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sábado, 6 de agosto de 2011

‘Não é verdade que o Brasil gaste muito em políticas sociais’



Neste mês de agosto o Blog Além de Economia em conjunto com o site da revista CartaCapital realiza uma série de entrevistas com economistas respeitados e renomados para que possamos debater e compreender a crise pela qual o mundo está passando em oposição ao crescimento e certo desenvolvimento econômico e social brasileiro.
Para inaugurar essas entrevistas, convidamos a professora Rosa Maria Marques, economista com pós-doutorado na Faculte de Sciences Economiques da Université Pierre Mendes France de Grenoble; professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Marques foi presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e integrante da Comissão de Orçamento e Finanças do Conselho Nacional de Saúde. É autora de vários livros, sendo o mais recente O Brasil sob a nova ordem. Atualmente está desenvolvendo Estágio Senior na Universid de Buenos Aires, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Confira abaixo a entrevista:
Além de Economia/CartaCapital: As políticas públicas como saúde, educação, previdência, transportes etc. são importantes para elevar o bem estar e qualidade de vida das pessoas. Entretanto, alguns economistas afirmam que o Estado brasileiro gasta muito com essas políticas e de forma irracional. Qual saída poderia ser adotada para ampliar o acesso à esses serviços públicos sem necessariamente aumento de impostos?
Rosa Maria Marques: Em primeiro lugar, não é verdade que o Estado brasileiro gaste muito em políticas sociais. No caso da saúde, por exemplo, segundo Organização Mundial da Saúde, os países que oferecem um sistema público universal (como é o caso do SUS), tais como Reino Unido, Suécia, Espanha, Itália, Alemanha, França, Canadá e Austrália, destinaram em média, em 2008, 6,7% do PIB. No mesmo ano, o gasto do Brasil, somando as três esferas de governo, foi de 3,24%. O mesmo acontece com a educação e com a previdência.
Agora, o problema de acesso é diferente. Na saúde, é o seu principal problema. Principalmente nas capitais e nas grandes cidades, os usuários enfrentam problemas de acesso para os níveis de média e alta complexidade, mas não necessariamente para a assistência básica. Já nas pequenas cidades, a dificuldade de acesso anterior se soma ao fato de que os equipamentos desses níveis de atenção estão concentrados nas maiores cidades. Esse é o principal desafio a ser respondido na área da saúde. Mas enquanto o SUS continuar a depender em grande parte dos serviços prestados pelo setor privado, é difícil resolver esse problema. Isso porque o setor privado que é conveniado ao SUS atende simultaneamente os planos de saúde e os particulares (com os quais ganha mais) e tende a fazer seus investimentos nos grandes centros do país. Há um outro aspecto que vale à pena ser mencionado: o fato de que parte do gasto das famílias com os planos de saúde e com medicina privada é pago pelo governo federal, mediante o desconto do imposto de renda. De certa forma, o Estado brasileiro garante parte da demanda dos planos de saúde.
O problema de acesso à previdência decorre de como ela foi pensada ou construída: em cima do mercado formal de trabalho. Quem não tiver carteira assinada está, por definição, dela excluída. E a existência de uma informalidade expressiva entre os ocupados sempre foi uma marca de nosso mercado de trabalho. Mesmo que nos últimos anos a informalidade tenha caído, ela continua importante. Assim, para melhorar o acesso, não basta apenas apostar na formalização das relações de trabalho, é preciso se pensar em um outra forma de organização da previdência que leve conta não só o critério meritocrático – de ter um trabalho formal – e sim incorpore o critério fundado na cidadania.
Acabei tratando apenas de duas políticas públicas, pois cada uma delas é bastante complexa. Se fôssemos falar da educação, precisaríamos definir de qual nível estamos falando.
AE/CC: A crise financeira e econômica pela qual a Europa está passando é devido a construção, desde a Segunda Guerra Mundial, do chamado Estado de bem estar social? Se o Estado brasileiro aumentar os gastos públicos, principalmente os sociais, não estaria trilhando o mesmo caminho?
RMM: Em hipótese nenhuma, respondendo às duas questões. A crise da Europa, mas também dos Estados Unidos, deve-se ao crescimento desenfreado do capital fictício, isto é, daquele que busca ter lucro com a compra e venda de ativos, sem nenhuma relação com a produção. O problema dos países europeus, que ora estão em dificuldade, não foi provocado pelo gasto corrente de seus estados e sim pelo setor financeiro, principalmente pelos bancos. A questão é que esse setor não aceitou internalizar as perdas da crise de 2008/2009. Não esqueçamos, por exemplo, que o crescimento mais recente do endividamento norte-americano foi devido à “ajuda” que o Estado deu ao setor financeiro.
AE/CC: Recentemente a Presidenta Dilma lançou o programa Brasil sem miséria, cujo objetivo é retirar da pobreza extrema 16 milhões de brasileiros(as) até 2014, é uma medida audaciosa ou tímida?
RMM: Nem audaciosa e nem tímida. Trata-se do prosseguimento do Programa Bolsa Família. Em junho deste ano, o Bolsa Família abrangeu 12.436.167 famílias. Este programa de fato melhorou a vida de seus beneficiários (das famílias pobres e muito pobres), mas não foi associado a outras políticas que alterem as condições da reprodução da pobreza no país.
AE/CC: Como uma estudiosa e especialista em Previdência, pode-se comparar as reformas realizadas na Europa com a brasileira? Há ainda necessidade de se reformar o sistema previdenciário brasileiro?
RMM: Há um aspecto que é comum, isto é, a constante preocupação em aumentar a idade de acesso à aposentadoria. Esta é a pior ironia que pode haver, pois o aumento da expectativa de vida deveria ser bem visto pela sociedade, já que se trata de uma conquista de toda a humanidade. Mas o que acontece é o contrário: viver mais passou a ser visto por alguns como um fardo e um privilégio.
Se alguma mudança deveria ser feita na Previdência brasileira, seria a incorporação de todos os cidadãos em sua cobertura. Para isso seria necessário se pensar em um novo desenho de seu sistema, o que envolveria repensar suas fontes de financiamento, sem abandonar a participação das contribuições sociais.
AE/CC: No que diz respeito ao financiamento público de saúde, quais são os entraves para universalizar o sistema e com qualidade?
RMM: Em parte já respondi a essa questão na primeira parte, mas faltaria mencionar o fato de que até hoje a participação federal em seu financiamento não foi devida. Trata-se da Emenda Constitucional 29, que está a anos em compasso de espera para ser apreciada no Congresso.
AE/CC: Que papel o programa Bolsa-Família tem na conjuntura política e econômica brasileira?
RMM: O Programa Bolsa Família é um programa relativamente barato. Em 2010, seu gasto representou 0,37% do PIB. Contudo, seu impacto é bastante significativo, não só porque diminuiu a pobreza absoluta e relativa (de 2003 a 2008, a população abaixo da linha de pobreza caiu 12% para 4,8%; pobreza, de 26,1% para 14,1%), mas porque tem um efeito multiplicador grande no entorno de onde as famílias beneficiárias vivem. Há cidades onde os recursos desse programa são bastante importantes, quando comparados aos recursos próprios e às transferências constitucionais recebidos por esses municípios.
Em termos políticos, o Bolsa Família – assim como outras ações empreendidas durante o governo Lula – permitiu a construção de uma nova base de apoio, diferente daquela tradicionalmente compreendida pelos movimentos sociais e pelos sindicatos. Em 2008, publiquei na Revista de Economia Política, junto com outros colegas, um estudo que relaciona o Bolsa Família e os resultados das eleições de 2006. Seus resultados são bastante interessantes e instigantes.
AE/CC: Em 2010, a sra. e um conjunto de economistas lançou o livro “O Brasil sob a nova ordem”, pela editora Saraiva. Que nova ordem estamos vivendo?
RMM: Trata-se do fato de, nas últimas décadas, o capitalismo ter sido dominado por aquilo que se costuma chamar de capital financeiro, mas que, para ser mais precisa, seria pelo capital fictício, isto é, pela face mais perversa do capital financeiro. Isso significou que sua lógica de curto prazo foi imposta às empresas industriais e comerciais, deprimindo o investimento, reduzindo os salários na maioria dos países, piorando as condições de trabalho, e promovendo a retirada de direitos sociais, entre outros impactos.
Levando em conta essa lógica, o livro analisa como a adoção das recomendações do chamado Consenso de Washington modificou profundamente a economia, desde sua estrutura produtiva à política econômica centrada nas metas de inflação, como também alterando o papel do Estado, as políticas públicas, entre outros aspectos.

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