Localizada no centro de Porto Alegre, a Comunidade Autônoma Utopia e Luta é uma exceção à regra das ocupações urbanas brasileiras. Iniciada em 2005 com uma ocupação durante o Fórum Social Mundial, a comunidade hoje é a única cooperativa que obteve regularização fundiária pelo Programa Crédito Solidário do governo federal. "O Utopia e Luta não deveria existir. Somos o filho indesejado gerado por um acidente", resume o músico Eduardo Solari, um dos moradores da comunidade, que poderia servir de exemplo para uma política habitacional que priorizasse a ocupação de prédios ociosos nas regiões centrais das grandes cidades.
Gerido por uma cooperativa, assentamento urbano no centro de |
O prédio, situado nas escadarias do Viaduto Otávio Rocha na avenida Borges de Medeiros, foi contemplado com o programa viabilizado pela Caixa Econômica Federal e pelo Ministério das Cidades. Propriedade do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), o edifício estava em processo de deteriorização e desocupado havia 10 anos. O projeto do Utopia e Luta é único do tipo entre os contemplados pelo programa Crédito Solidário desde 2007.
"Se não fosse um acidente, os 300 prédios ociosos do INSS, por exemplo, já teriam sido transformados em moradia popular. Se isto fosse verdadeiramente um modelo, teríamos condições de fazer milhares de assentamentos urbanos", avalia Solari. "Eu acredito que todos estes programas foram feitos com a intenção de nada aprovar. Eles foram feitos na teoria e no papel confiando que não haveria condições dos movimentos sociais acessarem", completa.
A legislação sancionada em 2007 poderia mudar os paradigmas do direito à moradia no país. A proposta do Crédito Solidário consistia na criação de um modelo que diminuísse o déficit habitacional, viabilizando habitações populares organizadas por cooperativas, associações e entidades sem fins lucrativos. No caso do assentamento de Porto Alegre, foi criada a Cooperativa Solidária Utopia e Luta (Coopsul).
De acordo com a Secretaria de Patrimônio da União do Rio Grande do Sul (SPU-RS), uma portaria de 2008 indicou cinco imóveis para projetos de regularização fundiária e provisão habitacional para entidades do movimento social. Três imóveis em Porto Alegre – nas avenidas Protásio Alves e Azenha e na rua Silva Paes -, um em Caxias do Sul e outro em Gravataí. Destes cinco imóveis, um foi regularizado por meio da Concessão de Uso Especial para fins de Moradia (CUEM) para 17 famílias residentes na Silva Paes, individualmente, e não por meio de cooperativas. Para o imóvel da Azenha, o Utopia e Luta apresentou projeto de provisão habitacional de interesse social, mas a Justiça impediu o prosseguimento, em favor de dois idosos que residem na área. Para as outras três áreas na avenida Protásio, Caxias e Gravataí não foram apresentados projetos.
Pesquisadora reforça necessidade de garantir a função social de prédios ociosos
Conforme a professora de Direito da PUCRS e especialista em direito à moradia, Betânia Alfonsin, três situações compõem as estimativas sobre déficit habitacional no Brasil. "Déficit não é apenas quando a moradia não existe, também abrange a moradia precária, aquela que precisa ser substituída. A segunda situação é das pessoas que moram em coabitação com parentes. Além daqueles que pagam aluguel e gostariam de morar numa casa própria", explica.
O cruzamento de dados oficiais do Ministério das Cidades, do Instituto de Pesquisa Aplicada e Econômica (Ipea) e da Fundação João Pinheiro estimam que o déficit habitacional no Brasil está entre 5,5 milhões e 5,8 milhões de unidades. "O Brasil têm seis milhões de imóveis ociosos entre públicos e privados, portanto poderíamos atender a função social da propriedade sem construir novas unidades", defende a pesquisadora.
De acordo com o Estatuto das Cidades, tanto imóveis públicos quanto privados devem cumprir primeiramente a sua função social, não podendo permanecer fechados. "O Brasil reverencia muito os poderes do proprietário e não faz cumprir a função social da terra, seja rural ou urbana. Temos uma legislação avançada que ainda é aplicada de forma tímida e lenta", analisa Betânia.
Eduardo Solari ressalta que a inexistências de outras regularizações pelo Crédito Solidário pode ser explicado pela crise imobiliária financeira que motivou o governo federal a criar o Minha Casa Minha Vida. "Com as novas políticas habitacionais, o governo passou a destinar 97% dos recursos públicos para as empresas privadas e apenas 3% entidades sociais e cooperativas", critica.
"O programa Minha Casa Minha Vida foi articulado para combater a crise injetando muito dinheiro numa indústria com capacidade de grande geração emprego. Foi uma fórmula boa para este fim mas está longe de solucionar os déficits habitacionais, uma vez que o direito à moradia não abrange apenas a construção de quatro paredes", concorda Betânia.
A advogada aponta que o Minha Casa Minha Vida desconsiderou o posicionamento dos militantes da reforma urbana que condenam a construção de conjuntos habitacionais em áreas afastadas da cidade. "Esse modelo foi herdado pela ditadura militar que visava deslocar os pobres dos centros das cidades e garantir apenas quatro paredes. O Utopia e Luta é um símbolo e uma experiência pioneira que garante o direito ao centro. E isto não é um favor do poder público, estes direitos estão previstos na lei", destaca.
Para o morador do Utopia e Luta, Guilherme Schroeder, é mais barato reformar prédios públicos ociosos em bairros centrais do que criar infraestrutura em áreas afastadas das cidades. "O custo para o governo é sempre mais baixo já que as infraestrutura de água, luz, mobilidade, escolas e hospitais já está consolidada. O Estado gastaria pouco para reformar e conseguiria assentar muitas famílias. Infelizmente, a prioridade é girar a economia", critica.
"Existem muitos interesses em jogo em função da valorização imobiliária que é gerada nesses terrenos nas periferias. Concordo plenamente com a avaliação do movimento, de que existe um estoque de unidades vazias nos centros da cidade dotados de infraestrutura que deixam de ser usados por inércia", completa Betânia.
Utopia e Luta: uma ocupação autogestionária
A ocupação do prédio do INSS ocorreu na madrugada do dia 25 de janeiro de 2005 durante o Fórum Social Mundial em ato político organizado pelo Movimento Nacional da Luta pela Moradia (MNLM). Depois da apropriação, os moradores começaram a se articular na negociação com INSS e governo federal para garantir a regularização fundiária.
Edifício tem lavanderia, espaço cultural euma horta hidropônica comunitária no terraço |
As negociações entre o movimento, Caixa Econômica, Ministério das Cidades e INSS se estenderam por quase três anos. Para garantir a reforma do prédio, a Coopsul encomendou projeto a três empreiteiras que orçaram as obras entre R$1,5 milhão e R$1,8 milhão. O crédito solidário comporta R$ 24 mil por família, valor que somado não atingiria o preço mínimo proposto pelas empresas para transformar as salas do INSS em apartamentos dignos para moradia.
Durante o processo com as empreiteiras, um comprador privado também iniciou negociações paralelas com o INSS. Para reverter a situação, os moradores do Utopia e Luta contataram o governo do Estado, que elaborou um documento demonstrando interesse na compra do imóvel. "Com o documento, ganhamos tempo para que a legislação 11.481, que regulamentou o Programa Crédito Solidário, fosse aprovada", conta Eduardo.
Com o documento assinado pelo então secretário de Habitação do governo Germano Rigotto, Alcir Moreira, o movimento conseguiu pressionar para que a empreiteira baixasse os custos da obra em 50%, com custo final de R$ 719 mil. As famílias aderiram à linha de crédito que possibilitou o financiamento por 20 anos pela Caixa, com recursos do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) do Ministério das Cidades.
As 42 famílias convivem no espaço do edifício de nove andares, sendo que sete são destinados para a residência. Os outros andares oferecem lavanderia comunitária, espaço cultural, além de uma horta hidropônica comunitária no terraço do edifício – a única do país. A Cooperativa Solidária Utopia e Luta (Coopsul) também organiza oficinas de serigrafia, padaria, corte e costura no projeto "Plantando Alternativas, gerando sustentabilidade", com recursos da Petrobras.
Cerca de 100 pessoas residem na comunidade, em apartamentos JK de 30 m² e 25 m². De forma autogestionária, se revezam em tarefas na tentativa de criar um espaço coletivo, em contraposição às formas individualizadas de convivência.
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