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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Sistema de Saúde francês ainda é exemplo, mas sofre com a crise

Cortes no orçamento, fechamento de muitos serviços nos hospitais públicos, menos médicos, menos enfermeiros. No entanto, o serviço de saúde na França segue como exemplo. O Estado é, na França, o administrador e o garantidor do interesse público em matéria de saúde. No ano 2000, a OMS colocou o sistema de saúde francês em primeiro lugar entre seus 191 países membros.

Eduardo Febbro – Correspondente da Carta Maior em Paris


PARIS - Uma forte irritação pelas horas que passam emana da sala de espera do serviço de urgências do Hospital de Salpetrière de Paris. O hospital parisiense, situado no no popular bairro 13 de Paris e célebre pelas operações de joelho realizadas no jogador Ronaldo, é uma mostra da crise pela qual passa o sistema de saúde francês. Cortes no orçamento, fechamento de muitos serviços nos hospitais públicos, menos médicos, menos enfermeiros. No entanto, o serviço de saúde na França segue sendo um exemplo. O Estado é, na França, o administrador e o garantidor do interesse público em matéria de saúde. No ano 2000, um informe da Organização Mundial da Saúde (OMS) colocou o sistema de saúde francês em primeiro lugar entre seus 191 países membros.

O atual dispositivo de saúde é herdeiro de uma extensa tradição. O Hospital Hótel-Dieu de Paris foi fundado no ano de 650 para atender aos pobres, enquanto que Henry IV criou o primeiro hospital moderno em 1650. Em 2005, o Estado francês gastou 11,2% do PIB em saúde, enquanto esse setor representou 16,6% do gasto público. Globalmente, 79% dos desembolsos com saúde foram assumidos pelo Estado. 

Na França, a saúde é regida por um regime de quase gratuidade. As pessoas tem um cartão eletrônico, o Cartão de Seguridade Social, que cobre uma alta porcentagem dos gastos de saúde. Com ele, paga-se nos hospitais as intervenções cirúrgicas, os tratamentos, as internações, os médicos e os remédios. Segundo o regime, a sociedade paga uma procentagem e o resto é assumido pelo Estado. Nas farmácias, os remédios são pagos com esse cartão a partir de uma porcentagem que varia conforme o medicamento. As pessoas enfermas podem ver seus gastos com medicamentos garantidos em até 100% pelo Estado ou só pagar uma porcentagem dos mesmos.

As crises, os planos de austeridade e os déficits de caixa da Seguridade Social reduziram nos últimos anos, ao mesmo tempo, a lista de medicamentos reembolsáveis e os percentuais. Já existe um setor de medicina privada, mas o Estado conserva, mesmo aí, um papel tutelar e organizador por meio de uma série de agências estatais que administram e controlam os dois setores, público e privado.

O eixo essencial do sistema de saúde francês se baseia em um princípio inamovível: a proteção social é obrigatória. Isso implica que o Estado assuma uma alta porcentagem do que a socieade gasta em saúde: a média global de cobertura oscila entre 72% e 73%, o que representa 60% dos gastos em medicamentos, 90% dos gastos hospitalares, 34% dos gastos odontológicos e 62% dos gastos com médicos. Tudo isso é por conta do Estado.

O papel público está perfeitamente retratado nestes percentuais, assim como no que a saúde representa em termos de emprego: cerca de 8% da população ativa trabalha no setor da saúde, ou seja, cerca de dois milhões de pessoas. A eficácia do sistema pode ser verificada por alguns números. Um informe da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), do final do ano passado, colocou a França nos primeiros postos quanto à qualidade da atenção médica: a expectativa de vida chega sos 84,4 anos (só o Japão está acima, com 86 anos) e a mortalidade infantil se situa em 3,8%, uma das mais baixas dos 34 países que integram a entidade.

Há uns 20 anos, um denso debate envolve aqueles que querem reduzir os gastos de saúde e mudar a própria raiz do sistema e aqueles que defendem sua permanência. Essa linha de ruptura passa, evidentemente, pela esquerda e a direita, o igualitarismo histórico da França e o liberalismo moderno que quer reduzir o papel do Estado e transferir muitas de suas prerrogativas para mãos privadas. 

Entre 1997 e 2007 os gastos estatais no setor da saúde aumentaram 27%. A crise do sistema financeiro internacional acentuou os déficits da Seguridade Social francesa: em 2009, esse déficit chegou a 20 bilhões de euros, cerca de 27 bilhões de dólares. O Estado segue gastando em saúde 11% do PIB, enquanto que 15% dos gastos públicos correspondem à saúde, o nível mais elevado depois dos Estados Unidos.

Os planos de austeridade se traduziram por menos médicos nos hospitais, esperas mais prolongadas, períodos de internamento nos hospitais menos prolongados, uma racionalização complicadíssima do acesso aos médicos e, sobretudo, aos especialistas, e uma redução significativa dos medicamentos reembolsáveis pelo sistema global. Isso deu lugar à aparição de associações e fundos complementares privados que, mediante previas cotizações, compensam o que o Estado deixou de pagar. Apesar disso, a França conserva um avanço considerável no que diz respeito à proteção da saúde e ao financiamento das enfermidades. 

Em regra geral, a contribuição financeira dos pacientes se situa em cerca de 7% contra 19% para o resto dos países da OCDE. A igualdade segue sendo a filosofia central de um sistema que tem conseguido sobreviver apesar da ofensiva ultra-liberal.


Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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