Nas últimas três décadas, a expectativa de vida do brasileiro, hoje de 73,5 anos em média, aumentou 11 anos, um sinal de que é possível aliar o crescimento econômico com o desenvolvimento social do país. Mesmo assim, o Brasil se encontra abaixo da média da América Latina, só superando a África e Ásia.
A queda da mortalidade infantil e a redução da taxa de fecundidade fizeram aumentar a população de idosos acima de 70 anos. A incorporação feminina ao mercado de trabalho urbano, a elevação dos níveis educacionais das mulheres e a ampliação do acesso à rede pública de saúde, em que pesem as mazelas do Sistema Único de Saúde, mudaram a realidade demográfica brasileira e promoveram uma revolução silenciosa nos comportamentos e nas relações sociais.
Mas existem desigualdades abissais. As mulheres menos instruídas da região Norte, as pretas e as pardas, menos escolarizadas e mal remuneradas, apresentam taxas de fecundidade muito acima da atual média brasileira, de 1,94 filhos. Os jovens negros e mulatos morrem mais cedo, dizimados pela violência. A qualidade de vida do idoso varia por raça, pois depende do nível de renda, do acesso aos bens públicos, aos serviços de saúde e à proteção social.
A persistência de desigualdades injustas, expressas em iniqüidades regionais, de gênero e de raça demonstram a urgência de o Brasil redirecionar suas políticas públicas para torná-las, de fato, universais.
O recente Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil, coordenado pelo pesquisador Marcelo Paixão, da UFRJ , ilustra como uma política pública pode tanto diminuir quanto perpetuar as desigualdades.
No caso da cobertura previdenciária, ela é claramente influenciada pela inserção no mercado de trabalho, o que favorece a cobertura da população masculina branca, que predomina no mercado formal. No entanto, a criação da condição de segurado especial assegurou a ampliação da cobertura de maior proporção de pretos e pardos, inclusive com maior inclusão de mulheres negras. A elevação do valor do salário mínimo, que condiciona o valor destes benefícios, funciona como um importante redutor das desigualdades sociais de raça e de gênero.
Introduzido nos anos 1990, o fator previdenciário vinculou o acesso à aposentadoria ao envelhecimento da população, visando a sustentabilidade financeira da previdência. Assim, cada aumento da expectativa de vida implica em aumento do tempo necessário de contribuição, para manutenção do mesmo valor do benefício.
Muitos tem comemorado o aumento na expectativa de vida no Brasil, sem considerar o impacto desse indicador na reprodução das iniqüidades raciais.
Basta um olhar atento sobre as enormes diferenças na pirâmide demográfica dos idosos. Os brancos com mais de 80 anos representam 60,8% do total. Os pretos e pardos são apenas 38,7%, pois têm uma expectativa de vida bem menor e serão, por isso, severamente prejudicados pelo aumento do fator previdenciário.
Assim, uma parcela de cidadãos mais vulneráveis da sociedade terá que trabalhar mais tempo para gozar o benefício por menos tempo.
Ou seja, ao desconsiderar as diferenças raciais em relação à expectativa de vida, o fator previdenciário é um fator de discriminação racial no Brasil. Tal evidência não pode ser ignorada pelas políticas públicas, sob o risco de ficar cada vez distante a meta de alcançar um país mais justo.
Sônia Fleury é doutora em Ciência Política e professora titular da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
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