O NHS resistiu a ofensiva thatcherista dos anos 80 graças a sua popularidade e ao medo que inspira o modelo privatizado dos Estados Unidos. Mas a ofensiva continua. Agora está a cargo da coalizão conservadora-liberal democrata, liderada pelo ministro da Saúde conservador Andrew Landsley e um projeto de lei qualificado tanto por críticos como por simpatizantes como “a revolução mais dramática que o NHS pode sofrer desde sua criação”.
Marcelo Justo, Correspondente da Carta Maior em Londres
Junto com o estado de bem-estar, o Sistema Nacional de saúde (NHS) é o grande sobrevivente da gigantesca reforma britânica do pós-guerra, quando os setores fundamentais da economia e da organização social ficaram nas mãos do estado. A onda privatista thatcherista dos anos 80 acabou com as grandes companhias estatais, tanto na indústria como nos serviços de gás, eletricidade e telefonia. O NHS resistiu a essa ofensiva graças a sua popularidade e ao medo que inspira o modelo privatizado dos Estados Unidos. Mas a ofensiva continua. Agora está a cargo da coalizão conservadora-liberal democrata, liderada pelo ministro da Saúde conservador Andrew Landsley e um projeto de lei qualificado tanto por críticos como por simpatizantes como “a revolução mais dramática que o NHS pode sofrer desde sua criação”.
A popularidade do NHS
Em seu documentário “Sicko”, o cineasta estadunidense Michael Moore compara o sistema de saúde estadunidense com outros no mundo. Em um hospital britânico, a câmara segue Moore enquanto busca com denodo a seção para pagar por sua assistência médica. Não é que seja estúpido ou esteja desorientado por algum labirinto burocrático. Moore não encontra a janelinha para fazer o pagamento porque ela não existe. Ninguém paga pela atenção médica no Reino Unido. Se alguém se sente doente vai ao consultório do médico de seu bairro que, se considerar necessário, encaminha-o para uma consulta especializada oferecida nos hospitais. O sistema é, segundo a fórmula inglesa, “free at the point of delivery”: grátis no momento de receber o cuidado de saúde.
Isso não quer dizer que não custe nada: os fundos saem dos impostos gerais que toda a população paga. Ainda que o sistema tributário britânico esteja longe de ser um exemplo de redistribuição e equanimidade, o financiamento no NHS tem uma matriz progressista: ele garante a atenção do conjunto da população com impostos fragmentados de acordo com o nível de renda.
Este sistema simples, efetivo e popular está sofrendo desde o thatcherismo dos anos 80 dois tipos de pressões. Em nível político, os meios de comunicação conservadores questionam abertamente o sistema qualificando-o de “monstro burocrático e estatista”. Mas, para além dessa ofensiva, o NHS enfrenta os desafios de qualquer sistema moderno de saúde: um permanente aumento da expectativa de vida e uma sofisticada gama de novos tratamentos que inflam constantemente os custos. Este desafio só pode ser enfrentado de três maneiras: aumento das destinações orçamentárias e dos impostos, racionamento da atenção médica, privatização parcial ou total do serviço. No momento que o Reino Unido encabeça o pelotão das nações europeias que apostam no corte fiscal draconiano como saída para sua crise econômica, ninguém espera que a coalizão aumente o orçamento da saúde.
Conservadores no ataque
Conscientes da popularidade do NHS e da histórica desconfiança do eleitorado com as políticas conservadoras no campo da saúde, os conservadores prometeram antes das eleições de maio de 2010 que o serviço escaparia do corte orçamentário que seria aplicado ao resto dos ministérios para solucionar o problema do déficit fiscal. A promessa – cumprida até aqui – contém uma armadilha tão bem oculta como uma bomba de tempo.
Historicamente, o custo do NHS aumentou a um ritmo superior ao da inflação. Sendo assim, embora não haja um corte nominal do orçamento, em termos reais o NHS terá que poupar uns 35 bilhões de dólares daqui até 2015. A resposta conservadora a este desafio – aumentar a qualidade do serviço médio reduzindo o custo real – é uma reorganização interna do sistema que está colocando o NHS de pernas para o ar.
Na proposta do ministro da Saúde, Andrew Landsley, os médicos generalistas nos consultórios de bairros deverão consumir a quase totalidade dos 140 bilhões de dólares do orçamento anual do NHS. Estes 35 mil médicos serão reunidos em 500 ou 600 consórcios zonais para administrar o orçamento de acordo com as necessidades de seus pacientes. A teoria – relativamente razoável – é devolver a atenção ao seu nível mais primário: esse tipo de médico de família que segue o caso clínico de cada paciente são os que melhor podem compreender suas necessidades clínicas.
Na prática, as coisas são diferentes. Os médicos disseram que não são financistas ou gerentes com conhecimento adequado para administrar gigantescos orçamentos. Os especialistas de hospitais e as enfermeiras também gritaram em protesto exigindo participar de um processo do qual são atores essenciais. Ambos protestaram contra a tentativa de aumentar a competição interna no setor público e com o setor privado e as organizações de caridade.
Uma alavanca chave da reforma é que os consórcios de médicos poderão encaminhar seus pacientes a quem considerarem mais conveniente do ponto de vista financeiro ou de saúde, seja o setor público (os hospitais do NHS) ou o privado. A presença do setor privado não é nova. O “novo trabalhismo” estimulou-a em seus 13 anos de governo (1997-2010). Hoje em dia, a cada 20 libras esterlinas que o sistema gasta em intervenções médicas, uma vai para o setor privado que assumiu cerca de 3,5% das operações de cadeira de rodas e uma quinta parte da saúde mental. No plano da coalizão, essa participação aumentará significativamente.
O furor despertado pelo projeto forçou o governo a chamar um processo de consulta pública em abril que concluiu com uma série de emendas e classificações sobre o novo sistema. No novo projeto de lei, aprovado em primeira instância pelos deputados no início de setembro, o governo incorporou mecanismos regulatórios para evitar que a competição interna do setor público com o setor privado se converta em uma corrida da morte capaz de destruir o sistema no seu conjunto. O projeto encontra-se agora na C âmara dos Lordes, onde se espera uma prolongada batalha. Apesar de seu caráter anacrônico, os lordes costumam adotar posições críticas e “progressistas” em suas intervenções legislativas. Uma emenda radical de todo o projeto poderia derrubá-lo por completo.
If it ain’t broke don’t fix it
Uma famosa expressão inglesa, que sintetiza o pragmatismo nacional, é “se não está quebrado, não conserte” (if it ain,’t broke don´t fix it). Em outras palavras: para que reparar o que está funcionando?
A resposta, no caso do NHS, é clara. O poder do setor privado, tanto das empresas de saúde como das companhias farmacêuticas, somado ao dos conservadores nos meios de comunicação e na classe política, busca mudanças que minem as bases do sistema até substituí-lo parcial ou totalmente por um privado. No mesmo dia do debate sobre o projeto de lei na Câmara dos Comuns, o secretário de Saúde, Lord Geoffrey Howe, disse a um grupo de empresários que a reforma constituía uma “grande oportunidade” para eles e que não importava quem fosse fornecer o serviço, desde que o paciente não tivesse que pagá-lo. Os trabalhistas e os sindicatos acusaram o governo de querer privatizar o sistema. O governo, que na voz do primeiro ministro David Cameron, assegurou neste mesmo dia que as emendas introduzidas na legislação contavam com o apoio de médicos e enfermeiras, foi desmentido no mesmo dia por representantes de ambos os setores.
“O governo escutou nossas reivindicações em algumas áreas, mas seguimos seriamente preocupados porque esta legislação está criando uma nova burocracia e fragmentando o serviço”, disse Peter Carter, secretário geral do Royal College of Nursing (emfermagem). Os médicos expressaram a mesma inquietude. “Acreditamos que a reforma aumentará uma competição prejudicial, uma desigualdade do serviço e do custo do sistema em seu conjunto”, assinalou a secretária geral da entidade desses profissionais, Clare Gerada.
Ninguém descarta que a intenção privatizadora fique enfraquecida pelas emendas à legislação em sua passagem pela Câmara dos Lordes e no seu regresso à Câmara dos Comuns. O desgaste, no entanto, é palpável. O sistema de saúde foi submetido a um processo contínuo de reestruturação nos últimos 25 anos. Sempre com a bandeira do combate à burocratização, as mudanças terminaram com a substituição de uma camada burocrática por outra com o consequente pesadelo para médicos, enfermeiros e pacientes que precisam se adaptar a uma reorganização após outra em vez de concentrar-se no seu trabalho.
Há dez anos, um médico argentino que integra o NHS desde os anos 70, explicou-me sua frustração com tanta mudança. “Como médico quero um planejamento de saúde. Que me digam, por exemplo, as metas, os meios e recursos para a redução de mortes por câncer. Em vez disso, temos sistemas cada vez mais complexos para minúcias, como contar o número de gases utilizadas no tratamento de saúde”. E com um toque de ironia, acrescentou: “o pior é que eu tenho que me encarregar de contá-las em vez de me dedicar a curar”.
Em uma coluna recente no The Guardian, a comentarista Polly Toynbee sintetizou o problema desde outro ângulo. “A enfermidade crônica do NHS é a obsessão compulsiva dos políticos para muda-lo. Cada mudança obriga o pessoal a apresentar-se novamente para o mesmo posto. No sudeste da Inglaterra um diretor se apresentou sete vezes para o mesmo trabalho sob o “novo trabalhismo”. Agora é pior ainda, porque com a coalizão há um fundo ideológico muito forte. Desta vez, a mudança pode arruinar a máquina”, assinalou Toynbee.
Tradução: Katarina Peixoto
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