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quarta-feira, 4 de maio de 2011

Corações partidos e petrificados

LIGIA BAHIA no Blog do CEBES
Por trás dos rompantes lamentando a impossibilidade de todos os brasileiros terem o mesmo atendimento à saúde que curou alguns ou permitiu-lhes viver mais e melhor, nota-se alívio, culpa e compaixão. Entretanto, os espíritos elevados, especialmente os que animam autoridades públicas submetidas a terapias caras e prolongadas em estabelecimentos privados, logo intuem que os custos envolvidos com determinadas doenças, que acometem mais as pessoas de menor renda, não teriam, por ora, como ser financiados. Contidas pelo cálculo, essas bondosas emanações não irrompem; ficam pairando por aí, para retornar quando alguém importante tiver um problema grave de saúde e for sacudido por fortes sentimentos de finitude e semelhança com os demais mortais.

A experiência com a oferta de tecnologias médico-hospitalares abrigadas em espaços fortemente demarcados por diversas barreiras discriminatórias, entre as quais a cobrança de valores muito superiores à capacidade de pagamento da maioria da população, confunde a ordem dos fatores. A variedade dos especialistas mobilizados para cada caso, o uso de equipamentos modernos e a sofisticação de espaços físicos propositalmente adaptados para a exclusividade dos atendimentos induz a troca entre causa e efeito. Passa-se da certeza sobre a existência de tudo isso, porque é para poucos, para a conclusão: é melhor possuir uma medicina considerada de Primeiro Mundo, mesmo inacessível para a maioria. Não há quem em sã consciência discorde dos argumentos sobre a importância de determos expertise e recursos similares aos dos mais renomados templos internacionais de cura. Entretanto, para a saúde, nem tudo que é bom é caro e privativo. Os dispêndios vultosos tornam-se, quase sempre, subsidiados por recursos públicos. Por essas razões, a estratificação social não impede a vigência dos sistemas universais de saúde em diversos países desenvolvidos. Neles, existem instituições públicas e privadas, desde os anos 70, encarregadas de regular o acesso e utilização de tecnologias para todos.
No Brasil, tentamos seguir o modelo geral, mas com uma inversão no fluxo dos recursos: o público corre para o privado. As estratégias para a obtenção de benefícios particularizados, legitimadas por instâncias públicas, desfavorecem a transformação de interesses em direitos. Para contornar o problema das desigualdades geradas politicamente, descarta-se a saúde da lista de prioridades e afirma-se a eficácia de soluções administradas com conta-gotas. O dano causado por tais tergiversações é imenso. A sobrevida média de uma pessoa com câncer nos países europeus, Canadá e nos EUA fica entre 12 e 14 anos; e, no Brasil, entre 2 e 4 anos. Com bons tratos, um número ínfimo de nativos atinge o escore estrangeiro. Para a maior parte dos pacientes, o diagnostico tardio e as dificuldades de acesso oportuno ao tratamento diminuem as chances de sobrevivência.
Esses fatos, embora bastante conhecidos, sequer triscam disparidades acumuladas ao longo de décadas. O temor da padronização, em especial no que se refere à assistência médico-hospitalar, é profundamente arraigado entre integrantes de segmentos de maior renda. Qualquer gesto direcionado a estabelecer como, onde, para quem e o que será financiado com recursos públicos assusta. É interpretado como ameaça de rebaixamento de um padrão assistencial desejável exatamente por permitir a reserva antecipada dos melhores lugares. Quem supõe "segurar" um plano de saúde na mão pode permanecer indiferente ou mesmo indisposto frente aos desafios de desbloquear os obstáculos para compatibilizar o direito à saúde com o desenvolvimento econômico e social do Brasil contemporâneo.
As tarefas de estabelecer, aproximar e ordenar uma relação consequente entre a ciência, a técnica, a resolução de problemas e a construção de um país mais democrático competem ao governo, aos partidos políticos, às entidades profissionais, empresariais e a outras organizações da sociedade civil. As pressões de vários mercados pela incorporação de tecnologias caras e nem sempre custo-efetivas impactam o orçamento da saúde. É a avaliação da efetividade das tecnologias que auxilia a fundamentação de propostas de racionalização das decisões e práticas. Maximizar o acesso e a qualidade dos serviços de saúde, explicitando fontes e volume de gastos, bem como a destinação dessas despesas, será um fardo bem leve, comparado ao peso incomensurável da negação monossilábica ao acesso, ao atendimento.
A legislação brasileira nos resguarda das rudes polêmicas sobre o conselho independente de especialistas - que basearia sua atuação nas evidências sobre a segurança e efetividade de tecnologias proposto pelo governo Obama. Opor as concepções sobre a escolha individual do consumo de serviços de saúde à da organização de um sistema social que lida com a vida e a morte parece primevo. Já superamos, pelo menos formalmente, esse estágio.
O SUS tem muitos significados. Mas nenhum deles franqueia a apropriação por poucos do acervo coletivo de conhecimentos e atividades disponíveis para evitar riscos, restabelecer a saúde, evitar a dor e o sofrimento. A institucionalização de um processo permanente de avaliação de programas, serviços e tecnologia para a saúde, articulado com a regulação de preços, devolve-lhe seu sentido conflitivo, de espaço de passagem do individuo ao cidadão e progressão da garantia e expectativas de direitos à saúde. Esse é o melhor remédio para prevenir corações partidos e curar os petrificados.
LIGIA BAHIA é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Fonte: O Globo - 02/05/2011

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