via Blog do CEBES
POLITIZANDO: Como mediar a convivência público/privado na provisão de um bem como a saúde?
Profa. Maria Fátima: Devemos mediar segundo os valores e princípios de que as políticas públicas no Estado brasileiro são fundadas no atendimento das necessidades e direitos humanos básicos (CF de 1988; Art. 6o - Direitos Sociais); logo, compete ao Estado assegurar a saúde para todos como dever de proteção de cada indivíduo, família e comunidade no tocante a atenção à saúde. Portanto, a presença do setor privado deve ser complementar. E mais, convém esclarecer que no SUS todos os serviços de assistência à saúde podem ser complementados mediante contrato ou convênio com terceiros, pessoas físicas ou jurídicas, desde que comprovada a insuficiência desses serviços pelos entes públicos responsáveis pela saúde (art. 24 da Lei 8.080/90). Com isso, reafirmo que o Estado deve garantir o acesso universal a bens e serviços essenciais à dignidade humana, não garantida pelo mercado. E quando for necessária a presença do mercado, o Estado deve assumir seu papel regulador e protetor da saúde dos seus cidadãos e cidadãs.
POLITIZANDO: O crescimento do mercado de planos privados causa impacto no âmbito da Atenção Básica? Em que sentido?
Profa. Maria Fátima: Causa impacto no âmbito do Sistema Único de Saúde, não necessariamente na Atenção Básica. Essa parte do sistema não interessa ao mercado porque não é rentável no tocante aos procedimentos ofertados. Atenção Básica é o lugar da prevenção e promoção da saúde em essencial. O setor privado cuida da doença e de suas terapêuticas, essa sim é a parte do “bolo” que lhe interessa. Agora o crescimento dos planos de saúde vem fragilizando o SUS na medida em que reforça o imaginário coletivo de que eles são “seguros, resolutivos...”, sobretudo a população de 30 milhões de pessoas que saiu da linha da pobreza e que hoje é potencial “consumidora” dos planos de saúde. Isso sim convoca a todos nós, defensores do SUS, a continuar nossa permanente luta pelo sistema universal, gratuito, equânime, resolutivo e humanizado, deixando o setor privado sem subsídio dos recursos públicos, sob o marco regulatório do Estado, sim, como complementar.
POLITIZANDO: De que forma os profissionais graduados em saúde coletiva podem atuar neste ambiente de provisão de cuidados marcado pela convivência entre o público e o privado?
Profa. Maria Fátima: Penso que graduados em saúde coletiva devem ser formados para operar no SUS, defendendo seus valores e princípios doutrinários. Assim podem contribuir com seus processos organizativos de forma a assegurar o sistema como um patrimônio nacional a serviço de todos os brasileiros, como um dever de nação/estado, por um lado. Por outro lado, deve ser um profissional competente, ético e socialmente comprometido com a justiça social. A partir desse lugar devem estabelecer uma relação saudável entre o público e o privado, orientados por dois pensamento/ação: primeiro compreender que atenção básica à saúde, universal e de alta resolutividade (85 – 90% das necessidades de saúde) deve ser a ordenadora do sistema e serviços públicos de saúde; segundo, que as redes de atenção à saúde devem ser integradas (serviços assistenciais de média e alta complexidade); esses podem ser complementados pelo setor privado, diretamente, ou por meio de serviços não lucrativos, desde que sejam totalmente voltados e regulados para o interesse público, para a proteção das famílias brasileiras.
POLITIZANDO: Tendo em vista a Constituição Federal de 1988, que incorporou muito das idéias do Movimento Sanitário, no capítulo da Saúde, por que o mercado de planos privados cresce de forma tão pujante no Brasil?
Profa. Maria Fátima: Porque o setor privado nunca deixou de ser forte e presente no Sistema de Saúde do Brasil. Vejamos: Primeiro, o Estado subsidia o plano de natureza mercadológica quando isenta do pagamento de imposto de renda. Nesse caso não se inclui apenas as instituições filantrópicas. Segundo, quando deduz do imposto de renda pessoa física no tocante às “despesas” com saúde. Terceiro, quando os setores do Estado/governo ofertam planos privados para seus servidores (por exemplo, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário), além dos incentivos ao chamado parque tecnológico de apoio diagnóstico e terapêutico. Quarto, quando o mercado de planos de “saúde” usa o SUS e não faz seu devido ressarcimento. Assim, o mercado cresce livremente. Aí reside o risco de consolidação do SUS como um sistema universal e digno de todos os brasileiros. É preciso corrigir esse desvio.
POLITIZANDO: Qual a sua opinião acerca da afirmativa de que o Sistema de Saúde Brasileiro é sub-financiado no âmbito público e superfinanciado no âmbito particular?
Profa. Maria Fátima: Os argumentos que apresentei na questão acima explicam em parte sua pergunta. Afinal, vivemos em permanente tensão entre o Estado, Governo e o setor privado. Alguns governos (mais progressistas) defendem o SUS, ainda que parcialmente; outros (mais ao centro/direita) tendem a fragilizá-lo, quando subsidiam os gastos privados com seguro privado de saúde, principalmente quando utilizam da “falácia” de contenção de gastos público para evitar crises macroeconômicas. Os movimentos pela regulmentação da Emenda Constitucional 29 (EC-29) são reveladoras dessa tensão, na qual a tendência é financiar o básico, continuando o sub-financiamento do setor público e a liberação do mercado. Assim faz sentido a expressão máxima: o SUS para os pobres e o setor privado para os ricos, muitas vezes subtraindo dos pobres. É o caso da porta dupla dos Hospitais Universitários. Naquilo que afirma Ligia Bahia: “entre os elementos que originaram as duplas portas de entrada destacam-se, para além do sub-financiamento do SUS, a concepção sobre a existência da divisão da população brasileira para fins de atenção à saúde em “não pagantes” e pagantes e a noção sobre a legitimidade e virtuosidade da “venda” de serviços de hospitais públicos”.
POLITIZANDO: Que perspectivas se vislumbram, neste cenário de convivência entre público e privado? A participação social pode mudar esse cenário? Ou as políticas públicas de regulação são suficientes?
Profa. Maria Fátima: O que pode- mos projetar é voltarmos às ruas defendendo o SUS. Em um movi- mento civilizatório de proteger um sistema que, historicamente, foi construído com muitas lutas sociais. E para isso muitas vidas foram perdidas ou esquecidas na trajetória desses 30 anos. Tempo marcado por fortes movimentos sociais, nos quais a participação dos diversos setores foi orientada por um bem comum: a democratização do setor saúde e a criação do Sistema público, universal, integral, equânime e socialmente construído por todos os brasileiros. Essa é uma ética que devemos reimprimir. A ética da urgência em defesa da vida e de um sistema que possa protegê-la em todas as suas dimensões, tempo e lugar.
* Entrevistada aplicada por: Elizabeth S. C. Hernandes
Maria de Fátima é Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília (UnB) mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba- (UFPB), especialista em Saúde Coletiva e graduada em Enfermagem pela UFPB (1986). Atualmente é professora do Departamento de Saúde Coletiva, da Faculdade de Ciências da Saúde, da UnB, e coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde Pública (NESP) da mes- ma Universidade, onde implantou a Unidade de Estudos e Pesquisas em Saúde da Família (UEPSF). Foi gerente nacional do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e assessora no Programa Saúde da Família (PSF), junto ao Ministério da Saúde (1994-2001). Atuou como consultora especializada nas Secretarias Municipais de Saúde e do Verde e Meio Ambiente, ambas em São Paulo. Tem experiência no campo da Saúde Coletiva, com ênfase em políticas públicas de saúde, modelos de atenção à saúde e gestão de sistemas locais de saúde.
Profa. Maria Fátima: Devemos mediar segundo os valores e princípios de que as políticas públicas no Estado brasileiro são fundadas no atendimento das necessidades e direitos humanos básicos (CF de 1988; Art. 6o - Direitos Sociais); logo, compete ao Estado assegurar a saúde para todos como dever de proteção de cada indivíduo, família e comunidade no tocante a atenção à saúde. Portanto, a presença do setor privado deve ser complementar. E mais, convém esclarecer que no SUS todos os serviços de assistência à saúde podem ser complementados mediante contrato ou convênio com terceiros, pessoas físicas ou jurídicas, desde que comprovada a insuficiência desses serviços pelos entes públicos responsáveis pela saúde (art. 24 da Lei 8.080/90). Com isso, reafirmo que o Estado deve garantir o acesso universal a bens e serviços essenciais à dignidade humana, não garantida pelo mercado. E quando for necessária a presença do mercado, o Estado deve assumir seu papel regulador e protetor da saúde dos seus cidadãos e cidadãs.
POLITIZANDO: O crescimento do mercado de planos privados causa impacto no âmbito da Atenção Básica? Em que sentido?
Profa. Maria Fátima: Causa impacto no âmbito do Sistema Único de Saúde, não necessariamente na Atenção Básica. Essa parte do sistema não interessa ao mercado porque não é rentável no tocante aos procedimentos ofertados. Atenção Básica é o lugar da prevenção e promoção da saúde em essencial. O setor privado cuida da doença e de suas terapêuticas, essa sim é a parte do “bolo” que lhe interessa. Agora o crescimento dos planos de saúde vem fragilizando o SUS na medida em que reforça o imaginário coletivo de que eles são “seguros, resolutivos...”, sobretudo a população de 30 milhões de pessoas que saiu da linha da pobreza e que hoje é potencial “consumidora” dos planos de saúde. Isso sim convoca a todos nós, defensores do SUS, a continuar nossa permanente luta pelo sistema universal, gratuito, equânime, resolutivo e humanizado, deixando o setor privado sem subsídio dos recursos públicos, sob o marco regulatório do Estado, sim, como complementar.
POLITIZANDO: De que forma os profissionais graduados em saúde coletiva podem atuar neste ambiente de provisão de cuidados marcado pela convivência entre o público e o privado?
Profa. Maria Fátima: Penso que graduados em saúde coletiva devem ser formados para operar no SUS, defendendo seus valores e princípios doutrinários. Assim podem contribuir com seus processos organizativos de forma a assegurar o sistema como um patrimônio nacional a serviço de todos os brasileiros, como um dever de nação/estado, por um lado. Por outro lado, deve ser um profissional competente, ético e socialmente comprometido com a justiça social. A partir desse lugar devem estabelecer uma relação saudável entre o público e o privado, orientados por dois pensamento/ação: primeiro compreender que atenção básica à saúde, universal e de alta resolutividade (85 – 90% das necessidades de saúde) deve ser a ordenadora do sistema e serviços públicos de saúde; segundo, que as redes de atenção à saúde devem ser integradas (serviços assistenciais de média e alta complexidade); esses podem ser complementados pelo setor privado, diretamente, ou por meio de serviços não lucrativos, desde que sejam totalmente voltados e regulados para o interesse público, para a proteção das famílias brasileiras.
POLITIZANDO: Tendo em vista a Constituição Federal de 1988, que incorporou muito das idéias do Movimento Sanitário, no capítulo da Saúde, por que o mercado de planos privados cresce de forma tão pujante no Brasil?
Profa. Maria Fátima: Porque o setor privado nunca deixou de ser forte e presente no Sistema de Saúde do Brasil. Vejamos: Primeiro, o Estado subsidia o plano de natureza mercadológica quando isenta do pagamento de imposto de renda. Nesse caso não se inclui apenas as instituições filantrópicas. Segundo, quando deduz do imposto de renda pessoa física no tocante às “despesas” com saúde. Terceiro, quando os setores do Estado/governo ofertam planos privados para seus servidores (por exemplo, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário), além dos incentivos ao chamado parque tecnológico de apoio diagnóstico e terapêutico. Quarto, quando o mercado de planos de “saúde” usa o SUS e não faz seu devido ressarcimento. Assim, o mercado cresce livremente. Aí reside o risco de consolidação do SUS como um sistema universal e digno de todos os brasileiros. É preciso corrigir esse desvio.
POLITIZANDO: Qual a sua opinião acerca da afirmativa de que o Sistema de Saúde Brasileiro é sub-financiado no âmbito público e superfinanciado no âmbito particular?
Profa. Maria Fátima: Os argumentos que apresentei na questão acima explicam em parte sua pergunta. Afinal, vivemos em permanente tensão entre o Estado, Governo e o setor privado. Alguns governos (mais progressistas) defendem o SUS, ainda que parcialmente; outros (mais ao centro/direita) tendem a fragilizá-lo, quando subsidiam os gastos privados com seguro privado de saúde, principalmente quando utilizam da “falácia” de contenção de gastos público para evitar crises macroeconômicas. Os movimentos pela regulmentação da Emenda Constitucional 29 (EC-29) são reveladoras dessa tensão, na qual a tendência é financiar o básico, continuando o sub-financiamento do setor público e a liberação do mercado. Assim faz sentido a expressão máxima: o SUS para os pobres e o setor privado para os ricos, muitas vezes subtraindo dos pobres. É o caso da porta dupla dos Hospitais Universitários. Naquilo que afirma Ligia Bahia: “entre os elementos que originaram as duplas portas de entrada destacam-se, para além do sub-financiamento do SUS, a concepção sobre a existência da divisão da população brasileira para fins de atenção à saúde em “não pagantes” e pagantes e a noção sobre a legitimidade e virtuosidade da “venda” de serviços de hospitais públicos”.
POLITIZANDO: Que perspectivas se vislumbram, neste cenário de convivência entre público e privado? A participação social pode mudar esse cenário? Ou as políticas públicas de regulação são suficientes?
Profa. Maria Fátima: O que pode- mos projetar é voltarmos às ruas defendendo o SUS. Em um movi- mento civilizatório de proteger um sistema que, historicamente, foi construído com muitas lutas sociais. E para isso muitas vidas foram perdidas ou esquecidas na trajetória desses 30 anos. Tempo marcado por fortes movimentos sociais, nos quais a participação dos diversos setores foi orientada por um bem comum: a democratização do setor saúde e a criação do Sistema público, universal, integral, equânime e socialmente construído por todos os brasileiros. Essa é uma ética que devemos reimprimir. A ética da urgência em defesa da vida e de um sistema que possa protegê-la em todas as suas dimensões, tempo e lugar.
* Entrevistada aplicada por: Elizabeth S. C. Hernandes
Maria de Fátima é Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília (UnB) mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba- (UFPB), especialista em Saúde Coletiva e graduada em Enfermagem pela UFPB (1986). Atualmente é professora do Departamento de Saúde Coletiva, da Faculdade de Ciências da Saúde, da UnB, e coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde Pública (NESP) da mes- ma Universidade, onde implantou a Unidade de Estudos e Pesquisas em Saúde da Família (UEPSF). Foi gerente nacional do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e assessora no Programa Saúde da Família (PSF), junto ao Ministério da Saúde (1994-2001). Atuou como consultora especializada nas Secretarias Municipais de Saúde e do Verde e Meio Ambiente, ambas em São Paulo. Tem experiência no campo da Saúde Coletiva, com ênfase em políticas públicas de saúde, modelos de atenção à saúde e gestão de sistemas locais de saúde.
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