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sábado, 20 de julho de 2013

O corporativismo médico vai às ruas

Política e economia também são determinantes na saúde e devem, sim, aparecer em preocupações médicas. É um pouco comprometedor um médico que defende a não entrada de médicos cubanos quando a intenção deste mesmo médico é ter no interior e na periferia um trampolim para chegar às ricas capitais.


Caio Sarack(*) na Carta Maior, publicado em 17/07/2013


A Avenida Paulista recebeu um pouco mais de mil médicos que usaram as ruas a favor de suas pautas particulares. Contra os vetos da Dilma feitos no Ato Médico(1) sancionado recentemente, contra os médicos estrangeiros que entrariam no setor público de saúde, pelo Revalida obrigatório para qualquer formado em medicina no exterior e finalmente contra os dois anos de residência obrigatória no SUS, os médicos se mostraram de uma vez por todas como uma classe de trabalhadores. Aliás, um médico colombiano, Ricardo Palacios, escreveu um artigo muitíssimo interessante, publicado na CartaCapital. Ricardo é agora graduando em Ciência Sociais pela USP, o que, em contraste com os médicos na rua, mostra uma preocupação em perceber não só os assuntos que cercam a profissão médica, mas como conflitos de classe também atingem os doutores.

Percorrendo a passeata de jaleco, os médicos aderiram os gritos conhecidos das manifestações de junho, desta vez o chamado às ruas é pela saúde. Bandeira unânime. Entretanto, não só da saúde vivem os médicos, mas de todas as relações trabalhistas e de classe.

"Cubano entende de charuto", "Estrangeiro só com Revalida", "Contra os vetos" foram bandeiras também presentes na manifestação de ontem e acabam por dirimir um pouco a unanimidade da bandeira "pela saúde". A saúde foi tornada numa pauta estritamente técnica. A vinda dos estrangeiros cubanos: eles não sabem como funciona nosso sistema de saúde. Os vetos ao ato médico feitos por Dilma: tiram a soberania e colocam na mão de profissionais despreparados decisões que só poderiam ser dada pelos médicos. Revalida: a prova vem certificar o conhecimento do estrangeiro, se ele não passa nessa prova como pode tratar um paciente?

Os argumentos acima foram ditos para cada bandeira levantada, e diagnosticam que a despolitização também adoece alguns doutores. O Revalida aparece como um vestibular tardio (método de meritocracia intensamente relativizável), a revalidação do médico estrangeiro quer acalmar os ânimos daqueles que passaram por um dificílimo vestibular que na graduação nada ou muito pouco lhe servirá. O Ato Médico quis instituir que só o médico pode diagnosticar, indicar procedimentos, tratamentos mesmo em problemas de saúde que seja multidisciplinares, enquanto o veto relativiza tal soberania, colocando como par, em situações expressas, outras áreas do saber da saúde, como fisioterapeutas, enfermeiros, psicólogos (a realização de exames citopatológicos e emissão de seus laudos; a coleta de material biológico para análises laboratoriais e os procedimentos feitos através de orifícios naturais, desde que não comprometa a estrutura celular, segundo informa a Agência Brasil).

A caracterização de todas as demandas dos médicos como sumariamente técnicas inibe qualquer atitude que baseie uma reforma social da saúde. Conversando com um dos manifestantes, falei sobre a intenção principal do projeto em levar médicos para o interior e periferias, que então me respondeu: "mas o problema é que lá não tem infraestrutura para a atividade médica". O problema existe e ainda mais uma vez é "técnico". O estranhamento não está nessa resposta, mas na seguinte: "queremos plano de carreira, como um juiz. O novo médico inicia no interior e tem a possibilidade de chegar até as grandes capitais". A desigualdade social que o próprio mapa brasileiro evidencia que também está nas revindicações dos médicos, reproduzindo uma mesma ordem.

Um argumento fortíssimo que elucida porque a saúde está nessa direção é do economista Paulo Kliass em artigo para Carta Maior que coloca parelhos saúde e educação brasileiras:

Na área da saúde deu-se fenômeno semelhante. O processo de deterioração das condições de serviços públicos oferecidos à população combinou-se ao incremento da participação de empresas privadas na criação e na gestão de hospitais, laboratórios, clínicas, maternidades e toda a sorte de serviços associados ao setor. A contrapartida desse movimento inovador foi a consolidação de um ramo de grupos gerenciando as atividades de planos de saúde e de seguros de saúde, todos privados. Antes ocupado basicamente pelas instituições filantrópicas, o espaço privado passou a operar segundo a lógica explícita do capitalismo: geração de lucro como prioridade essencial.

Fica claro, portanto, que política e economia também são determinantes na saúde e devem sim aparecer em preocupações médicas. É um pouco comprometedor um médico que defende a não entrada de médicos cubanos (reconhecidamente especializados em atendimento básico e de prevenção) quando a intenção deste mesmo médico é ter no interior e na periferia um trampolim para chegar às ricas capitais. Mais uma vez se endossa o essencial do capitalismo: o acúmulo e o lucro.

Teorias da conspiração, "ato eleitoreiro", "mera politicagem" ainda soam entre os jalecos brancos na rua ontem, mas nenhuma proposta realmente preocupada com a população que é atendida foi levantado por bandeira alguma ontem. A verticalização dos conselhos de medicina tem uma conformação particular nas bandeiras dos médicos na rua: suas preocupações trabalhistas têm tomado um caráter nocivamente moralizante que não ataca o problema social e acaba perpetuando-o. A despolitização está a serviço do conservadorismo e contra a justiça social.


(1) Sobre o Ato Médico, vetos e posições do Conselho Federal de Medicina (CFM), os links da Agência Brasil a seguir: "Dilma sanciona Ato Médico com Vetos", "CFM diz que vetos são agressão e traição aos médicos" e "Médicos e demais profissionais de saúde não entram em acordo sobre Ato Médico"


(*)Caio Sarack é estudante de filosofia na USP e estagiário da Carta Maior.

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