O confronto entre Governo e parte da categoria médica não é bom nem para ambos, nem para o país e muito menos para a população.
Só um cego não reconheceria as carências dos nossos serviços de saúde em matéria de equipamentos, instalações, medicamentos e outros insumos necessários ao seu bom funcionamento.
Há séculos os médicos convivem com essas e outras carências, as quais não parecem sensibilizar tanto as entidades que agora protestam contra a obrigatoriedade de que médico, para se formar, tenha dois anos de atuação no serviço público e outros absurdos, como restringir a médicos a aplicação de injeções, um dos dispositivos vetados na sanção da lei do Ato Médico.
É claro que a lei saiu incompleta e deixa de tornar restrito a médicos procedimentos que só a eles cabe. Mas falta à comunicação do Governo explicar publicamente que, no veto (cujas razões podem ser lidas aqui) o Poder Executivo não pode mudar ou acrescentar nada ao texto aprovado no Legislativo, somente pode suprimir.
Mas é uma loucura imaginar que se pudesse aprovar coisas como tornar privativo de médico procedimentos simples, como a colocação de soro (punção), a prescrição de calçados ortopédicos, muletas, cadeiras de rodas e congêneres.
No caso mais delicado, o de tornar privativo o diagnóstico nosológico (de doença), o veto presidencial é explicado oficialmente e só não lê quem não quer, ou quem não pode ler, porque não lhe dão a informação: “Da forma como foi redigido, o inciso I impediria a continuidade de inúmeros programas do Sistema Único de Saúde que funcionam a partir da atuação integrada dos profissionais de saúde, contando, inclusive, com a realização do diagnóstico nosológico por profissionais de outras áreas que não a médica. É o caso dos programas de prevenção e controle à malária, tuberculose, hanseníase e doenças sexualmente transmissíveis, dentre outros. Assim, a sanção do texto colocaria em risco as políticas públicas da área de saúde, além de introduzir elevado risco de judicialização da matéria”
Traduzindo: as equipes de saúde que não tivessem a presença de médicos, mas apenas de enfermeiros ou técnicos, não poderia diagnosticar hanseníase ou malária, por exemplo, e tratar a pessoa. Teria de removê-la até uma unidade de saúde, esperar o diagnóstico e a prescrição médica para, só aí, tratar o paciente. Imagine isso no Alto Solimões…
Mesmo assim, o veto é claro ao dizer que “o Poder Executivo apresentará nova proposta que mantenha a conceituação técnica adotada, porém compatibilizando-a com as práticas do Sistema Único de Saúde e dos estabelecimentos privados.”
Nada disso justifica posições radicais que estão sendo tomadas por entidades médicas e outras, piores ainda, que grupos de profissionais – dói-me chama-los de médicos, porque não apenas sou amigo de vários médicos como admiro imensamente a profissão – estão fazendo.
Isso não é politicagem, é nojo de ler mensagens como a que consta da imagem ao lado. Depois de verificar a identidade, apaguei o nome da médica, porque a ética que ela não tem, eu tenho.
Mas posso revelar o que ela faz: é auditora-médica do plano de saúde Unimed, privado. Não se sabe se também atua na rede pública, ou se dá aos outros o conselho monstruoso que ela não terá de praticar.
Mandar pacientes para exames desnecessários para “lotar as filas de espera das tomografias, radiologias, laboratórios e aumentar ao extremo os gastos públicos com a saúde não é ato médico.
É ato monstro.
Quando eu era jovem, popularizou-se a expressão “máfia de branco”, partir de reportagens do “Pasquim” que denunciavam barbaridades feitas por médicos.
Para desfazê-la, custou muito a uma geração de médicos com preocupação social, formada naqueles anos 70. Eles apagaram essa imagem. Foi uma era de imensa procura pela medicina social, saúde pública, doenças infecto-parasitárias, pela humanização da saúde mental, até então trancada em hospícios tenebrosos.
Eu venho deste tempo e desta visão sobre a medicina e os médicos.
Se critico o Governo por falta de clareza nas informações e pela escassez de diálogo com a categoria, também tenho de dizer que diálogo, neste clima, é impossível.
Até porque não é possível tratar o assunto com declarações do tipo “nem pagando R$ 100 mil por mês” um médico vai para Amazônia, como fez o Dr. Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica , no UOL.
Nem tratar como “escravidão” o fato de um médico ter de trabalhar, remuneradamente, dois anos na rede pública de saúde para receber seu registro. A reportagem de ontem à noite de O Globo mostra que é assim na Inglaterra – dona do maior sistema público de saúde do mundo e onde, até há pouco tempo, a medicina era essencialmente pública, ao ponto de, nos anos 80, só 5% dos leitos hospitalares do país serem privados – e também é na Suécia.
E não vale o argumento que isso é feito com um salário de quase 80 mil reais, porque esse é o valor anual e os R$ 6,6 mil reais mensais que ele representa é, certamente, bem pouco num país que tem salário mínimo de seis libras a hora,o que dá, para 4o horas e 22,5 dias por mês, R$ 3.744 mensais.
Aliás, é bem menos do que está sendo oferecido no programa Mais Médicos Para o Brasil. É verdade que os R$ 10 mil que o Governo está oferecendo não são os R$ 100 mil que o Dr. Lopes acha pouco, mas é um salário mais que razoável.
Os médicos merecem respeito, mais do que por tudo o que se dedicaram para estudar e aprender – e isso é contínuo, ao longo de toda a carreira – e por por serem trabalhadores como os demais. Merecem, sobretudo, porque são aqueles e eu, você ou qualquer um quer encontrar na hora mais difícil.
E tem o direito de encontrar, não é? Aqui, aí, ou num rincão isolado. Ou mesmo num posto de saúde, como aquele onde se deu o episódio deprimente da médica que, num domingo, batia o ponto para outros cinco usando dedos e impressões digitais em silicone.
Com estes, a sua entidade médica, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, é mais tolerante. Disse que ia abrir sindicância, mas até agora ela e os outros cinco continuam com o seu registro profissional ativo e imaculado. Eu poderia reproduzir a pesquisa aqui, mas não é o caso ficar me valendo de execrações públicas para argumentar. Se alguém quiser, vá ao site do Cremesp e confira o que eu já salvei para o caso de serem retirados agora.
A discussão precisa voltar para um grau de seriedade compatível com o tema e, para isso, é preciso que tenha a serenidade necessária a qualquer diálogo produtivo.
Sábado volto ao tema, para falar do quanto considero e respeito os médicos, por conta do convívio com dois deles, pessoas a quem admiro profundamente. E da tristeza que sinto ao ver muitos jovens profissionais, em início de carreira, tornarem-se presa do mais obscuro conservadorismo e desumanização em matéria de cuidado com o ser humano.
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