Paulo Moreira Leite na Época
O debate sobre a criação de um imposto sobre as grandes fortunas, que poderia ser de grande utilidade para reforçar o dinheiro da saúde pública, esbarra numa visão política dos milionários brasileiros sobre si próprios.
Eu, você e a torcida do Flamengo, do Corinthians, do Palmeiras, do Vasco….não queremos pagar mais impostos. Detestamos. (Na verdade, eu acho até que muita gente faz do imposto de renda um alvo exagerado e não percebe que, muitas vezes, é o salário que está baixo e não o imposto que se tornou muito alto. Mas voltemos ao assunto inicial).
Se nós não gostamos de pagar muito imposto, alguns brasileiros muito ricos tem outra postura: simplesmente não admitem pagar mais impostos.
Claro que seria errado generalizar. Existem brasileiros muito ricos com plena consciência de seus deveres e seus direitos. Acham natural que, após amealhar rendimentos imensos, sejam chamados a dar uma nova contribuição à sociedade.
Uma boa parcela, contudo, encara a coisa como ofensa pessoal, falta de consideração com sua condição social. E eles tem meios para impor seu ponto de vista.
Alegam que rico no Brasil é perseguido, invejado. E é por isso, dizem, que periodicamente surge o debate sobre o imposto das grandes fortunas. Você pode achar que estou exagerando mas não se engane. A visão que os muito ricos têm de sua própria situação é tão individualizada, auto suficiente, que muitos acreditam que o problema é de ressentimento. Não conseguem enxergar uma questão objetiva mais elevada, uma forma redistribuição de renda, praticada em muitos países que em outras ocasiões até são apontados como exemplo de desenvolvimento equilibrado.
Eles podem até considerar razoável dar um pouco mais de recursos para a saúde pública mas não acreditam que essa parte deva sair de seus bolsos.
Meses atrás, nos Estados Unidos e na França, os bilionários locais vieram a público para dizer que aceitariam dar uma maior contribuição ao imposto de renda de seus países.
No Brasil isso não acontece nem poderia.
Pagar impostos significa, de uma forma ou de outra, aceitar uma relação de compromisso com o conjunto da sociedade, representada pelo Estado. Você se submete a uma maioria, representada por um governo eleito.
Mas muitos de nossos muito ricos não pensam assim. Colocam-se acima da sociedade e da lei. Olhando o retrospecto, é possível dizer que estão errados?
Acredito que, se a legislação sobre grandes fortunas for aprovada, não faltarão advogados para tentar derrubá-la com o argumento surrealista no caso de que todos são iguais perante a lei. Duvida?
Faça uma antologia das últimas decisões do Judiciário envolvendo senhores de “grossa fortuna”, como se dizia antigamente, e tire suas próprias conclusões. Pergunte quantos foram parar na cadeia. Quantos tiveram de entregar recursos do próprio bolso para honrar prejuízos que cairam nos ombros de funcionários ou consumidores.
Nossos muito ricos têm um imenso poder de influencia para fazer valer sua vontade. Além das bancadas amigas no Congresso e no judiciário, têm advogados especialisados em diminuir a própria carga tributária. Podem redistribuir seus rendimentos para pagar menos. Também podem reinvestir o imposto a pagar. Assim, elevam os rendimentos futuros e pagam menos impostos em relação ao passado. Têm um imenso arsenal de recursos — legais — para dissimular propriedades, rendimentos e investimentos.
A partir de uma faixa de renda impensável para mortais comuns — o patamar começa em torno de R$ 5 millhões por ano conforme algumas estimativas — é possivel não pagar imposto algum.
Entre os argumentos contra o imposto sobre as grandes fortunas, a maioria representa uma humilhação para a maioria da sociedade.
O mais conhecido é dizer que cobrar esse imposto é um esforço inútil, porque os potenciais ultra contribuintes sempre darão um jeito de escapar da malha da receita, seja em contas no exterior, seja em investimentos encobertos. É humilhante porque implica numa tentativa de impor a ideia que os muito ricos sempre serão bem sucedidos em garantir a própria impunidade. Podemos até concordar com essa observação, pois a Justiça só é cega nas estatuas de mármore que enfeitam nossos tribunais. Mas não é por causa da alta periculosidade de determinado cidadão que se deve desistir de enquadrá-lo em padrões universais de justiça.
Outro argumento é dizer que, mesmo que fosse cobrado, o imposto renderia tão pouco que o retorno não valeria a pena. Não confere, tecnicamente. Alguns cálculos dizem que este imposto poderia render R$ 80 bilhões a mais para a Receita. Mesmo que essa estimativa esteja exagerada, e mesmo que se admita o mais alto grau de sonegação possível, como é regra no país inteiro, uma visão sensata dos impostos ensina que se deve cobrar mais de quem ganha mais e só depois discutir o que se faz com os recursos a mais que entraram no cofre.
O terceiro argumento é grotesco. Consiste em dizer que está tudo certo com os recursos da saúde pública — o problema é encontrar gerentes competentes. Não dá para começar a discussão porque, no Brasil, a saúde privada consome 45% das receitas para atender 25% da população.
Envergonhado porque paga relativamente menos impostos do que sua secretária, o bilionário americano Warren Buffett publicou um artigo pedindo para pagar mais — não para reclamar que o dinheiro não era bem empregado, mas porque era cobrado de forma injusta.
O ponto é este. Na Europa, nos Estados Unidos, o debate sobre impostos dos muito ricos é econômico e social. No Brasil, envolve força política e prestígio individual. Acredite: é muito mais delicado.
Leia aqui um bom artigo mais sobre o imposto sobre as grandes fortunas e financiamento do SUS:
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