por Pedro Tourinho(*) no Vi o Mundo
Nas últimas semanas um vídeo que mostra um parto humanizado, feito em casa e sob assistência de uma equipe especializada vem ganhando enorme repercussão nas redes sociais. Até agora já são mais 1 milhão 850 mil visualizações. Refletindo sobre a repercussão deste vídeo, os milhares de comentários emocionados e emails que a família vem recebendo, pode-se pensar se toda essa repercussão não seria de fato um sintoma, expressão de um desejo amplamente disseminado, mas que pouco se manifesta, de termos esse momento tão marcante e mágico que é o parto tratado de forma mais humana, com maior presença de quem se ama e maior autonomia para a mulher.
Experiências de humanização do parto, como a maravilhosa experiência vivida por Sabrina, Fernando e Lucas no vídeo, existem por todo o Brasil, mas ainda possuem caráter marginal, restrito a pequena parte da população. Convivemos com uma situação em que 25% das mulheres relatam algum tipo de mau-trato durante o parto. Essa é a realidade brasileira, tanto no Sistema Único de Saúde quanto serviços privados. A redução da mortalidade materna é o único objetivo do milênio que não será atingido pelo Brasil até 2015. Nosso pais é campeão mundial em partos cesárea. Cerca de 50% dos partos realizados no Brasil são partos cesárea, sendo que na rede privada a taxa chega a mais de 80%!
Frequentemente estes partos são marcados com meses de antecedência e grande parte das vezes, a possibilidade da realização de um parto normal, fisiológico e saudável não é sequer oferecida às gestantes e pais. Um parto natural, então, nem sequer é cogitado. Quando realizado sem indicação precisa, o parto cesárea está associado maior mortalidade materna e neonatal, ao aumento da dor no pós parto, maior necessidade de intervenções médicas e maior risco de prematuridade do bebê. Atualmente uma parte importante das mortes de mães e bebês está associada não à falta de assistência, mas a procedimentos cirúrgicos desnecessários.
A realidade atual se dá em grande parte pelo reconhecimento e tratamento da gravidez como uma doença, seja por parte dos profissionais da saúde, ou por parte da população. Disso decorre uma rede de cuidados à gestante que, frequentemente, opera focada em procedimentos burocráticos, no qual se enfatiza os aspectos negativos da gravidez, como os riscos de adoecimento e complicações. A dimensão humana, cuidadora, o compartilhamento dos processos de transformação e a preparação cuidadosa para o momento do parto e para os primeiros cuidados com o bebê acabam ficando na maioria das vezes relegados ao segundo plano, quando são abordados.
De certa forma, o parto de Sabrina vem afirmar justamente o contrário de tudo isso. Revela uma aposta em um pré-natal minunciosamente realizado, no estabelecimento de uma relação amorosa com a gestação, com o bebe e com o próprio corpo. A gravidez e o parto se manifestam como processos vitais, fisiológicos e potentes que as mulheres têm a sorte de poder experimentar. Ilustra ainda uma imensa generosidade e solidariedade, com a participação ativa, constante do pai, a presença e o cuidado atento de profissionais bem treinadas e pacientes. Ao fim das contas, o parto acaba sendo uma potente reafirmação da vida, vivida e criada.
A poesia e emoção compartilhadas por mais de um milhão e meio de pessoas também nos desafia: como tornar acessíveis a todos experiências como a do vídeo? Como transformar essas experiências e iniciativas de sucesso em políticas públicas?
Serviços e equipes que defendem o parto humanizado enumeram alguns princípios, que poderiam ser aplicados a todos os pontos das rede de cuidado à saúde das gestantes. Dentre estes estão: a valorização da experiência humana; a mulher e a família como centros da atenção; fortalecimento da mulher como cidadã, resgate das características fisiológicas e naturais do nascimento; práticas baseadas em evidências científicas; trabalho em equipe multiprofissional.
É preciso, em síntese, que as mulheres tenham direito à gravidez desejada, assistida, segura e com liberdade de escolher os acompanhantes na hora do parto, que tenham respeitado o direito ao parto normal ou natural, que as doulas tenham seu trabalho reconhecido e legitimado pelo sistema de saúde, que a possibilidade de inserção de partos domiciliares realizados por médicos, obstetrizes ou enfermeiros obstétricos comece a ser discutida como uma possibilidade segura no SUS, e por fim, que as mulheres tenham a tranquilidade de poder contar com todas as técnicas mais avançadas se a situação clínica assim exigir.
Em seu texto de apresentação ao vídeo, Sabrina nos fala que “seu caso virou sua causa”. Que essa causa seja a causa de todas as centenas de milhares de pessoas que já tiveram o privilégio de ver, com seus próprios olhos, que ter um filho pode ser, simplesmente, humano.
Enquanto ainda se fizer necessário humanizar o que é essencialmente humano, é preciso que façamos dessa também a nossa causa.
(*)Pedro Tourinho é médico sanitarista e membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS), onde representa Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG)
PS do Viomundo: Sabrina é terapeuta ocupacional. A decisão do parto domiciliar só foi tomada após a equipe de saúde avaliar a gravidez dela e concluir que era de baixo risco.
Conversamos com a enfermeira obstétrica Alaerte Leandro Martins sobre o parto em casa. Ela integra o Comitê de Prevenção de Mortalidade Materna do Paraná e a Comissão de Prevenção da Morte Materna do Ministério da Saúde. É coordenadora executiva da Rede de Mulheres Negras do Paraná.
“Infelizmente é uma prática para pouquíssimas mulheres que podem pagar”, observa ao ViomundoAlaerte Martins. “Mas um dia as equipes de PSF [Programa de Saúde da Família] farão não apenas o pré-natal mas também o parto em casa de pelo menos 60% das parturientes.” Conceição Lemes
Nenhum comentário:
Postar um comentário