Palestra proferida na Pré-Conferência Municipal dos Trabalhadores de Saúde em Londrina-Pr, junho 2011
por Paulo Roberto Gutierrez, médico sanitarista e biólogo, doutor em ciências pela Ensp/Fiocruz
APRESENTAÇÃO
Saúdo agora os patrocinadores desta conferência, trabalhadores que atuam nos processos de trabalho em saúde, compreendendo os zeladores, motoristas, auxiliares técnicos, administrativos, pessoal de enfermagem, os médicos e outros tantos.
Quero também saudar os trabalhadores, inseridos no mercado formal e informal de trabalho, os atuais desempregados e, particularmente, aos trabalhadores afastados do Trabalho em função dos agravos acometidos durante o exercício de suas profissões. Particularmente àqueles empregados de serviços terceirizados e submetidos à péssimas condições de trabalho e com seus direitos trabalhistas não respeitados.
Organizei minha fala tentando traçar os rumos que o Estado brasileiro escolheu para estabelecer uma nova relação entre patrões e trabalhadores, para num segundo momento discutir os resultados desta escolha no setor saúde.
Tem-se noticia de que os planos de saúde eram contratados por empresas públicas já na década de 50. As terceirizações também não são um fenômeno recente. Porém é no período pós golpe militar, no chamado estado-privatista, que a saúde passou a ser interessante para o acúmulo de capital. Para tanto foi adotado o modelo de atendimento tendo como porta de entrada o hospital, atendendo aos apelos do chamado complexo médico-hospitalar, auferindo lucros aos produtores de produtos e equipamentos médicos-hospitalares. Para estruturar a rede hospitalar o governo passa a financiar grupos empresariais na construção de hospitais privados e na compra dos equipamentos. Nesta modalidade, o financiamento se deu pela compra de serviços médicos aos hospitais e atendimento ambulatorial por profissionais e grupos empresariais.
Deste então, observa-se que o Estado brasileiro, nesta relação com a iniciativa privada, tem sido permissivo com relação aos interesses desta e incapaz de exercer qualquer controle sobre suas ações, considerando-se a intensidade de fraudes denunciadas na época.
AS CONJUNTURAS POLÍTICAS MAIS RECENTES E AS PRIVATIZAÇÕES
Primeiramente convém citar que no plano da política econômica, a década de 80 foi considerada a década perdida numa referência à estagnação econômicavivida pela América Latina, quando se verificou uma forte retração da produção industrial e um menor crescimento da economia como um todo.
Com a crise do fordismo e em razão dessas dificuldades de acumulação de capital e fruto de estratégias neoliberais, criou-se um novo paradigma econômico, intensivo em capital, tecnologia (com ênfase na microeletrônica e nas telecomunicações), informações e conhecimento, caracterizador da terceira revolução industrial.[1]
A necessidade de maior crescimento econômico aliado ao processo da Terceira Revolução Industrial, que se desencadeou nas ultimas décadas do século XX, foi decisivo para consolidar a presente fase do capitalismo e da divisão internacional do trabalho, a chamada globalização
Esta nova fase de desenvolvimento técnico-científico, como resultado de todas estas metamorfoses operadas no mundo do trabalho parece apontar para a desqualificação e precarização do trabalho. Na realidade, muitos trabalhadores tendem a ser cada vez mais obrigados a submeterem-se ao trabalho informal, à redução de salários, ou à perda de direitos trabalhistas com a chamada flexibilização implantada por patrões e governos que seguem o ideário neoliberal.
O que se observa na realidade é que as transformações que estão ocorrendo no mundo do trabalho, ao contrário de diminuírem o esforço dos trabalhadores, estão aumentando a precarização do trabalho em suas mais diversas formas, como trabalho terceirizado, de tempo parcial, temporário e informal. O que se conclui é que, no mundo todo, não está havendo uma diminuição do trabalho, mas uma precarização e, em conseqüência, um aumento da exploração do trabalho.[2]
Em novembro de 1989, economistas de instituições financeiras situadas emWashington D.C., como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, formularam um conjunto de medidas, chamado de consenso de Washington que se tornou a política oficial do Fundo Monetário Internacional em 1990. Apresentava regras a serem seguidas pelos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades.
A partir daí, inicia-se o projeto neoliberal chamado de Terceira Via, como sendo, num primeiro momento, a adaptação do país ao Consenso de Washington (Governo Collor, 1993 a 1994, e, Itamar Franco, 1993 a 1994). O segundo momento de ampliação da legitimidade do neoliberalismo, tendo como ponto principal as alterações na relação entre o Estado e a sociedade civil. Este período é referente aos dois governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). E, o terceiro momento, nos dois governos Lula, de aprofundamento das reformas do governo anterior além de ampliar a participação da sociedade civil “despolitizada”, já iniciada no governo anterior.[3]
Todo o arcabouço legal para a privatização da saúde ocorre a partir da criação do Ministério da Administração e da Reforma do Estado (MARE) que, em 1995. Todas estas alterações legais têm como substrato principal a alegação da incompetência do serviço público, que devem se tornar mais ágeis e mais eficazes, com flexibilização nas relações de trabalho.
Num segundo momento tendo José Serra como ministro da Saúde (1998-2002), são promulgadas, as principais leis que interferiram diretamente nos serviços de saúde.
- A Lei 9.637/98, que dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais e a criação do Programa Nacional de Publicização, bem como o inciso XXIV, artigo 24, da Lei 8.666/93 (Lei das Licitações), com a redação dada pela Lei 9.648/98.
- A Lei no 9.790/99 que dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências.
-A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), oficialmente Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000, é uma lei brasileira que tenta impor o controle dos gastos de estados e municípios, condicionado à capacidade de arrecadação detributos desses entes políticos.
- A alteração do inciso XIX do art. 37 pela EC nº. 19/98, que segundo vários juristas, reafirmou a fundação pública de direito privado no cenário jurídico nacional.
O Projeto de Lei Complementar 92/2007, regulamenta o inciso, e em seu Art. 1o , define que :
“Poderá, mediante lei específica, ser instituída ou autorizada a instituição de fundação sem fins lucrativos, integrante da administração pública indireta, com personalidade jurídica de direito público ou privado, nesse último caso, para o desempenho de atividade estatal que não seja exclusiva de Estado,(grigo meu) nas seguintes áreas:
“I – saúde….” (PLP 92/2007)
O Sindsaude, em publicação recente, sobre estas alterações da lei, observa:
“A desembargadora (Salete Maccalóz, desembargadora federal do TRF-2ª Região), foi à última reunião do Conselho Estadual de Saúde para falar do modelo de gestão e se mostrou categoricamente contra as fundações estatais de direito privado, organizações sociais e outros instrumentos que só mudam de nome, mas têm o mesmo objetivo de entregar o patrimônio e a função pública a instituições privadas. Para ela, essas idéias são uma “excrescência”. Maccalóz salientou que “inventar figura jurídica inexistente é estelionato intelectual”.
A RELAÇÃO ESTADO-INICIATIVA PRIVADA – ALGUNS RESULTADOS
O PAS – Plano de Assistência à Saúde
A primeira experiência que temos notícia sobre a privatização da saúde ocorre em São Paulo, no chamado PAS, em meados da década de 90.
Anna Trotta Yaryd, promotora de Justiça em São Paulo e Presidente do Ministério Público Democrático, ao criticar a implantação das AMAS (Unidades de Saúde em São Paulo por meio de convênios, mesmo antes da aprovação da Lei no. 14.132/06, (grifo meu) afirma sobre o PAS.
“Em passado recente, os cidadãos de São Paulo já foram submetidos à igual experiência (da AMAS), com resultados desastrosos: o PAS – Plano de Assistência à Saúde, desenvolvido entre os anos de 1995 e 2000. Mas, apesar do malfadado exemplo do PAS, voltam os administradores públicos a acenar com a privatização do SUS.”
O caso Incor e a Fundação Zerbini
A terceirização por meio de Fundações não é nova. Já em 1978 foi criada a Fundação Zerbini como mantenedora do INCOR. (Nesta fundação já se permitia a internação de pacientes particulares e de convênios)
Não tenho dados de quantas escolas médicas, se algumas houve, implantaram modelo de gestão baseada em mantenedoras privadas, além do Incor de São Paulo e, posteriormente, o Incor de Brasília. O resultado de sua atuação foi uma grande crise, em 2006, quando o InCor quebrou e a divida teve que ser ressarcida pelo Governo de São Paulo. Em troca foi exigida a saída do Incor-DF, que também estava endividada, corte de pessoal e redução de salários acima de R$ 16 mil. Outra exigência atendida foi que a composição do Conselho Curador da Zerbini – que tinha 8 representantes do Incor e 4 de fora – passasse a ter 6 e 6, medidas a nosso ver inócuas e ineficazes. [4]
Segundo a repórter Laura Capriglione “Em 2006… por conta de aventuras políticas e de maus administradores, o InCor quebrou e, com uma dívida de R$ 250 milhões, foi à bolsa da Viúva Em agosto passado, uma auditoria do SUS constatou que a fila para alguns exames na sua portaria de baixo tinha de oito a 14 meses de espera (um ano para um ecocardiograma infantil). Na portaria de cima, atendimento imediato. São muitos os truques. Um deles é simples: pelo SUS a patuléia precisa cumprir uma série de etapas e consultas para chegar ao exame; pelo plano privado, basta uma solicitação do médico.”
A Revista Veja São Paulo publicou neste mês uma reportagem com o titulo “A saúde do Incor corre risco”, relatando problemas de superlotação em seu Pronto Socorro, entre outras. Além disso, o Ministério da Saúde, após auditoria, emitiu pareceres determinando a devolução dos recursos financeiros no valor de R$ 49.616.664,99, devido irregularidades na prestação de contas do Hospital. devido a irregularidades na prestação de contas do hospital.[5]
O caso HC
O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo(HCFMUSP), é uma autarquia, ou Fundação Autárquica como preferem alguns, do Governo do Estado de São Paulo, vinculada à Secretaria de Estado da Saúde para fins de coordenação administrativa. No mês de maio deste ano, o superintendente do Hospital das Clínicas, Marcos Fumio Koyama, anunciou que pretende elevar de 3% para 12% a taxa de privatização dos atendimentos.
Esta autarquia, ideologizada pela privatização, promove ou inaugura uma nova modalidade no Brasil. Um ente público (como querem alguns) que, rompendo com a tradição do SUS em comprar serviços, de forma complementar, passa a vender os serviços existentes para a iniciativa privada.
Quanto às OSCIPS a catástrofe imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal foi inevitável. Sem outra alternativa e sem qualquer orientação, os municípios recorreram a contratações por meio das Associações de Proteção Materno-Infantil (APMIs), Santas Casas de Misericórdia e outras, motivos de interpelação judicial. As OSCIPS, que gradativamente foram se organizando, vislumbrando filão para ganhar dinheiro, deram mostra de que, tanto quanto o governo federal, os municípios não têm qualquer poder de regulação.
Discussão
Enquanto modelo de gestão, as OS e alguns hospitais públicos como o HC, a meu ver, denotam sua incapacidade de bem gerir os recursos públicos e de propiciar boa qualidade na atenção aos usuários, além de promover toda a sorte de iniqüidades, a exemplo dos convênios com os planos de saúde.
O sucateamento progressivo SUS e o descrédito da população vêm, desde há muito incrementando os planos de saúde. Se tomarmos o ano de 2010, quando a economia brasileira cresceu 7,5% e apresentou a menor taxa de desemprego, os planos passaram a atender cerca de 45 milhões de beneficiários.
Enquanto modelo de gestão, as OS e alguns hospitais públicos como o HC, a meu ver, denotaram sua incapacidade de bem gerir os recursos públicos e de propiciar boa qualidade na atenção aos usuários, além de promover toda a sorte de iniqüidades, a exemplo dos convênios com os planos de saúde.
O sucateamento progressivo SUS e o descrédito da população no serviço público vem, desde há muito, incrementando os planos de saúde e alternativas discutidas. A retração dos recursos federais tem sido uma constante. O Paraná, por exemplo, não cumpre com sua participação de 15% mínimos de sua arrecadação para a saúde, ficando os municípios com a maior sobrecarga.
Este fato, aliada as demais formas de terceirizações privatizantes citadas, deixam claro que ao invés de se consubstanciarem em possíveis propostas complementares ou suplementares, passam a ser os agentes principais para o sistema.
As leis que engessam o setor público e que criam e orientam as terceirizações para os estados e municípios, tem ocorrido à revelia das instâncias de controle do SUS, criando um conflito entre o legislativo e os Conselhos. A ausência deste debate e pactuação com os órgãos gestores do SUS, mesmo considerando a legalidade dos fatos estão destituídas de legitimidade.
Para, ao jogarmos a água suja da bacia, cuidar para não jogar a criança junto, para não sermos acusados de fazer a política do quanto pior melhor, por razões de imperativo legal construído com engenhosidade nas últimas décadas e, tão somente por isto, só nos resta na atual conjunta política, lutar para o redirecionamento das atuais políticas aqui impostas, visando o fortalecimento do SUS. Tenho acompanhado o esforço de pessoas e instituições ligadas ao movimento sanitário, como a Abrasco e o Cebes. Acredito que a discussão que já vem sendo estimulada e que será aprofundada no II Simpósio de Políticas de Saúde, poderá trazer maiores subsídios para a 14a Conferência Municipal de Saúde.
[1] Para maiores detalhes leia “Subordinação estrutural, terceirização e responsabilidade no Direito do Trabalho, de Rinaldo Guedes Rapassi * http://www.buscalegis.ufsc.br
[2] Para maiores detalhes leia “ A Classe Trabalhdora diante da Terceira Revolução Industrial” de Sérgio Prieb *http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt4/sessao1/Sergio_Prieb.pdf
[3] Leia: “Contra-Hegemonia e Sociedade Civil no Século XXI: o legado do neoliberalismo de terceira via no Brasil” de Marianne Oslay Cortes Alonso1* http://www.estudosdotrabalho.org/anais-vii-7-seminario-trabalho-ret-2010/Marianne_Oslay_Cortes_Alonso_
[5] Acesse: http://vejasp.abril.com.br/revista/edicao-2222/problemas-do-incor
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