O deputado estadual Raul Pont, presidente do PT/RS, esteve em Curitiba no mês de setembro para participar de um seminário na Assembleia Legislativa do Paraná. Ele também participou de discussões na Câmara Municipal de Curitiba e no Diretório Estadual do Partido dos Trabalhadores. Aproveitamos a visita para conversar com ele sobre Democracia.
Pont foi líder estudantil, bancário, funcionário público e dirigente sindical. Fundador do PT, foi deputado federal, deputado estadual, vice-prefeito e prefeito de Porto Alegre.
Leia, a seguir, a entrevista na íntegra:
Quando olhamos a sua trajetória, o que chama a atenção é o sucesso da proposta do Orçamento Participativo. Você pode explicar o que é isso e qual seria a relevância de o OP ser levado a outras cidades?
O que tem marcado todos os protestos e movimentos que a Europa está vivendo hoje – e nós vivemos no Brasil há bastante tempo – isso que vem sendo chamado de “primavera dos povos” ou “primavera do norte da áfrica”? É uma reivindicação por mais democracia. No caso da Espanha, aquele movimento que ficou conhecido como 15 de maio, ou M15, que acampou durante semanas no Centro de Madri, reivindicava o quê? Democracia Real. Democracia real já! Esta era a principal bandeira, a principal palavra de ordem. Quando nós chegamos a um governo, o que nós vemos? Vemos que um sistema de representação clássico (do prefeito, do governador, do presidente, deputados, etc) não dá conta das demandas, da riqueza, da pluralidade que a sociedade quer ver representada.
A par de um processo que já é, por si só, viciado, que já é uma representação cada vez mais indireta e cada vez mais determinada pelo poder econômico, você tem um processo que é natural também, dos partidos, das instituições, irem se burocratizando. Aos poucos, os partidos vão se burocratizando, as instituições vão se burocratizando. Isso faz com que a democracia fique cada vez mais longe. Assim como a complexidade da vida moderna. Quando teve início estado constitucional moderno, qual era o papel do estado? Era o de cuidar das fronteiras, da Ordem Pública, da Justiça, etc. Quem tinha alguma posse resolvia os seus problemas e quem não tinha, estava frito, não resolvia nada. Hoje, são direitos constitucionais a Educação, Saúde, a Assistência Social. A vida urbana é cada vez mais complexa, cada vez mais difícil de ser harmonizada com critérios, normas, regras, regulamentos, planos diretores, sustentabilidade ambiental, etc. Ora, como você faz isso sem aprofundar a democracia? Quando se fala em Orçamento Participativo ou Democracia Participativa, estamos simplesmente respondendo a este diagnóstico. É responder a este diagnostico de uma sociedade cada vez mais plural, mais complexa, seja na vida coletiva, seja na vida pessoal. Antigamente, há uma geração atrás, os temas como a livre orientação sexual, a discriminação racial, assuntos comportamentais, de divorcio, casamento, essas coisas todas estavam fora da política, não eram vistas como problemas da política. Mas são problemas da nossa vida em sociedade. Bem, como você dá conta de tudo isso? Só com Democracia Real, como dizem os espanhóis, com democracia direta, com democracia participativa, como dizemos em Porto Alegre.
Se hoje a gente não governa Porto Alegre, nós governamos outra Porto Alegre, que fica ao redor da Capital, porque o PT governa Canoas, Esteio, Sapucaia, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Gravataí. Quer dizer, todas as grandes cidades ao redor de Porto Alegre são governadas hoje pelo PT com políticas de participação, de decidir orçamento, decidir políticas públicas. Então este é o objetivo do Orçamento Participativo e da Democracia Participativa: é criar mecanismos regionais ou temáticos em que a população, da forma mais direta possível, junto com o Poder Público, administre e governe a cidade. Essa é a síntese. E agora, como é que se faz isso? Cada cidade tem a sua história, tem a sua experiência, cada cidade tem um determinado peso de movimento sindical, de movimento associativo, comunitário. Tem mais ou menos tradição de participação, isso varia muito de cidade para cidade e cada uma vai ter que construir isso com as suas particularidades, mas com um objetivo comum, uma idéia, uma meta comum, que é esta à qual me refiro, que é a meta da participação direta, da ação direta das pessoas, da participação nas políticas públicas.
Mas o primeiro passo é ter a vontade política de construir uma sociedade mais democrática.
Claro, exatamente, o que nos move é isso. As pessoas chegam ao OP muito mais para buscarem melhorias para a sua rua, para a sua creche, a sua unidade de saúde. Mas aos poucos elas vão tomando consciência e vão aprendendo que a vida não é só isso. Vão aprendendo que tem mais coisas neste cotidiano e que tem leis e que tem um orçamento, que existem disputas entre setores distintos da sociedade; que o Estado não tem dinheiro para fazer tudo simultaneamente e que, portanto, é preciso haver hierarquia.
E pra ter hierarquia, é preciso processo de decisão, para estabelecer o que vem primeiro e o que vem depois, e aí é que entra a participação popular. Para nós, o OP é um instrumento poderoso de democratização do dinheiro público, mas mais do que isso, ele também é um instrumento de planejamento.
Existia aqui (no Paraná e em Curitiba) em governos anteriores, principalmente na Era Lerner – ou a Era da “Curitiba Muito Bem Administrada” pela “racionalidade científica” do planejamento – uma experiência que considerávamos um processo muito semelhante ao que foi, historicamente, o despotismo esclarecido. Ou seja, o Rei é Sábio, o rei é bom, o rei faz pelos seus súditos. Ele resolve. O famoso centro de planejamento, como se chamava...
O Ippuc (Instituto de Planejamento Urbano de Curitiba)?
É, o Ippuc. Ali está o conhecimento. Ali está a sabedoria, o domínio técnico. O nosso método é um pouco diferente. Não descartávamos a necessidade do conhecimento científico. Mas ele estava subordinado a um processo de participação popular. Não adianta eu saber que precisa pavimentação, saúde, escola, que a rua tem carências. O importante é que esse cidadão possa ter o direito de expressar a sua vontade de como ele quer resolver, de como ele vai encaminhar as suas prioridades. É uma diferença muito grande.
As duas cidades (Curitiba e Porto Alegre) tiveram reconhecimentos internacionais importantes. Nós optamos por ficar com esta que busca a democracia, a participação popular e queremos levar isso para o Estado, como já fizemos com o Olívio (Olívio Dutra, ex-governador do Rio Grande do Sul) e agora estamos retomando com o Tarso Genro. Quer dizer, são políticas distintas e os resultados, também, são diferentes.
Para a construção de uma sociedade mais democrática, qual a função do Poder Legislativo?
É evidente que uma construção de uma democracia participativa não elimina o problema de que vivemos em uma sociedade representativa. Essa é a Lei, essa é a concepção imposta, que precisa ser cumprida e observada. O problema é ficarmos reféns, dependentes só do Legislativo, da forma como ele funciona, como ele se articula e das relações que ele tem com o Poder Executivo. Ao par disto, o que nós dizemos é que também é preciso por um pé na participação. São construções que, no longo prazo, achamos que esta experiência de participação popular, mais cedo ou mais tarde, vai gerar uma outra institucionalidade, assim como nós já vimos que, nos séculos XVI, XVII, o Sistema Representativo gerou uma outra institucionalidade ao começar a superação do mundo medieval, na Europa, por exemplo.
Quer dizer, se instituiu um outra institucionalidade, que era muito superior, muito melhor que os chamados estados gerais que compunham a sociedade feudal, com os seus estamentos de nobreza, clero e igreja, povo e etc.
O sistema representativo foi um avanço. Os partidos políticos foram um avanço democrático muito grande. Agora temos quanto tempo, 300 anos de experiência de sistema representativo?
Depois do computador, do celular, da ida do homem à lua, depois de tudo o que o avanço tecnológico proporcionou, o domínio que o homem tem sobre a natureza, é justificável que gente continuemos com as mesmas relações sociais? É evidente que não!
A extensão do direito de voto já foi uma conquista. A participação das mulheres, a ruptura com a sociedade patriarcal e machista. Tudo isto vem mudando a vida. E nós queremos um sistema que incorpore essas mudanças. E claro, coexistiria a figura do deputado, do vereador. Eu acho que não é contraditório. No Brasil, como o sistema é presidencial, quem dirige, quem comanda a elaboração e a aplicação do Orçamento é o Poder Executivo, então ele tem mais peso, mais força, tem que ser decisivo para essa vontade política.
Num país como o nosso, se o Executivo não quer, não tem Democracia Participativa.
Se o presidente, o governador ou o prefeito quiserem, é perfeitamente possível de fazer, em qualquer dessas esferas administrativas, e levar adiante um processo de democracia participativa, de OP, de fortalecimento dos conselhos.
Tem que ter vontade política mesmo, tem que ter compromisso. O que significa pro prefeito, pro governador, devolver uma soberania recebida. Não é fácil isso. Ninguém quer perder poder, abrir mão do seu poder de indicação, de decisão. No momento em que eu chamo a comunidade e devolvo a ela o poder de discutir e decidir, eu estou perdendo poder. Mas eu faço isso conscientemente com a idéia de que isso vai construir, criar as condições para a gente organizar uma nova sociedade, uma nova forma de institucionalizar o poder.
Essa discussão é lenta. Ocorre devagar. Não é um tema que agrade a grande imprensa, mas a gente está avançando.
O PT avançou no caminho da democracia participativa, com as alterações estatutárias aprovadas no último congresso do partido?
Um pouco. Nós não avançamos muito no Governo Federal. Eu acho que já teria espaço para termos avançado mais. Por enquanto, fizemos uma experiência razoável na discussão do Plano Plurianual (PPA), no primeiro governo do Lula. De lá pra cá, no Orçamento Anual, nas Diretrizes Orçamentárias, o Governo ficou devendo. Daria pra ter feito mais. Mas, enfim, a gente sabe que como o Brasil tem um sistema eleitoral muito perverso, anacrônico, antidemocrático, que distorce completamente a representação política da cidadania, comparando, por exemplo, com o voto no Poder Executivo, a gente sabe que não adianta só ter vontade. Tem que ter estrutura, força política espalhada, presença em todos os ministérios, pra conseguir puxar coisas desse tipo.
É inegável que o governo encampou muitas políticas que a gente defende e vem propagandeando, mas ele ficou aquém da necessidade, principalmente neste aspecto da participação popular.
Vivemos um momento bastante complicado na Câmara Municipal de Curitiba. O presidente da Casa é acusado de cometer uma série de irregularidades. Tendo essa crise em vista, qual deveria ser a postura do gestor público (sob investigação) nesse tipo de situação?
A ação de governo, a gestão publica ou a ação parlamentar, são funções essencialmente públicas e, portanto, tem que estar subordinadas à fiscalização e ao controle do eleitor, do cidadão, permanentemente. E não pode ser justificativa para qualquer partido ou qualquer eleito, de que ele tem mandato e de que ele não precisa prestar contas, que ele se elegeu sozinho, etc. Não é verdade. Não tem isso! 99% das candidaturas só chegam a um mandato nas câmaras municipais, assembléias legislativas ou no congresso nacional graças ao voto de legenda, ao voto coletivo, ao voto conjunto dos seus colegas de campanha eleitoral. Não tem essa de que esse processo é individual. É essencialmente coletivo. E se é coletivo, tem que ser aberto, público, transparente. E os mecanismos vão desde o Ministério Público ao Tribunal de Contas.
Todos esses mecanismos devem estar sempre azeitados e funcionando. É o próprio controle organizado da população. O nosso partido, por exemplo, quando governa, tem um compromisso programático de ser controlado pela população, da forma mais democrática possível.
As assembléias do orçamento participativo, dos conselhos municipais, os mais variados que se criam, a rede de serviços que você pode montar no município a partir de entidades da própria sociedade civil conveniadas com o governo para prestar serviços diversos, ou seja, existe uma infinidade de formas em que as pessoas podem atuar, se organizar e estarem presentes, se sentirem protagonistas também daquele governo.
Eu sou defensor de que a prestação de contas precisa ser apresentada publicamente pelo eleito. Além do tribunal de contas, desses mecanismos, ele tem precisa ter a obrigação e a iniciativa de se apresentar para a população de maneira organizada, com boletins, panfletos, buscando as suas principais bases eleitorais, para que elas tomem conhecimento do que está sendo feito, de quanto ele custa para o país. Essas coisas são fundantes de uma ética de um partido como o nosso. Não é fácil garantir isso, é uma disputa permanente.
Para terminarmos, que mensagem você deixa para os nossos leitores?
Depois de tantos governos tecnocráticos, a população de Curitiba precisa viver uma experiência de democracia participativa. Para poder testar. Para poder avaliar o que é melhor para a sua vida, seus interesses. Isso pode ser alcançado com uma boa vitória do PT aqui na cidade. Ano que vem, existe uma grande chance de que as pessoas possam experimentar isso. Nosso papel é estimulá-los a tanto.
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