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terça-feira, 2 de agosto de 2011

Contra a servidão: novos sujeitos coletivos na saúde

Texto abre a coluna de Luciano Bezerra Gomes no Blog Saúde com Dilma.

Estamos em um momento chave que pode apontar para a efetivação ou o desmonte do SUS, com emoções e enredo dignos dos melhores romancistas: governo federal com projetos audaciosos, regulamentação da lei orgânica, emenda 29 na pauta do congresso, governos explicitando interesses privatistas em parcerias com as OS, a mídia endossando a internação compulsória dos usuários de drogas, entidades dos profissionais redefinindo agendas (corporativas) de luta, entre outras intrigas.
No meio disto tudo, e sendo uma das pautas relevantes deste enredo, estamos realizando as diversas etapas da 14ª Conferência Nacional de Saúde. E foi em resposta a um convite para participar de uma mesa redonda numa conferência municipal de saúde no sertão da Paraíba que me peguei tentando refletir de forma mais integrada sobre estas diversas tramas paralelas.
Entre as leituras para delimitar o escopo de minha fala, me deparei com uma daquelas pérolas que a gente leu e que, de vez em quando, batem de volta na nossa testa. Folheava o desterritorializante Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, quando me deparei com uma das frases que havia grifado quando da primeira leitura. Na margem da página, eu havia escrito uma nota chamando a atenção para o trecho referindo algo como para pensar a política. No trecho, eles afirmam que “o problema fundamental da filosofia política é ainda aquele que Espinosa soube levantar (e que Reich redescobriu): ‘Por que os homens combatem por sua servidão como se se tratasse da sua salvação?’”(Deleuze e Guattari, 2010, p. 46).
E lá fui eu me colocar o desafio que debater a concepção de Espinosa com pouco mais de 200 pessoas, predominantemente composta por agentes comunitários de saúde e outros profissionais, além de representações de usuários e gestores. Porém, mais do que a descrição das piruetas que tive que dar para dialogar com a concretude dos serviços de saúde do interior da Paraíba a partir de pensadores tão densos, resgatei neste momento a presente citação pois acredito que ela tem muito a nos colocar em cheque , entre outros aspectos, também em relação à maneira como estamos desenvolvendo as lutas sociais no SUS.
Estamos acompanhando as diferentes correntes partidárias em nosso país assumirem posturas que apontam em determinados momentos para o fortalecimento (seletivo) de algumas dimensões do SUS e, ao mesmo tempo, para a sua total desconstrução. Na primeira perspectiva, temos ações como a necessária regulamentação da lei orgânica da saúde, por exemplo; na outra, decisões de governos (alguns deles que até se definem como parte do campo da esquerda) intensificando os processos de terceirização da gestão dos serviços através de organizações sociais.
No meio destas questões, vemos movimentações de companheiros militantes que se colocam o desafio de participar da implementação de uma política pública universal de saúde e que, na ausência de instâncias legítimas de articulação, se sentem “órfãos” de espaços coletivos para formular projetos, pensar estratégias e compartilhar ações.
Falo por mim:
1.como médico, não vejo nos conselhos da categoria, nas sociedades de especialidades ou nos sindicatos médicos instâncias capazes de assumir este espaço de formulação coletiva; em sentido oposto, via de regra, se configuram como sujeitos que formulam e disputam agendas contrárias ao fortalecimento do SUS em sua integralidade;
2.como sanitarista, nossas entidades ou se isolaram no debate acadêmico (muitas vezes descontextualizado da realidade dos serviços de saúde), ou estão ainda reproduzindo lógicas de poder que não se sustentam com as novas possibilidades de participação social;
3.como professor universitário, também não vejo no Andes (nem no Pró-Ifes) agenda coletiva capaz de impactar positivamente na construção da superação dos enormes desafios que temos no campo da educação e da saúde, entre outros motivos, por estarem reféns de lógicas dicotômicas que os vêm divididos entre adesistas ou oposicionistas;
4.como cidadão, não vejo nas atuais legendas partidárias os aliados para uma perspectiva de transformação da correlação de forças capaz de superar a ordem instituída.

Diante de contexto tão desfavorável, é de se estranhar que ainda faça sentido existirem sujeitos lutando por avanços mais significativos nas políticas públicas. Mas esse estranhamento se desfaz numa análise mais cuidadosa, pois o que compreendo como fundamental neste quadro aparentemente sem perspectivas é um esgotamento de determinadas maneiras de se organizar a luta social e não um esvaziamento de sentido para a política.
As pessoas estão tentando (e já há algum tempo) desenvolver sua capacidade de intervir sobre o mundo de modos que ainda não foram assimilados totalmente pelas lideranças tradicionais, se é que ainda o chegarão o fazê-lo. Mesmo autores que apresentam divergências consideráveis (como no caso de Antonio Negri e Emir Sáder, para ficar apenas nestes dois) concordam que os novos meios de comunicação e as transformações que ocorreram no mundo do trabalho estão levando a que as manifestações e movimentos políticos assumam novas configurações.
As redes sociais, por exemplo, são cada vez mais acessadas como mecanismos de democratização do acesso a informações e de organização das lutas. No campo da saúde mesmo, este blog em que está sendo veiculado o presente texto é fruto e construtor destas novas maneiras de se produzirem movimentos no campo político. E espaços como estes têm sido cada vez mais acessados.
Entretanto, mais importante do que ler as notícias da política é construir novas políticas da vida nas relações e instituições em que atuamos no cotidiano. Mais do que conhecer pessoas novas ou ver o que elas pensam, devemos aproveitar as formas interação disponíveis para construir agendas comuns a partir das realidades distintas em que atuamos.
A necessidade de se constituírem espaços mais coletivos e plurais capazes de mediarem a constituição de novos sujeitos políticos é fundamental para que não acabemos lutando pelo que Espinosa denominava como sendo nossa servidão. Caso contrário, seremos sempre massa de manobra para perpetuar os interesses privatistas de grupos corporativos do setor privado, de entidades que funcionam apenas para manter as relações de poder de suas lideranças ou, então, para perpetuar antigas ou novas agremiações políticas, sejam os líderes tradicionais ou os novos coronéis, se autointitulem os mesmo como sendo de direita ou de esquerda.
Luciano Bezerra Gomes
João Pessoa, 01 de agosto de 2011
P.S. Para os que não me conhecem, como pretendo iniciar uma colaboração mais sistemática com este blog, segue uma rápida apresentação. Sou médico sanitarista, tendo atuado como clínico em unidades de saúde da família, bem como participado de algumas experiências de gestões municipais e estaduais. Meu vínculo institucional se dá como professor do Departamento de Promoção da Saúde do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal da Paraíba, onde atuo no curso de medicina, atendendo em unidade de saúde da família juntamente com estudantes da graduação e ministrando disciplinas do campo da saúde coletiva. Ainda na UFPB, estou como conselheiro do Conselho Superior de Ensino Pesquisa e Extensão. Também tenho vinculações afetivo-políticas-acadêmicas com a linha de pesquisa Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde, da Pós-graduação em Clínica Médica da UFRJ. Por fim, também sou poeta e pai de 3 filhas lindas. Contatos: imeio: lucianobgomes@gmail.com ou twitter: @lucianobgomes

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