Médicos em suas fronteiras
por Luciano Martins no Observatório da Imprensa
Os jornais de terça-feira (9/7) trazem um teste interessante para as convicções ideológicas de muitos brasileiros, com questões que podem definir os limites da fidelidade corporativa e da solidariedade de classe, ou revelar o nível de consciência social de cada um.
O projeto que pretende obrigar os estudantes de medicina a cumprir dois anos adicionais de formação em postos do Sistema Único de Saúde põe à prova as verdadeiras intenções dos manifestantes que desfilaram de jaleco branco pelas ruas de São Paulo, há duas semanas, em protesto contra a importação de médicos estrangeiros.
Não será preciso esperar muito para avaliar o impacto da iniciativa entre os líderes das entidades corporativas, como a Associação Médica Brasileira, o Conselho Federal de Medicina e os centros acadêmicos das principais faculdades: os jornais já trazem, com a notícia, a repercussão junto aos representantes dos profissionais e estudantes – e a reação é predominantemente negativa. Mesmo alguns médicos que se destacaram em movimentos de resistência à ditadura militar e que exibem lustrosas biografias em favor de causas sociais se rendem aos seus interesses específicos e tratam de criticar a proposta.
Se a circunstância representa uma prova para as convicções ideológicas de quem apostou a vida em políticas progressistas, imagine-se a convulsão que deve produzir nas conservadoras redações da imprensa tradicional.
As reportagens trazidas pelos diários deixam pouca margem a dúvidas, para quem estiver disposto a compreender os objetivos da Medida Provisória anunciada pela presidente da República. Os jornais anunciam o projeto de formação complementar de médicos como se fosse uma medida de emergência, criada no fogo das manifestações de protesto, o que ajuda a insuflar opiniões precipitadas.
A informação de que o programa vem sendo discutido há mais de um ano foi destacada apenas pelo Estado de S.Paulo, no quadro chamado “Bastidores”, o que explicaria o fato de a Folha de S. Paulo parecer um pouco mais favorável aos interesses corporativos.
Espera-se agora que uma daquelas pesquisas-relâmpago do Datafolha venha a esclarecer o que pensa a população brasileira sobre a iniciativa do governo.
Interesses corporativos
Uma leitura cuidadosa do que trazem os três principais jornais de circulação nacional permite uma análise bastante diversa daquela colhida das entidades que representam médicos e estudantes de medicina.
O projeto não é uma resposta emergencial, mas resultado de longas conversações e grupos de estudos, que incluíram a Associação Médica Brasileira. O projeto responde de maneira eficiente à necessidade de internalizar os serviços de saúde, diante da resistência da maioria dos profissionais a se deslocar para os grotões do país.
Quanto aos aspectos legais, o projeto de Medida Provisória cumpre o que manda a Constituição, corrigindo distorções produzidas no serviço de interesse público pela mercantilização e elitização do ensino da medicina e do próprio exercício da atividade.
Se as ações e serviços públicos de saúde formam um “sistema único”, de acordo com o texto constitucional, e se compete ao sistema público, de acordo com o artigo 200 da Constituição, “ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde”, há pouco a ser discutido quanto à legitimidade da proposta.
A alegação de que não basta mandar médicos para a periferia da sociedade, porque faltam condições de segurança, é uma confissão de que a solidariedade corporativista se sobrepõe ao interesse social, uma vez que não se deve diferenciar o médico do paciente em termos de seus direitos essenciais.
Se o jovem estudante de medicina busca a profissão apenas para se realizar financeiramente, com certeza em poucos anos de exercício terá se transformado em mais um mercenário. Se, como exigência para a obtenção de sua licença, ele for submetido à dura realidade social brasileira, terá uma oportunidade de compreender melhor para que finalidade deve ser dirigido o conhecimento adquirido na faculdade.
Essas são algumas reflexões que faltaram nos jornais de terça-feira (9), mas há muito ainda a ser pontuado. A imprensa lembra que a proposta se parece muito com o sistema britânico de saúde, considerado um dos mais avançados do mundo, mas o alcance da iniciativa vai muito além do que dizem os jornais. Trata-se de recuperar o sentido da saúde pública no Brasil.
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