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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Próteses e papos furados






O "Le Monde", em 12 de janeiro, denominou o Brasil de terra da cirurgia estética e reino dos seios de silicone. O comentário ressalta que as instalações assépticas da empresa distribuidora da PIP (Poly Implant Prothèse) são circundadas pelo ambiente degradado da favela de Vigário Geral. Do lado de cá, a indignação dos adeptos da ênfase nas disparidades sociais manifestou-se sob a forma de perguntas sobre as prioridades assistenciais. Segundo a ótica da pobreza versus riqueza seria injusto o SUS pagar mudanças das próteses para uma minoria de mulheres jovens e saudáveis e deixar de lado o atendimento a crianças, idosos e doentes graves.
Uma segunda vertente interpretativa concedeu ênfase aos malefícios à saúde provocado pelas próteses, quer utilizadas em cirurgias reparadoras de mutilações involuntárias decorrentes do câncer de mama, quer no turbinamento do volume dos seios motivado pelo desejo de uma nova estética corporal. Desse ponto de vista, os riscos dos implantes são sociais e justificam medidas preventivas e a substituição das próteses. Se a saúde é direito de todos e dever do Estado, todos os brasileiros pobres ou ricos que estejam sob risco do uso de silicone de diferentes origens, incluindo travestis, deverão, sem preconceito de nenhuma natureza, usufruir cuidados gratuitos de instituições públicas e privadas de saúde.
O terceiro enfoque questionou, a partir de fatos similares, a associação negativa das cirurgias plásticas com a opressão estética de mulheres do segmento participantes ou expectadoras do Big Brother. Das duas uma: ou as pressões estéticas/fotográficas são tão generalizadas que obrigam inclusive os mais destacados e poderosos políticos, artistas executivos e médicos de ambos os sexos a se submeterem ao botox e ao bisturi ou quem conserva rugas, seios flácidos ou pequenos, estrias, barriguinhas e barrigonas resiste às inovações. Nesse sentido, a naturalidade da discussão sobre a excelente qualidade da plástica da presidente da República pode ser encarada como uma madura demonstração de respeito ao livre-arbítrio.
Desde dezembro até agora houve mudanças de opinião sobre o uso do silicone. Mais e melhores informações contribuíram para ampliar as manifestações de simpatia pelas vítimas de diversos países. Aos poucos, radicais divergências foram decantadas. Deu-se a cada um pouco de razão, prevaleceu a solidariedade e avançamos. Já as polêmicas em torno dos números divulgados pelo IBGE são derivadas de projetos societais distintos.
Para quem julga que a intervenção estatal na saúde deva se limitar ao atendimento aos pobres, gastar 8% do PIB com saúde é, em si, um indicador positivo. Confirma que a privatização da saúde contextualizada pelo deslocamento da pirâmide de renda para cima trouxe e trará prosperidade às empresas setoriais. As três edições das contas satélites da saúde (2007 a 2009) evidenciam o ajuste das informações à aposta de alcançar uma correspondência formal entre renda individual ou familiar e cobertura assistencial. Em contraste, os defensores dos sistemas universais de saúde vêem na distribuição dos recursos para a saúde (45% gastos públicos e o restante privado) sinais de estagnação e crise. O racionamento de gastos públicos deixa o Brasil no meio do caminho. Nem a saúde é um direito efetivo de cidadania, nem o sistema privado mantém-se independente de subsídios públicos. Dada a polarização subjacente às analises de números que não mentem, sobram elementos para estimular um debate profundo sobre o sistema nacional de saúde que não se concentra em torno do falso dilema financiamento ou gestão.
Mas, a pressa em gerenciar com suposta eficiência alguns problemas, especialmente aqueles apresentados sob o formato de escândalos, abrevia o tempo de decantação dos conflitos. Sem a explicitação das ideias e interesses que fundamentam interpretações e ações ficamos sem saber se o SUS se responsabilizará pelos vazamentos das próteses, porque o Brasil tem um sistema universal de saúde, ou se a intervenção governamental foi tópica e voltada apenas à correção de uma pequena falha do mercado. Essa não é uma disjuntiva teórica. Faz toda diferença, na prática, organizar um sistema de saúde bem gerenciado e, portanto, capaz de prever estrategicamente a absorção de novas demandas ou ativar atividades fragmentadas, dinamizadas por inclusões pontuais de benefícios para grupos populacionais específicos. 
Um dos maiores desafios gerenciais do SUS é exatamente despolitizar iniciativas que deveriam ser administrativas. Se o uso de procedimentos de saúde e medicamentos continuar enquadrado como mera relação de consumo, e a proteção contra riscos à saúde depender, exclusivamente, de decisões de quem ocupa o cargo de presidente da República, o SUS terá um gerenciamento inadequado. Posicionamentos plastificados de acordo com as circunstâncias e com o público ouvinte vazam. As declarações da OAB, de entidades médicas e diversas associações cientificas sobre o reinicio da luta pelo SUS universal contribuem para vedar furos nos argumentos e estabelecer uma atmosfera favorável ao papo sério.

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