Luís David Castiel, médico pesquisador do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública – Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz)
Programas de check-ups desnecessários, dietas hiper-restritivas, exercícios em quantidade exagerada e tratamentos ditos “preventivos” crescem de maneira exponencial no mundo. Cercar-se de cuidados para evitar riscos em saúde tem se tornado um modo de vida cada vez mais adotado pelas pessoas. Estas atitudes revertem em mais saúde, certo? Para o médico Luís David Castiel, pesquisador do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), a resposta é “não necessariamente”. O pós-doutor pela Universidade de Alicante, na Espanha, acaba de lançar o livro Correndo o Risco, pela Editora Fiocruz, escrito em companhia dos doutores em Saúde Coletiva Maria Cristina Guilam e em Saúde Pública Marcos Santos Ferreira. Nele, analisa a origem do conceito de risco em saúde e de que maneira pode acarretar problemas ao invés de mais qualidade de vida. Confira a entrevista:
Há atualmente uma supervalorização no conceito de risco em saúde?
Este conceito teve início em meados do século passado, em relação a estudos epidemiológicos que indicavam os riscos do hábito de fumar. Mas apenas na década de 1980 ela surge no âmbito da Saúde Pública, em relação à saúde materno-infantil, quando se buscava conhecer as ameaças à saúde da gestante e da criança com a finalidade de preveni-las. Depois, surgiram as pesquisas sobre o risco de desenvolvimento de doenças degenerativas. Hoje a noção de risco em saúde foi bastante ampliada – a ponto de haver estudos se referindo à ‘epidemia de risco’ nas revistas médicas.
Em quais situações a preocupação com o risco não se justifica?
Há condições potencialmente complicadas para se administrar: a velhice é inevitável e é fator de risco para muitas doenças; há epidemias com novas cepas de bactérias ou tipos de vírus que nos levam a ter reações de alarme que podem ser desmedidas; há uma tendência à patologização do sedentarismo, quase como se fosse uma pré-doença; paira uma constante ameaça de contaminação de alimentos por agrotóxicos e de efeitos adversos pelo uso de medicamentos.
O risco está diretamente relacionado ao medo?
Há uma aproximação íntima com ele. Afinal, o risco em saúde trata da finitude de nossas vidas, em última análise. O conceito serve a um desejo ou projeto de longevidade com qualidade de vida. É inegável que se vive mais tempo hoje, e que a idéia de prevenção está ligada a isso, mas cada vez mais parece que vivemos em um ambiente de ameaças à saúde que podem ser capazes de nos surpreender, o que pode gerar um excesso de prevenção.
Esse tipo de comportamento pode gerar problemas?
O ambiente de risco pode gerar situações de ansiedade e até causar adoecimentos em algumas pessoas. Para alguns, manifestar alguns sintomas é como entrar em um ‘trem-fantasma’: uma caverna escura que não se sabe se está de fato mal–assombrada ou se será apenas um susto e logo se chegará à saída.Como não se sabe se sairá bem ou mal, até o fim da viagem a pessoa é afetada pela ansiedade. Por este motivo há um autor espanhol que fala do nível de prevenção quaternária. A primária é a profilaxia e detecção precoce, a secundária é o tratamento e a terciária, de reabilitação. A quaternária seria a prevenção contra os excessos das intervenções de saúde, que podem surgir pelo uso abusivo e errado dos serviços de saúde. Não faço elogios à displicência em relação à saúde, mas um ambiente de exagero preventivo pode dar margem a problemas obsessivos: em exercícios físicos o exagero pode significar um estado chamado vigorexia, a preocupação excessiva com a alimentação saudável é vista como ortorexia e, até mesmo podem acontecer estados de hipocondria – preocupação excessiva com doenças. A supervalorização indiscriminada do risco pode causar transtornos aos modos possíveis de levarmos nossas vidas.
O que influencia diretamente nesse exagero?
Entre outros aspectos, em torno dessa preocupação crescente há interesses de mercado. Existe uma indústria da prevenção que envolve o segmento de alimentos, de exercícios físicos, de medicamentos preventivos. Em suma, de diversas intervenções e práticas que vendem produtos em nome da prevenção. Como este conceito está muito associado à noção de segurança, podemos comparar às medidas tomadas para conter os riscos de violência onde há toda uma gama de precauções, alarmes e sistemas de vigilância.
Atuar na prevenção gera mais tranquilidade?
Sim, quando isso significa um aparente controle do que se passa com a nossa saúde. Seria negligente criticar os exames anuais de próstata e de colo de útero, por exemplo, mas diante de todos aos check-ups passíveis de se fazer para a manutenção de saúde, não há como dar conta dessa insegurança de modo sustentado, até porque o risco está no âmbito das probabilidades. Mesmo com reduzidas probabilidades, algumas pessoas podem ser atingidas por eventos indesejados. O check-up não garante incondicionalmente a proteção. Pretende-se crer que há formas de se controlar as contingências que podem nos afetar, mas elas, muitas vezes, escapam do nosso domínio. Há um pressuposto complexo nas medidas de prevenção em massa: como se fôssemos todos equivalentes, iguais nas nossas suscetibilidades e propensões ao adoecimento. E isto não é assim. Mesmo em número reduzido, sempre há fumantes que não serão afetados pelo câncer de pulmão.
Evitar comportamento de risco não garante o retorno esperado?
Sim, pois os estudos que determinam o grau de risco de algo mostram o que acontece com grupos expostos a riscos comparando com não-expostos. Mas não sabemos exatamente o que vai ocorrer em casos individuais específicos. Além das vicissitudes probabilísticas, em nome da prevenção, somos pressionados a acreditar e a fazer atividades que demandam esforços e restrições que podem não ser fáceis de serem mantidos.
Mas há medidas preventivas que funcionam.
Apesar de existirem dúvidas se de fato alguns medicamentos ou medidas protegem na medida esperada, temos de admitir que, se tomarmos determinados riscos em termos específicos, é possível defini-los, descrevê-los, desenvolver estratégias de proteção e prevenção e estabelecer sua eficácia. Agora, quando juntamos os muitos riscos acumulados aos quais podemos estar expostos e correspondentes medidas de prevenção, a situação deixa de ser razoável, pelas dificuldades de seguirmos a todas as recomendações. Aí, para se viver, seria necessário incluir uma sucessão de muitas terapias e ações preventivas.
O que isso altera na vida da pessoa?
Do ponto de vista social, a idéia de risco pode chegar a ordenar a vida das pessoas, tanto no sentido de seguir as recomendações de prevenção, como no de não obedecê-las. Inclusive, pessoas aparentemente saudáveis podem passar a ficar preocupadas por não haver garantias incondicionais de que continuarão com saúde. Em excesso, essa preocupação é capaz de configurar a própria subjetividade do indivíduo, influenciando decisões cotidianas sobre alimentação, exercícios, sexo e demais hábitos.
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