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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Chile, a "menina dos olhos" neoliberal, tem distorções na saúde, na educação e na seguridade social


A saúde não é boa no Chile

A saúde, a educação e a seguridade social são as principais distorções deixadas pela ditadura de Augusto Pinochet que, depois de 30 anos, acumulam uma série de desigualdades, discriminações e abusos que estão esgotando a paciência dos chilenos.


Christian Palma – Correspondente da Carta Maior em Santiago do Chile


Um pouco antes de morrer, o economista e subdiretor de Orçamentos do governo da Unidade Popular (de Salvador Allende), Humberto Veja, me contou a seguinte história. Numa certa noite, no início de 1973, o próprio presidente Salvador Allende o chamou e pediu para que preparasse um projeto para enfrentar a crise econômica que arrasava o país.

Naquele período, a inflação tinha disparado de 22,1%, em 1971, para 260,5%, em 1972. Um ano depois, o custo de vida tinha disparado para 605,1%. O forte desabastecimento impulsionado pela direita econômica, que começou a tirar de circulação os produtos básicos para a população, semeando o pânico, juntamente com a greve dos caminhoneiros e o boicote dos Estados Unidos, que cortou os fluxos de capitais, gerou um clima insustentável para o governo. As juntas de Abastecimento e Preços (JAP) não foram suficientes para evitar a percepção da escassez. O modelo econômico estava em xeque.

Após meses de trabalho, veja entregou seus cálculos ao presidente Allende. “Propus frear substantivamente o gasto em educação, saúde e habitação para reduzir o déficit do setor público que estava fora de controle e era a principal causa da inflação e do desabastecimento, mas o presidente não reagiu bem à proposta. Era uma situação angustiante. Allende não podia aceitar mudar desse modo o esquema, porque ia castigar o povo que tinha garantido sua eleição. Para ele, reduzir o gasto em saúde era quase sua destruição”, contou o economista.

- Olhe. Não há como financiar o gasto social.

- Eu sou médico, fiz o juramento de Hipócrates. Não posso reduzir a saúde de meu povo. 

Esse foi o diálogo daquela tarde.

“Ele manteve seus ideais de orientar-se pela justiça social, pela dignidade dos mais pobres, pela defesa da saúde, da habitação, da educação. Isso dava sentido à sua vida. Nunca traiu seus valores e essa é sua grandeza”. Com essas palavras, Humberto Vega retratou o presidente Allende e sua vocação de servidor público.

Passaram-se alguns anos desde que o economista me contou essa parte da história do Chile. No entanto, a saúde, a educação e a seguridade social são as principais distorções deixadas pela ditadura de Augusto Pinochet que, depois de 30 anos, acumulam uma série de desigualdades, discriminações e abusos que estão esgotando a paciência dos chilenos.

Após o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, o regime militar e os civis de direita realizaram um processo de descentralização da saúde que incluiu a municipalização dos consultórios públicos, medida que pretendia aumentar as possibilidades de escolha das pessoas, sob a ideia da tão cantada “liberdade de escolher”, sustentada pelo pai do neoliberalismo contemporâneo, Milton Friedman.

Mas o modelo começou mal: escassa capacidade administrativa, falta de infraestrutura, desigualdade de recursos por parte das municipalidades e a criação de um sistema de tipo de atenção ao qual deveriam ter acesso as pessoas de maior e menor renda. Em 1981, se materializou a grande privatização da saúde, com a criação das Instituciones de Salud Previsional (Isapres) que podem captar e administrar o financiamento da saúde e outorgar o serviço através de prestadores como clínicas e centros de atenção privados. O sistema funciona a favor destas empresas que estabelecem contratos individuais com a pessoa interessada em ingressar no sistema privado, com um desconto de 7% de seu salário.

Teoricamente, toda a população tem liberdade de escolha entre o setor público e o privado, mas, na prática, os grupos de renda média-alta e alta são os que frequentam as Isapres porque podem pagar as prestações, não são excluídos por alto risco e são essencialmente urbanos (não existe serviço privado em certas zonas rurais). De maneira que as pessoas pobres ou com renda insuficiente, alto risco e residentes em certas zonas rurais não podem realmente escolher e se filiam ao Fundo Nacional de Saúde (Fonasa).

Sob estas condições, a população coberta por todos os seguros de saúde caiu de 71%, em 1973, para 62%, em 1980, o ano anterior à reforma. A cobertura do Fonasa baixou de 83% para 59% durante o período 1984-2006, mas logo aumentou para 70%; a das Isapres saltou de 3% para 26%, e logo depois diminuiu para 16%, enquanto que, nas forças armadas, seguros privados e não filiados ao serviço público se manteve entre 14% e 15%.

Cerca de 92% da população mais pobre estavam cobertos pelo Fonasa em 2006, enquanto que 44% do grupo mais rico pertencia às Isapres. A proporção de filiados ao sistema público diminuía segundo aumentava a renda, e ocorria o oposto nas Isapres, os demais seguros privados e no regime das forças armadas. Em todos os grupos (inclusive o mais rico), conforme aumentava a idade e os riscos de saúde se reduzia a cobertura do sistema privado, devido a crescentes taxas cobradas pelas Isapres.

Os governos democráticos, desde 1990, aumentaram consideravelmente o orçamento da saúde público, especialmente nos itens infraestrutura e equipe. Um processo crescente de controle, supervisão e restrição de abusos das seguradoras iniciou com a reforma de 1995 e a criação da Superintendência das Isapres passou a ter um instrumento para vigiar o cumprimento das normas nos contratos e regular suas exclusões, fixar um índice de preços e taxas máximas para os planos de idosos e grávidas, regulamentar o tratamento de enfermidades pré-existentes, normalizar a informação para facilitar a comparação entre os distintos planos de saúde e arbitrar os conflitos entre as Isapres e seus usuários.

A década de 90 foi marcada por abusos das Isapres contra os usuários, como altas unilaterais de preços, conflitos por pagamentos de serviços de saúde que as empresas não devolviam às pessoas, mesmo que estas pagassem suas prestações todos os meses. A decisão de manter esse modelo discriminador e desigual foi tomada no governo de Ricardo Lagos (2000-2006), quando se propôs uma reforma do sistema, criando um programa de acesso universal chamado Assistência Universal de Garantias Explícitas (AUGE), abarcando 80 enfermidades que passaram a ter cobertura total do Estado.

Em 2002, o presidente Lagos declarou que era necessário resolver a profunda desigualdade que caracterizava a atenção de saúde no Chile, devido à carga financeira que pesava sobre as famílias e à enorme desigualdade quanto à rapidez e qualidade da atenção. Duas propostas de reforma elaboradas em 2002-2004 não foram aprovadas então pela oposição dos partidos conservadores, das Isapres e do Colégio Médico.

Um dos eixos centrais da discussão, então, era quanto ao financiamento da AUGE. O governo decidiu aumentar o IVA (Imposto sobre Valor Agregado) e os impostos específicos do tabaco, dos combustíveis e das bebidas alcoólicas. Mas a proposta foi rechaçada pela direita no Congresso. A mesma direita que agora governa o país com Sebastián Piñera, que estabeleceu um processo de privatização de segundo grau no qual o Estado entrega os recursos às Isapres e clínicas privadas. Recentemente, vieram a público os lucros de 100 milhões de dólares obtidos pelas Isapres no primeiro semestre ano, o que despertou a fúria da opinião pública que já pede outra reforma da saúde, pois o domínio do mercado está esgotando a paciência dos chilenos, assim como ocorre na educação.



Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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