Gilson Carvalho[1]
PROFISSÃO DE FÉ: Sou devotíssimo do oratório da participação da comunidade, preceito constitucional e legal com: caráter permanente, paridade e livre escolha, poder de deliberação em sua competência, propositivo e controlador.
Preferiria falar da última bravura, conquista, acerto e avanço do Conselho Nacional de Saúde, mas, em meio a estas, veio mais uma presepada. Foi construída uma atualização da Res.333 do Conselho Nacional de Saúde que agora tem o número RES.453/2012.
Aí está a pérola:
“RES.453 DE 2012
IV - As entidades, movimentos e instituições eleitas no Conselho de Saúde terão os conselheiros indicados, por escrito, conforme processos estabelecidos pelas respectivas entidades, movimentos e instituições e de acordo com a sua organização, com a recomendação de que ocorra renovação de seus representantes.”
Este texto é interpretado pelo redator (quem?) da introdução que apresenta a Resolução de forma mais explícita, no seguinte linguajar:
“Mandato - O tempo de mandato dos conselheiros será definido pelas respectivas representações.As entidades, movimentos e instituições eleitas para o Conselho de Saúde terão seus representantes indicados, por escrito, conforme processos estabelecidos pelas respectivas entidades, movimentos e instituições e de acordo com a sua organização, com a recomendação de que ocorra renovação de seus representantes.”
Vejam só como se esconde o objeto de tal texto. No inciso IV se fala em “terão os conselheiros indicados conforme processos estabelecidos pelas entidades...” No texto introdutório já se detalha de forma mais explícita: “o tempo de mandato dos conselheiros será definido pelas respectivas representações”... No escancarado: O CONSELHEIRO PODERÁ SER INDICADO IN AETERNUM PELA SUA INSTITUIÇÃO, MOVIMENTO OU ENTIDADE. O CONSELHEIRO VITALÍCIO!
Vergonha é o mínimo sentimento que em nós aflora. Durma-se com tamanha desfaçatez! Este texto passou por consulta pública onde algumas opiniões contrárias nem foram levadas em consideração e, lamentavelmente, foi aprovada por maioria esmagadora de conselheiros.
Como pode se falar em participação da comunidade, controle social se o próprio CNS não controla a si mesmo e permite que conselheiros se perpetuem no Conselho? Quem já ouviu falar em democracia sem renovação, rodízio, oportunidades iguais para todos? O CNS sabe que “alguns são mais iguais do que outros”, porém agindo assim desconsidera totalmente o principio da equidade, e se mantém surdo aos apelos dos movimentos de menor capacidade de organização e de vocalização.
Existe uma falsidade ideológica quando se dá ilimitada autonomia às entidades membro a definirem os critérios de escolha, reescolha e até múltipla escolha (várias do mesmo!). As regras só podem ser feitas na instituição Conselho, da qual serão conselheiros e, obrigatoriamente, aplicáveis a todos. A escolha livre é da entidade, mas as regras essenciais balizadoras são comuns, definidas em plenário segundo os princípios da administração pública: legalidade, impessoalidade, publicidade, moralidade e eficiência (CF 37). Não se pode ter um colegiado comum onde cada um faz suas regras. Imagine-se uma instituição constitucional, de âmbito nacional, refém de regras particulares de dezenas de instituições que decidem a seu bel prazer qual será o mandato dos seus indicados! Tenho acompanhado, quando posso, via internet, reuniões do CNS. Mais de uma vez me envergonhei com determinadas posições mentirosas e sofismáticas de algumas figurinhas carimbadas. Vergonha.
Vamos ao fulcro da questão: as regras gerais têm que ser feitas, em primeiro lugar obedecendo à legislação (Conselho não faz lei e quando muito opina ou sugere e faz lobby pela sua aprovação, perfeitamente legal). Em segundo lugar deve fazer as regras comuns para todos se balizarem nelas preservando-se leis, princípios democráticos e autonomia das entidades. No caso específico aplicado a outra questão polêmica, gosto de fazer uma comparação. Vamos lá: alguém duvida do processo democrático de eleição (mesmo tendo distúrbios conhecidos)? Pois lá existem regras iguais para todos os partidos. Os partidos podem inscrever quem eles quiserem? Qualquer um? Não: existem regras. Tem que estar filiado ao partido, por um período mínimo de tempo. Tem que ser maior de idade. Tem que passar pelo crivo da ficha limpa. Tem que ter se desemcompatilizado na época certa. Etc. Etc. Isto tisna a democracia? Só a má fé pode querer induzir a isto e dizer que se trata de autoritarismo, ditadura etc. Vamos mais: votar é direito de todos? Alguém pode ser impedido de votar? Entretanto existem regras comuns, aplicáveis a todos. Não se pode votar fora de sua seção; ou sem documento com foto; ou depois do horário limite etc. Isto fere a democracia? Chamar estas regras claras, democraticamente definidas, de autoritarismo faz-me lembrar da expressão do ladrão correndo da polícia e gritando “pega ladrão” como se ele fosse o mocinho, também caçando o ladrão... Para com isto!!!
Já bato desde muito tempo, nesta tecla, que envolve o mesmo raciocínio, em relação à escolha dos membros representantes dos usuários cuja interpretação errada e imoral é que cada instituição possa escolher por si sem nenhum balizamento comum. Assim o CNS e vários conselhos têm sido emprenhados, na representação dos usuários, por profissionais de saúde, servidores públicos etc. Evidente e incontestável quebra da paridade, regra de ouro dos Conselhos de Saúde. A falsidade ideológica vem usando a nome da democracia em vão! Sabem muito bem o raciocínio correto pois indignados se colocarão contra e vão bater e forte, se a esposa do prefeito ou do secretário de saúde, por qualquer outro caminho, assumir a vaga de usuários. Uns podem contaminar, outros não. Pior: ainda dizem que a comunidade não tem capacidade, por isto os representam, inclusive na presidência dos Conselhos. O voto dos interessados ditando como deve ser sua própria presença no conselho! Advocacia em causa própria, com evidente prejuízo dos demais!!! Em nome da democracia. Jamais tanta falsidade!
Numa democracia o império deve ser da lei. Se ela não atende nossos interesses, desejos ou convicções, temos os mecanismos constitucionais de nos insurgir contra ela: o próprio Congresso, o Ministério Público e o Judiciário. Em estado de exceção, como nas ditaduras, temos o direito de praticar a desobediência civil. Como sou legalista (ainda que achem que o seja demais, ainda penso ser de menos) fui buscar o fundamento desta definição do pleno do CNS. Na falta de lei que chegue a este detalhe fui buscar regulamentação no Decreto referente ao Conselho Nacional de Saúde:
“DEC. 5039 – 2006 – Art. 7o O mandato dos membros do CNS será de três anos, permitida apenas uma recondução.
Parágrafo único. A recondução de que trata este artigo somente se aplica aos membros das entidades e dos movimentos sociais eleitos cujas entidades tiverem sido reeleitas.”
Não paira dúvida que o MANDATO NÃO PODERÁ SER DEFINIDO PELAS ENTIDADES, já que o Decreto explicita: O MANDATO SERÁ DE TRÊS ANOS, repetida a recondução. Tem mais. Existe uma prática igualmente imoral de que, vencido seu tempo por uma instituição, os mesmos conselheiros poderiam vir ao Conselho representar outra instituição!!! No parágrafo único do Art.7º do Decreto, já se afasta esta possibilidade dizendo que a recondução só se aplica se a entidade que representa for reeleita. Existe clareza, mais meridiana?
Como pode alguém imaginar que uma Resolução do Conselho Nacional de Saúde possa contrariar o que está em seu Decreto Regulamentador? Não existe bom senso? Não se tem conhecimento mínimo da legislação e de sua hierarquia? Toda uma comissão pode se enganar? Todo o pleno de um Conselho? O problema é outro. O voto dos que votaram a favor (e houve os contra!!!) foi um agir em causa própria: “oba!podemos nos perpetuar no poder!!! Podemos ser vitalícios!” Ainda dirão, não seremos nós que defendemos esta idéia pois quem irá definir a perpetuidade será “emocraticamente” a entidade. Quando os próprios são mentores plenipotenciários de entidades? Num país e área em que as pessoas costumam abominar desigualdades, iniquidades e privilégios, desde que não sejam os seus? Pior, falamos em representação democrática, em alternância de poder, em desmonopolização do saber etc. etc. e agimos ao contrário, em causa próp,ria mantendo nosso espaço de poder.
E qual o interesse em querer se perpetuar no Conselho? Se é insito de um conselho que representa a sociedade, a renovação de seus membros? Tem a piada final no teor da Res.453: “...(faz-se a) recomendação de que ocorra renovação de seus representantes.” Dizer que pode repetir a dose eternamente está no corpo como mandatório, mas, a renovação dos representantes é apenas uma recomendação!!! Me engana que adoro!!! São as mesmas práticas casuísticas dos textos da gloriosa, a ditadura de que saímos e pensávamos sepulta!
Três erros imperdoáveis que, somados, levam às decisões catastróficas, desmoralizadoras do Conselho e um evidente efeito deletério em cascata, Brasil afora.
1. Os membros do CNS, em especial os de uma Comissão de, supostamente entendidos, destinadas a uma função de construção de norma, desconhecem a própria legislação do Conselho. Não é a lei de regulamentação de remessa de lucros, nem a de importação exportação, nem a geral da saúde (eterna barafunda das portarias ilegais) mas: única e exclusivamente o Decreto que regulamenta o Conselho.
2. A falta de um jurista que esteja presente pelo menos nas reuniões do CNS que tenha analisado e acompanhe a pauta e o teor das resoluções para alertar que não se cometam ilegalidades. Já conversei sobre isto desde muitos anos atrás, com vários dirigentes do CNS e a única vez que contrataram alguém da área jurídica... nada conhecia de SUS!.
Existem outras inconstitucionalidades e ilegalidades na Res.453 que não discutirei aqui e agora, mas, o farei a qualquer hora.
Caminhar na democracia, contra interesses hegemônicos, não é questão para iniciantes, pequenos e mesquinhos. Temos o hábito de terceirizar a culpa do mando hegemônico deletério como aquilo que os outros indivíduos ou instituições praticam. Não nos vemos nunca tiranizando o coletivo!... A hegemonia tirânica pode ser prática sutil ou evidente de qualquer um de nós ou de nossas corporações, quais sejam.
Estamos em pleno processo eleitoral para o Conselho Nacional de Saude, assim como na reta final para as eleições municipais, portanto deve fazer parte de nossas conversas, bate-papos e discussões os rumos que desejamos imprimir às nossas cidades e à nossa saúde. Importante lembrar que a alienação não é nossa amiga e deve ser vista com cautela, pois ela é a principal causa da perda de nossa autonomia. Alienação de uns sempre se casa com o surgimento de salvadores da pátria e mártires, em nome do bem comum!
Gilson Carvalho - Médico Pediatra e de Saúde Pública - carvalhogilson@uol.com.br
O autor adota a política do copyleft em seus textos disponíveis no site: www.idisa.org.br
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