no Blog Saúde com Dilma
Na última semana, Gilson Carvalho interpelou Heider Pinto sobre a portaria que reformulará a atenção básica e está por sair. Por email, Gilson solicitou ao diretor do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, que esclarecesse alguns aspectos da portaria que estavam gerando polêmica, em particular aqueles que alteram a obrigatoriedade dos membros das equipes cumprirem 40 horas.
Veja abaixo o e-mail de Heider em resposta aos questionamentos de Gilson:
por Hêider Pinto- Diretor do Departamento de Atenção Básica / Secretaria de Atenção à Saúde / Ministério da Saúde
Veja Gilson, esta Portaria está sendo discutida desde janeiro, pois já naqueles primeiros dois meses nos deparamos com três situações:
1- Reunião do COSEMS [Conselho de Secretários Municipais de Saúde] do Nordeste que cobrava um solução para a situação de irregularidade da Estratégia de Saúde da Família vivida pelos Municípios já que a minoria dos médicos estavam efetivamente 40 horas nas equipes;
2- Reunião com bancada de parlamentares e associações de prefeitos. Estes faziam a mesma cobrança e ameaçavam descredenciamento do "programa", dizendo ainda que iam adotar lógica "variante" mais barata e que não seria SF;
3- Minuta de Portaria pronta, na agulha para ser assinada que previa equipes sem médicos.
Pois bem, debatemos muito no Colegiado do Ministério e junto à Presidência e entendemos que medidas estruturais deveriam ser tomadas para o problema da distribuição, provimento e fixação de profissionais. Permitir equipes sem o mínimo, ou seja, sem médico, sem ACS, sem dentista, sem enfermeiro não é justo nem seria correto, uma vez que a gente sabe que reduz muito o impacto e a resolutividade da equipe. Além do mais, haveria uma tendência de vários lugares concentrarem os médicos em pronto atendimentos no centro da cidade e deixar equipes sem médicos na periferia. Não faríamos isso e, portanto, a solução teria que ser outra.
Assim, foi realizado o Seminário de Provimento e Fixação de Profissionais que propôs ações (algumas delas já concretizadas, outras já iniciadas) dirigidas à ampliação de vagas de graduação e pós-graduação; regulação e mudanças de regras das residências; benefícios para o profissional que atue em áreas de difícil atração e fixação; Telessaúde e apoio clínico; desprecarização das relações de trabalho; carreiras, etc. etc. etc.
Na sequência, mudamos as regras do SCNES (sistema de cadastro nacional de estabelecimentos de saúde) e vimos que quase um terço das equipes poderiam ficar irregulares caso mantivéssemos essas regras. Elas não estavam dando conta da realidade, por serem por demais rígidas e já eram criticadas há muito tempo, tanto pelos gestores como pelos médicos.
Como evoluiu o debate?
Avançamos nas medidas estruturantes em parceria com o MEC e, em paralelo a isso, no espaço tripartite, avançaram três debates e proposições:
1- Era desejável no contexto da articulação e integração da Atenção Básica com a Urgência, que diversos profissionais pudessem estar inseridos em ambas, cumprindo suas funções em dois pontos do sistema, sendo responsáveis pela atenção em um mesmo território (Helvécio [secretário de atenção à saúde] chama isso de dupla inserção territorial).
Assim mudamos a antiga redação que permitia que 8 horas das 40h obrigatórias pudessem ser dadas em plantões em hospitais de pequeno porte e residência em saúde da família. Ampliamos a residência para especialização e também para outras atividades de educação permanente formais e ofertadas pela gestão municipal. E ampliamos de urgência de HPP para urgências em geral da rede municipal de modo que pode ser numa UPA, no SAMU hospital mesmo que não seja um HPP, etc.
2- Para locais que têm médicos como os grandes e médios centros, mas que os mesmos não optaram por estar na saúde da família pela OBRIGATORIEDADE de inserção em tempo integral, havia uma demanda forte dos gestores e dos profissionais para que outras inserções fossem permitidas.
Os dados dos Observatórios de Recursos Humanos e os dados atuais derivados do mercado de trabalho médico e do histórico de inserção destes profissionais nos mostraram que uma alternativa para estes lugares era permitir inserções de 30 e 20 horas, mas sem reduzir a quantidade de horas por habitante.
Muitos médicos não atuam na atenção básica pela obrigatoriedade das 40 horas, mas poderão passar a atuar caso essa carga horária seja mais flexível.
Várias experiências nacionais e internacionais, de hoje e de ontem, nos mostram que não é obrigatório, para se ter vínculo e longitudinalidade do cuidado, fazer coincidir (como é norma na 648) a adscrição do usuário com a adstrição territorial identificada com uma equipe formadA por 1 profissional de cada profissão.
Hora, é obvio que podemos ter equipes responsáveis pelo território, desenvolvendo ações de promoção da saúde, de prevenção de doenças e de vigilância, em conjunto, em equipe para todas as pessoas do território. Ou não dá para compartilhar e dividir o trabalho nos grupos educativos, nas ações na comunidade, nos grupos de caminhada, nas atividades de sala de espera, na rádio comunitária, nas práticas corporais, etc etc etc.?
Além disso, ter mais de um médico na mesma equipe permite que o usuário escolha a quem quer se adscrever (o que pode ser chamado de captação, embora eu localize este termo em outro contexto conceitual), constituindo vínculo com a equipe e, em especial, sendo cuidado longitudinalmente por um profissional. Isso introduz elementos interessantes na gestão dos processos de trabalho e na própria gestão do trabalho, pois isso tem que ser avaliado: ora, definindo mínimos e tetos de adscrição por profissional é interessante ver se os usuários querem se adscrever àquele profissional mesmo ele estando no teto ou se querem se "des-adscrever" daquele profissional mesmo ele já estando no mínimo e, supostamente, com agenda menos cheia, podendo oferecer atendimento com menor tempo de espera.
Enfim, tem muito pano para avaliação, discussão e qualificação do processo de trabalho aí meu caro Gilson…
Pois bem, estamos muito atentos ao que as pessoas vêm fazendo concretamente nesse Brasilzão e, neste momento, propomos duas possibilidades de inserção, com 20h e com 30h sendo que em nenhuma delas pode-se: reduzir o tempo de horas médicas por habitante; abrir mão do trabalho em equipe, da responsabilidade compartilhada pelo território e da adscrição que "personaliza" os cuidados além de potencializar a longitudinalidade.
Essa proposta foi apresentada em abril pelo Ministério para debate no GT [grupo de trabalho] da CIT [comissão intergestores tripartite] com participação do CONASEMS [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde] e CONASS [Conselho Nacional de Secretarias de Saúde], além de ter sido discutida em sua primeira versão na Câmara Técnica que reuniu presidentes de COSEMS e Coordenadores Estaduais de Atenção Básica.
O problema que foi identificado em dois médicos fazendo 20 horas é que eles podem não se encontrar, podem ter dificuldades objetivas, de horários, de se constituir como equipe. Daí que é central garantir isso, é central o papel articulador do enfermeiro e também por isso que a inserção de 40h e 30h é financeiramente mais estimulada que a de 20 horas.
3- Para locais com dificuldades de médicos, além das ações estruturantes que citei acima (que são as que impactam de fato o problema), era necessário dar um outro tipo de solução para os locais que, mesmo com todo o esforço, o gestor não consegue manter médicos de 40 horas e não tem a menor condição de arrumar o dobro de médicos ainda que sejam de 20 horas.
Pois bem, não admitimos a solução de uma equipe incompleta, sem um dos profissionais, então propomos uma equipe transitória com uma quantidade de horas de médico por habitante na metade do recomendado.
Esse profissional não vai conseguir fazer o que se espera do processo de trabalho de um médico de família, mas na situação de saída de um médico de uma equipe, o gestor pode atrair um outro para a inserção de 20h ou mesmo conseguir que outro atue 20 horas em dias e UBS [unidades básicas de saúde] diferentes.
A vantagem ante não ter médico é óbvia: a equipe consegue acolher os casos, estratificar risco e definir um fluxo de atendimento deste profissional para os casos com maior necessidade, pois todos os dias em um turno ou pelo menos em 3 dias da semana teremos o profissional lá. Daí a importância de se definir protocolos que empoderem a atuação da equipe, definindo fluxos de retaguarda para os períodos em que o médico não está lá.
Mas é claro que o repasse para esta equipe não pode ser o mesmo da outra, pois na completa o gestor tem um custo muito maior. Portanto, garantimos um financiamento de modo a não comprometer os recursos que devem ser destinados ao restante da equipe, mas estimulando claramente a equipe completa, com destinação DE mais ofertas, pois é só a completa que pode participar do PMAQ e até dobrar os seus recursos. A de transição é de transição, situação aquém do recomendado para um período x no qual se está tentando adequar a situação.
Claro também que esta equipe não pode ser feita ao leo, ou seja, só uma proporção das equipes podem ser transitórias. Daí que foi feito um corte populacional no qual, no máximo, metade das equipes dos municípios pequenos podem ser de transição. (mas quanto mais completas, melhor o financiamento). Nos municípios maiores, apenas 10% das equipes podem ser de transição, pois cidades como Belo Horrizonte, Rio, Curitiba, Recife, Fortaleza, etc. têm problemas de fixação nas periferias e áreas mais distantes ou violentas.
Enfim, Gilson, este foi o espírito desta Portaria que tentou ampliar o leque de possibilidades a fim de contemplar o que já vem acontecendo no exercício concreto da Saúde da Família no Brasil. E importante: sem abrir mão de nenhum princípio e valorizando o diálogo tripartite e com quem vem enfrentando estas dificuldades e trabalha na SF no dia e dia. Buscamos, todos, enfrentar alguns problemas que, se negligenciados, poderiam culminar em uma fragilização da Estratégia Saúde da Família, provocada por todos aqueles que criticavam a diferença entre a norma e a prática. O problema é que esta diferença tem gerado irregularidades, ilegalidades, descrédito e desconfiança "se a SF dá mesmo certo ou não" e colocado em dúvida se a SF será mesmo consolidada como lógica de nossa Atenção Básica.
Assim, se queremos uma Atenção Básica e Saúde da Família mais cada vez mais forte, efetivamente como a principal porta de entrada da rede de atenção, cada vez mais acessível, universal, acolhedora, ampla, resolutiva e coordenadora do conjunto da rede de atenção, temos que dialogar com esta realidade e construir soluções que contemplem as especificidades em todo o país, com arranjos e soluções distintas que tem se adequado e funcionado em cada lugar.
Resolve completamente? Não! Mas melhora muito em relação ao que temos, dá fôlego para as medidas estruturantes e não penaliza nem o restante da equipe (que tinha seus recursos cortados), nem a população, na medida em que permite a expansão do acesso real!
Meu querido Gilson, estou por aqui, sempre, para o que der e vier. É só provocar!
Abraços!
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