Nelson Bedin no Saúde com Dilma
“Navegar é preciso; viver não é preciso”. Bela e poética ambiguidade produzida pela semântica do vocabulário “preciso”. Preciso pode ter o significado de exato, mas pode estar associado à ideia de necessidade. Navegar, para os portugueses era mais vital do que a própria vida. Isso porque a vida não seria possível, caso as navegações não lhe dessem suporte. Ou, em contrapartida, navegar exigia instrumentos de precisão, para garantir sua segurança; enquanto a vida, não há como assegurar que ela será segura.
Encontramo-nos diante de uma situação, no setor saúde, em que se pode parafrasear o famoso verso: “terceirizar é preciso; viver não é preciso”. Terceirizar o setor passou a ser mais vital do que garantir a saúde (e a vida, é claro) da população. Os mais diversos motivos têm sido apontados para a consolidação de tal propósito. A vida das pessoas e sua saúde só serão garantidas se o sistema de atenção à saúde for terceirizado.
Não restam dúvidas sobre os momentos de glória de Portugal em decorrência de sua louca aventura. Mas não há nenhuma discordância a respeito de sua incrível derrocada, que se arrasta até os dias atuais, reservando-lhe a posição nada gloriosa de nação mais atrasada da comunidade europeia. Tracemos um paralelo com o que está acontecendo com a presença cada vez mais expansionista das OS no setor saúde. Em artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, no dia 29 de janeiro, os defensores dessa modalidade de gestão da coisa pública se vangloriam de que “o modelo permitiu que usuários do sistema público sejam atendidos em instituições geridas por entidades de excelência, como os Hospitais Sirio-Libanês, Albert Einstein e a Fundação Faculdade de Medicina da USP”. Por que será que Portugal conseguiu um nível de excelência em navegação e foi tão ineficaz em fazer de suas colônias potências mundiais? A excelência da gestão dessas entidades mencionadas pelo artigo não se transfere, por um passe de mágica, para o setor público. Seus públicos-alvo são extremamente diferenciados, não sendo menos diversa a lógica que preside sua forma de administrar. Uma coisa é navegar; outra diversa, é colonizar.
No mesmo artigo, seus autores apontam que “esse comprometimento com resultados é um dos principais motivos do salto de eficiência nos serviços públicos geridos por OS”. O que se deve questionar é a quem a eficiência decantada e seus respectivos resultados estão beneficiando. Não há evidências de resultados significativos para a população, como se pode atestar por um dos indicadores mais sensíveis desse tipo de alteração de realidades, o Coeficiente de Mortalidade Infantil. No município de São Paulo, nos últimos anos, sua queda tem sido insignificante, continuando quatro vezes maior do que o de países desenvolvidos como a Dinamarca, por exemplo. Será que estão falando de uma eficiência similar à demonstrada pelos portugueses com nossos indígenas? Ou será que tal eficiência se compara com a demonstrada por Portugal em exaurir nossas riquezas naturais?
Como prova de tal eficiência, os autores se valem de dados estatísticos, aparentemente incontestáveis: “hospitais geridos por OS oferecem entre 35% e 61% mais admissões por leito e redução de 30% na taxa de mortalidade em comparação com hospitais sob a gestão direta do poder público”. Todos sabemos que a estatística permite inúmeros abusos habilmente disfarçados. Não se mente; apenas se manipula. Imaginemos, por hipótese, que os hospitais geridos por OS internem, com preferência, casos menos graves, por sua patologia ou por sua evolução, restando aos hospitais sob gestão direta do poder público os casos terminais e os mais graves. Nada mais justo que se constate o que os autores utilizam para falar de suas excelências. É claro que nessas condições, a mortalidade deve ser muito maior nos hospitais sob gestão direta do poder público. Sem nos revelar os dados de mortalidade, tal afirmação pode ser interpretada como mais uma manipulação, sem se configurar em uma mentira.
Essa possibilidade, nada impossível de ser uma realidade, se se levarem em conta os inúmeros casos em que o setor privado de saúde tem repassado para o SUS os procedimentos de mais alto custo, rebate outro posicionamento dos autores do artigo. Alegam eles que se trata de um mito a alegação de que “as OS promovem a privatização dos serviços públicos, que passariam a ficar ao sabor da lógica do mercado”. Mas não é o que se vê no interior de suas instituições originais? Em sua defesa, continuam eles a afirmar que “os partidários dessa ideia parecem ignorar que as OS são entidades sem fins lucrativos, de natureza social”. E ainda, que “não operam no ‘mercado’ – domínio próprio das empresas –, mas na arena pública não estatal: o terceiro setor”. O Brasil parece ser mesmo o paraíso da hipocrisia. Como negar o óbvio? Os próprios veículos de comunicação do ‘mercado’ têm apontado o crescimento desenfreado do turismo de saúde entre nós, com ênfase para procedimentos realizados em hospitais de excelência, que por isso mesmo, são os que são procurados por consumidores de tal tipo de produto. Não seria essa a lógica do mercado? E o que dizer das tais “taxas de administração” pagas pelo poder público para essas OS? Isso nada tem a ver com a lógica do mercado?
Outra alegação que merece reflexão é a que diz respeito ao controle social. Os autores afirmam que as OS estão sujeitas aos mais rígidos controles da sociedade sobre os quais discorrem exaustivamente. Apenas esquecem de fazer menção ao que reza a nossa constituição sobre a necessária participação da comunidade no setor saúde, bem como o que normatiza a Lei 8.142, que institui o Conselho de Saúde e a Conferência de Saúde como formas de exercer tal controle social no SUS. Há casos notórios, como o de Campinas, em que o Conselho Municipal de Saúde deliberou contra o contrato de gestão com uma OS para gerir um hospital municipal, sendo solenemente ignorado pela administração municipal. Não consta que o Conselho Municipal de Saúde de São Paulo tenha dado seu aval aos inúmeros contratos de gestão lavrados com OS pela administração municipal. Há, aqui, no mínimo um conflito entre legislações, que precisa ser resolvido sem prejuízo para a população. Apesar de ainda incipiente, o controle social do SUS é uma conquista histórica que não deve sucumbir diante dos imperativos do mercado.
Passemos agora para o outro lado, isto é, o lado de quem ocupa um posto que tem como missão principal a defesa dos indígenas, em nossa paráfrase. Trata-se do ministro da saúde, Dr. Alexandre Padilha. A mídia tem-lhe sido pródiga. Temos acesso a um sem número de suas entrevistas, bem como pudemos assistir a uma de suas palestras.
Ainda antes de ser ungido, Dr. Padilha assinou um manifesto em favor da candidata à presidente, Dilma Roussef, em que se afirmava que tal apoio se dava por “não apoiarmos as políticas de desmantelamento do Estado como a privatização do patrimônio público e a terceirização da atenção à saúde, implementadas por Fernando Henrique Cardoso entre 1994 e 2002, que não obtiveram êxito nem em elevar a capacidade produtiva do Brasil nem em melhorar a qualidade de vida de nossa gente”.
Do documento orientador para os debates da 14ª Conferência Nacional de Saúde, de responsabilidade do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde, selecionamos o seguinte trecho:
“De acordo com os preceitos constitucionais do SUS, a prerrogativa e responsabilidade pública da gestão e gerência não podem ser transferidas ou terceirizadas para outras esferas de direito privado; as dificuldades e alternativas de melhor gerenciamento, regulação e prestação de serviços devem ser equacionadas e produzidas sob a responsabilidade pública”.
Esses posicionamentos parecem muito claros, não permitindo margem para tergiversação. No entanto, nos últimos 8 anos, no município de São Paulo e em vários outros da região metropolitana, o que se viu foi exatamente o contrário. Não se restringiu aos governos não alinhados ao partido do presidente Lula, mas em inúmeros casos isso se deu em municípios governados pelo próprio PT. Aliás, os autores do mencionado artigo em defesa das OS usam tal fato como argumento de defesa!
O alegado desafio de aumentar a eficiência e eficácia dos investimentos e serviços públicos se choca contra evidências inequívocas: a maioria dos jovens burgueses e de classe média anseia freqüentar as universidades públicas, por sua reconhecida excelência; há, hoje, no município de São Paulo, incontáveis equipes do PSF sem a presença do médico, apesar de serem objeto de contrato de gestão com OS. Aliás, várias OS têm em seu quadro de RH, em postos-chave, sanitaristas oriundos da administração direta, onde, supostamente, não demonstravam a mesma eficiência e a mesma eficácia.
Voltemos ao caro ministro, Dr. Padilha. Em uma de suas entrevistas, afirma sua convicção com veemência: “defendo o SUS como um projeto público, permanentemente público, que seja voltado para o usuário e tenha controle permanente”. Será que ele acha que a ausência de médico na equipe do PSF condiz com sua defesa de um SUS voltado para o usuário? Claro que não, podemos afirmar sem medo de errar. Será que ele concorda com os malabarismos engendrados pelos autores do artigo em defesa das OS para justificar o controle social (controle de administração, conselho fiscal, auditoria independente, prestação de contas ao órgão parceiro do poder público, Tribunal de contas, publicação de relatórios financeiros e de execução? Mas nenhuma palavra sobre Conselho Municipal de Saúde. Aqui, já não temos tanta certeza sobre a convicção do Dr. Padilha. Por que será que o Conselho de Saúde foi excluído dessa longa lista? Será uma medida preventiva para não ter que prestar contas com aquele que é, de fato, o mais interessado na questão, isso é, o usuário mencionado pelo Dr. Padilha?
Na mesma entrevista, o ministro tangencia a questão da presença das OS, advogando a tese da não ideologização do debate. “Acredito que qualquer modelo gerencial tem que respeitar o conjunto de diretrizes do SUS”, afirma. Continua sua análise apontando realidades com as quais não concorda: ”inclusive em relação aos modelos estatais, porque tem muito modelo estatal que não é público; que não tem nada de controle social; onde os trabalhadores são menos valorizados do que trabalhadores que têm vínculo com fundações ou com organizações que não são necessariamente estatais”. Reafirmando sua posição, diz: “por isso, acho que esse debate não tem que ser ideologizado, nesse sentido de confronto entre o estatal e o não estatal. O debate tem que ser o SUS como projeto público, voltado para o usuário, com controle social permanente, e onde processo de valorização do gestor e dos trabalhadores tem que existir”.
Parece que o ministro vê uma segmentação no interior da ideologia, como se fosse possível a instituições vinculadas à lógica do capital comportarem fragmentos regidos pela lógica do trabalho. Não há evidências de que tal organização social seja possível. Como imaginar que uma instituição que pauta sua missão na lógica do sistema medicalizado e hospitalocêntrico com fortes vínculos com a indústria de equipamentos e de fármacos possa gerenciar um verdadeiro programa de promoção da saúde, como deveria ser o PSF? Não há, certamente, no âmbito de tal instituição, espaço para essa tarefa diretamente associada ao fenômeno da emancipação. Como imaginar que ela, em um de seus segmentos, vá trair seus parceiros fiéis? Ora, não há como não ideologizar o debate!
É claro, no entanto, que o verdadeiro debate talvez não seja mesmo o travado entre o estatal e o não estatal, se estivermos diante de um Estado que também se orienta prioritariamente pela lógica do capital. Que também se preocupa em dinamizar a economia (uma necessidade) dando prioridade à expansão da indústria automobilística, em visível detrimento da indústria ligada ao transporte coletivo (uma opção discutível).
Talvez seja a hora de ideologizar o debate neste sentido, ou seja, colocando no centro dele, como diz o ministro, o usuário, ou melhor ainda, o cidadão excluído das benesses que o Estado/capital tem distribuído aos seus mais próximos. A quem interessa um sistema de saúde medicalizado e hospitalocêntrico? A quem interessa a alienação gerada por ele e que o alimenta indefinidamente? É preciso não ter medo da ideologização, mas é preciso colocá-la no devido lugar. Navegar é preciso; viver é tão preciso quanto. Qualquer que seja a semântica!
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