Cotista da Baixada Fluminense vence preconceito e decide trabalhar no Programa Saúde da Família
Márcia Vieira - O Estado de S.Paulo
Entrar para a Medicina da Uerj exigiu tantos sacrifícios que Euclides Colaço queria ficar longe de confusão pelos seis anos seguintes. Negro, pobre, morador de Nilópolis, município da Baixada Fluminense famoso por ser berço da escola de samba Beija-Flor, Colaço só conseguiu passar depois da terceira tentativa. Na primeira, não acertou nem 20% da prova, o mínimo exigido para cotistas.
Aluno da rede pública, Colaço chegou ao vestibular com graves deficiências em física, química e matemática. Foi no cursinho pré-vestibular para negros e carentes mantido pela ONG Educafro, defensora ativa da política de cotas, que Colaço ouviu falar em ótica e outros fundamentos da física pela primeira vez. Até ser aprovado, passou três anos no curso, aprendendo não só trigonometria como noções de antropologia e sociologia.
A convivência com a turma da Uerj foi tranquila - mesmo com alunos que eram publicamente contra cotas. Duro foi conviver com o que Colaço chama de "falsos cotistas". "Essas pessoas que burlam a lei me incomodam muito. A gente fica sabendo quem entrou por cota. Mas, conforme vai convivendo, vê que o estilo de vida não condiz com a renda declarada", conta. Os sinais de riqueza são claros. Férias de verão em Ibiza, esqui em Aspen, carro novo na garagem.
No quarto ano, não se conteve. Num debate sobre questões cotidianas no centro acadêmico veio a provocação. "A entrada dos cotistas não interfere na qualidade da universidade. Mas essa questão sempre volta nas discussões", lamenta. Diante de 300 pessoas, bateu boca com um aluno do último ano, um falso cotista.
Colaço apelou para a ética. "Como pode alguém se tornar médico se entrou na faculdade usando uma mentira? Do outro, a resposta padrão que tanto irrita Colaço. Burlar o sistema é uma forma de protesto para evitar que pessoas "menos capacitadas" entrem para a universidade. A discussão esquentou, mas a turma do deixa-disso entrou em ação para acalmar os ânimos.
Da capacidade de um cotista se formar médico, Colaço nunca duvidou. "Quem acredita que o vestibular separa o joio do trigo não precisa se preocupar com cotas. A universidade vai eliminar os que não conseguem aprender." Mas no terceiro ano passou por uma crise que quase o fez abandonar o curso. "Me sentia inferior aos outros. Eu estava tirando notas baixas nas provas, corria o risco até de repetir." Demorou a perceber que a razão era a falta de tempo para estudar. Além da faculdade em horário integral, Colaço dava aulas particulares para garantir a passagem de trem, as refeições na faculdade e os livros. Ainda ensinava, de graça, no curso pré-vestibular comunitário.
Residência. Colaço só não largou a faculdade graças ao apoio dos amigos, cotistas e não cotistas. Uma delas, Monique Barreto, negra, cotista e uma das melhores aluna da turma, foi fundamental. Quando começava a se lamuriar sobre seu sentimento de inferioridade, ouvia da amiga um "cala a boca e estuda". Ele obedeceu.
No sexto ano, teve sua segunda crise. Na hora de escolher a residência, sua vontade era fazer medicina de família, que atende principalmente pessoas carentes nos serviços de Programa de Saúde da Família. Titubeou quando começou a ouvir: "Ah, você não quer estudar, né?" Medicina de família ainda é considerada, mesmo entre muitos médicos, como medicina simples para pessoas simples com médicos simples. "Não é isso. É uma atenção primária que resolve 87% do agravo de saúde das pessoas e desafoga postos de saúde e emergências dos hospitais."
No final, falou mais alto a vocação e o apoio do melhor amigo, Rodolfo Deusdará, um não cotista que está fazendo residência em medicina de família, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Dinheiro nunca foi o mais importante para mim. Eu quero trabalhar onde eu realmente faça a diferença."
A vida da família Colaço já deu um salto. Hoje, ele ganha três vezes mais do que na época em que dava a volta na cidade com suas aulas particulares. Quando terminar a residência, pode ganhar mais de R$ 10 mil como médico do Programa Saúde da Família.
A principal recompensa pelo esforço que ele e toda família fizeram nos últimos seis anos foi a noite de 15 de dezembro de 2010. Uma van alugada levou até a casa de festa no Recreio dos Bandeirantes, a 70 quilômetros de Nilópolis, a mãe, a madrinha, os três irmãos, a professora do maternal e outra do ensino médio para assistir à formatura. "Fizemos uma dívida absurda", lembra.
Os gastos chegaram a quase R$ 4 mil, incluindo a compra de um vestido vinho longo para a mãe e o aluguel de um smoking para o formando e de três vestidos para as professoras e a madrinha. Tudo dividido em suaves prestações. A choradeira da família foi a prova de que valeu a pena.
Nenhum comentário:
Postar um comentário