalia Dr. Rosinha.
O que diz a legislação
O Código de Trânsito Brasileiro somente admite a substituição de multas por advertências em casos de infrações de natureza “leve” ou “média”. No caso das infrações por excesso de velocidade, cujas multas são “graves” ou “gravíssimas”, --conforme o percentual acima da velocidade permitida-- , não existe previsão legal para nenhum tipo de anistia.
De acordo com a lei federal de número 8.429, em vigor desde 1992, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa, Taniguchi e Kerin estão sujeitos, além do ressarcimento dos prejuízos, à perda da função pública, suspensão por até oito anos dos direitos políticos e pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano, ou de até cem vezes o valor do salário recebido na época dos fatos.
Conforme a Constituição Federal, ações de ressarcimento de danos ao erário público são imprescritíveis.
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Legislação citada no processo
Código de Trânsito Brasileiro:
“Art. 267. Poderá ser imposta a penalidade de advertência por escrito à infração de natureza leve ou média, passível de ser punida com multa, não sendo reincidente o infrator, na mesma infração, nos últimos doze meses, quando a autoridade, considerando o prontuário do infrator, entender esta providência como mais educativa.”
Lei de Improbidade Administrativa:
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
[...]
VII - conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;
[...]
X - agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público;
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
[...]
IV - negar publicidade aos atos oficiais;
Art. 12 Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:
[...]
II - na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;
III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
Mais trechos da ação do Ministério Público:
“Resta evidente que lei não permitia ao administrador público, uma vez definida a forma de fiscalização do trânsito e constatada a infração, deixar de aplicar a penalidade prevista, podendo, apenas nos casos de sanção leve ou média, substituí-la por advertência de caráter educativo.”
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“O princípio da legalidade foi ferido na medida em que os réus Cassio Taniguchi e Fric Kerin, com consciência e em colaboração praticaram ato em desacordo com previsão legal, qual seja, Cassio Taniguchi determinou que fossem lavrados notificação e eventuais autos de infração apenas a partir da terceira infração às normas de trânsito captadas pelos equipamentos de fiscalização de velocidade, incumbindo ao requerido Fric Kerin a implantação do sistema”
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“Estabeleceu-se, no município de Curitiba, ao arrepio da lei, e ausente qualquer ato administrativo formal, verdadeira hipótese de não incidência da sanção administrativa aos infratores de trânsito.”
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“Não se preocuparam os requeridos em avaliar o impacto financeiro da medida, em verificar o montante de dinheiro que deixaria de ingressar nos cofres públicos, ou o numerário que seria devido à empresa contratada[...]”
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“[...]O contrato original da Consilux com o município previa o pagamento àquela empresa apenas dos autos de infração efetivamente pagos. Ou seja, das multas pagas pelos infratores, ou seja, do patrimônio dos motoristas infratores é que sairia o numerário para o pagamento da Consilux. Porém, com a adoção do sistema de “notificação educativa”, toda a sociedade, todos os cidadãos, mesmo aqueles que nunca tenham dirigido um automóvel, acabaram por arcar com a recomposição do equilíbrio econômico financeiro do contrato da Consilux [...]”
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“Dessa falta de planejamento, restou ao erário municipal enorme prejuízo, que foi dividido entre todos os cidadãos[...]”
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“[...] a ação dos requeridos Cassio Taniguchi e Fric Kerin foi de tal forma ineficiente que acabou por: 1) diminuir a arrecadação do município; 2) obrigar a dispender recursos públicos para o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado com a Consilux, tudo para: 1) a satisfação de poucos motoristas infratores das normas de trânsito; e 2) evitar maior desgaste da imagem do requerido Cassio Taniguchi às vésperas de eleição municipal, tudo em detrimento do conjunto da população.”
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“O sistema de duas notificações educativas, se fosse legal (o que, como visto, não é), somente poderia produzir efeitos após publicação de ato administrativo assim determinando, o que não foi feito.”
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“A consciente determinação e implantação, pelos requeridos Cassio Taniguchi e Fric Kerin, respectivamente, de verdadeiro caso de não incidência de norma punitiva federal de trânsito, deixando de autuar e impor as penalidades previstas em lei aos infratores de trânsito, infringe o devem de bem administrar.”
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“A consequente negligência na arrecadação de renda pública por parte dos requeridos Cassio Taniguchi e Fric Kerin, ensejando perda patrimonial ao município – decorrente não só do que se deixou de arrecadar, mas, também, do que se despendeu em favor da empresa Consilux – , prejuízo esse, lembre-se, suportado por toda a sociedade e não apenas pelos infratores, revela pouca preocupação para com o interesse público.”
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“Os requeridos concederam a milhares de motoristas infratores benefício administrativo – instituindo verdadeiros casos de não incidência de multa de trânsito – ao arrepio das normas do Código de Trânsito Brasileiro, especialmente de seu artigo 267, que permitia a substituição da multa por notificação educativa apenas nos casos de infração leve ou média, e ainda dependendo do caso concreto.”
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“Os requeridos provocaram prejuízo de R$ 69,8 milhões[...] violaram, a um só tempo, os princípios constitucionais da legalidade, da publicidade, da moralidade e da eficiência, praticando ato de improbidade administrativa.”
Matéria do jornal Folha de S.Paulo:
Curitiba paga R$ 3,7 mi de multas anistiadas (6.mai.2004)
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