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quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Mais Médicos e o debate deslocado

O texto abaixo é a cópia integral de um e-mail da professora Célia Almeida, Pesquisadora Titular ENSP/Fiocruz, na área de Políticas de Saúde e Organização de Sistemas de Serviços de Saúde. A professora autorizou a publicação do texto para movimentar o debate sobre o programa Mais Médicos. Célia faz referência a entrevista de José Carvalheiro que falou, dia  30 de agosto, sobre a vinda dos médicos cubanos no Sem Fronteiras da Globo News.

via Blog do CEBES 


Célia Almeida, Pesquisadora Titular ENSP/Fiocruz | Site Abrasco
 
Na minha modesta opinião todo esse debate está "deslocado" e fora do eixo, além de manipulado, tanto pelo movimento médico quanto pela mídia (leia-se sobretudo a Globo). A edição e deslocamento das suas falas (e, provavelmente, dos demais interlocutores) não me surpreendem em se tratando de Globo News.

Além dos equívocos, erros e lançamento desastrado do Programa pelo Ministro Padilha, a desinformação sobre o assunto é a regra: por um lado a Globo, que não informa ninguém; e, por outro o movimento médico corporativista, que piora a situação desinformando cada vez mais uma já desinformada sociedade... é lamentável.

Como disse sabiamente Zuenir Ventura no Globo do dia 31 de agosto, passada a bipolarização "não é mais tão fácil tomar partido". As variáveis que se entrelaçam nos processos políticos, econômicos, sociais (só para citar alguns), nacionais, internacionais e globais são muitas e, como sempre, o âmbito nacional se imbrica com o internacional. A queda do muro descortinou, entre outras coisas, essa complexidade, até então encoberta ideologicamente.

No caso da política externa não é diferente, pois é uma política pública como outra qualquer, embora até bem pouco tempo fosse tratada como uma "caixa preta", assunto para poucos e destacados representantes governamentais (aqui e alhures). No Brasil essa mudança de percepção é recente e coincide com a democratização do país. Mesmo assim, até hoje quase nada se debate sobre a política externa brasileira na grande imprensa e, quando sai alguma coisa, é sempre estimulando o que existe de pior no “senso comum”, de forma distorcida e enviesada (veja-se, por exemplo, o recente tema do perdão da dívida dos países africanos pelo governo brasileiro; ou as críticas às posições brasileiras em relação à Venezuela, à Bolívia ou ao Paraguai, em distintas situações bem delicadas).

Pois bem, o envio de médicos cubanos para trabalhar no exterior é um instrumento dos mais importantes na política externa cubana, desde o inicio da revolução (cada um usa a força que tem ou que pode construir). Como bom estadista que era (naquela época!), Fidel decidiu que, para ser respeitada no mundo, Cuba tinha que "produzir conhecimentos e tecnologia" e ser boa nisso. A área de saúde foi seu trunfo/laboratório e nasce dessa decisão estratégica, nos anos 1970, o Pólo Científico e Tecnológico de Cuba, cuja competência é reconhecida mundialmente até hoje.

Só para se ter uma ideia, naquela época (anos 1960), existia em torno de 8.000 médicos em Cuba e hoje são mais de 80.000, sendo que apenas cerca de 30% está trabalhando no país, se não me falha a memória. Cuba dispõe hoje de uma faculdade de medicina em 12 das suas 16 províncias e a formação médica é de excelência, sendo que todos os profissionais passam, obrigatoriamente, um tempo pré-definido trabalhando no sistema nacional de saúde, fora da capital.
 
Mantém-se, assim, o (bom) funcionamento do sistema de saúde, ainda que com muitos problemas e sacrifícios. E a população cubana não passa fome, nem necessidades básicas, ainda que o acesso aos bens de consumo seja difícil e exija verdadeiros malabarismos por parte da população. O resultado é evidente: mesmo com o embargo norte-americano, as crises econômicas e políticas, os macro indicadores de saúde da população cubana continuam próximos ou iguais aos dos melhores países do norte do mundo.

Em tempo: essa política nacional de recursos humanos em saúde inclui também o “rodízio” dos profissionais de saúde no exterior, que por sua vez, não têm interesse de “desertar”, pois esses períodos fora do país integram a progressão na carreira e abrem caminho para seus trabalhos nos organismos internacionais (principalmente OPAS). A taxa de “deserção” desses profissionais não é alta, embora essa afirmação deva ser feita com cautela, pois esses dados não são exatamente transparentes, como sabemos.

Na Guerra Fria, o "empréstimo" de profissionais "cooperantes" entre os países do "mundo socialista", e outros "simpatizantes" ou “interessados” por outros motivos, era a regra; e, no contexto da polarização ideológica e política essas cooperações entre Estados eram acordadas entre eles e as áreas de cooperação eram "distribuídas entre os pares" (ex: área militar − russos em Moçambique e cubanos em Angola), como uma das formas possíveis de construção de força política no conflito Leste-Oeste.

O mesmo ocorria no pólo “ocidental”, sob a égide da hegemonia norte-americana construída e consolidada no pós II Grande Guerra no século passado, tendo como mecanismos o Plano Marshall, a invenção da ajuda externa e da cooperação internacional para o desenvolvimento.
Esses “arranjos técnico-políticos” não são diferentes, por exemplo, daqueles do inicio do século, feitos entre os EUA e países da região latino-americana na área de saúde, onde a Fundação Rockefeller desempenhou papel fundamental. As motivações (ou justificativas), e os “programas”, mudam no tempo e no espaço, mas o motor dessa dinâmica é a da disputa pelo poder no sistema mundial.

Não é possível se estender muito neste assunto por email, mas voltando ao nosso tema, a "metodologia" de venda de força de trabalho e do pagamento ser feito para o Estado, e não para o "cooperante", também não é nova na história do mundo: por exemplo, a colônia portuguesa de além mar − Moçambique − já vendia trabalhadores moçambicanos para as minas da África do Sul, como forma de arrecadação tributária, prática essa que foi criticada e abolida formalmente pelo governo revolucionário, mas que tem resquícios que permanecem até hoje.

Por outro lado, os médicos cubanos continuam espalhados pelo mundo, nos lugares mais longínquos e com condições de trabalho às vezes muito precárias, além de atuarem muito efetivamente em situações de catástrofes, controle de epidemias graves. etc. (vide Haiti).

Atualmente, a província de Nampula, no norte de Moçambique, uma das maiores, mais populosas e mais pobres do país, só consegue manter seu precário sistema de saúde funcionando e sua jovem universidade pública (UniLurio) formando profissionais, inclusive na área de saúde, pela cooperação de profissionais cubanos (não apenas médicos) que cobrem mais de 80% das necessidades de recursos humanos da província.

Obviamente o trabalho das Brigadas Médicas cubanas pode ser criticado em alguns aspectos (ninguém e nada é perfeito!), pois o autoritarismo (ou a falta do exercício/aprendizado democrático) entranha a alma das pessoas e da sociedade (mesmo aqui entre nós...).
 
Entretanto, ninguém duvida da competência do trabalho que elas desenvolvem mundo afora.
Em Dezembro de 2012 participei, junto com outros brasileiros, de um Congresso em Cuba/Havana – a Convención Internacional de Salud Pública “Cuba Salud 2012” − e de um Evento Colateral − II Encuentro de Salud Internacional y Cooperación en Salud − onde esses e outros temas foram discutidos.

No caso do Programa mais Médicos, o Ministério da Saúde (MS) foi inábil e incompetente; e o Ministério das Relações Exteriores (MRE) foi ausente no inicio (não sei se por omissão ou por não ter sido chamado), mas entrou depois quando o circo começou a pegar fogo. O Programa teve e continua tendo (pelo pouco que tenho conseguido acompanhar) inúmeros problemas − falta de preparo e organização do MS para lidar com o assunto, açodamento e trapalhadas do Ministro da Saúde nos comunicados e entrevistas à imprensa e tímido (para não dizer quase constrangido) apoio do Ministro das Relações Exteriores.

Esses programas de cooperação funcionam de forma diferente dos mecanismos normais de credenciamento de profissionais estrangeiros que pretendem trabalhar e PERMANECER no país. Isto NÃO quer dizer que suas competências não tenham que ser AVALIADAS, CREDENCIADAS e CONTROLADAS, mas há mecanismos e formas de fazer isso legalmente, articulando as diferentes estâncias do aparelho de Estado e negociando com os órgãos reguladores corporativos, cuja "autonomia" foi historicamente CONQUISTADA pela corporação e CONCEDIDA pelo Estado.

Há anos que a "diplomacia presidencial" é forte no Brasil, mas o estilo muda de presidente para presidente − de FHC para Lula, e deste para Dilma as diferenças são marcantes − assim como a capacidade dos respectivos chanceleres para lidar com seus presidentes.

Existe um esforço concentrado no momento, envolvendo equipes técnicas de ambos os lados, além do Gabinete da Presidência, para dar conta de superar as dificuldades e enfrentar o imbróglio criado. Resta saber se já não é tarde demais...

Enfim, usar as críticas ao governo autoritário cubano para criminalizar ou desqualificar o trabalho dos profissionais cubanos no exterior envolvidos nesse projeto é, no mínimo, ignorância, confusão deliberada e manipulação escancarada dos fatos e processos, promovida pelo conservadorismo das nossas entidades médicas e possibilitada pelos ERROS na condução do programa pelo nosso governo.

Temos sim MENOS MÉDICOS do que precisamos (segundo o parâmetro da OMS) e muitos de nossos médicos NÃO querem sair dos grandes centros ou áreas urbanas.

Nessa luta insana perde-se uma excelente oportunidade de reivindicar o que realmente importa: maiores e melhores investimentos na nossa rede de serviços de saúde, em todos os níveis, extremamente heterogênea nesse Brasil continental, possibilitando condições de trabalho adequadas aos nossos profissionais de saúde; e uma política nacional de recursos humanos realmente efetiva, que atenda as necessidades de saúde da população e proporcione o aprimoramento da formação dos profissionais que o país necessita.

Há muito que se debater (e aprender) com essa história e, desculpem-me, mas a nossa área de Saúde Coletiva ainda domina pouco esses assuntos. Daí meu esforço para institucionalizar essa área – Saúde e Relações Internacionais – no campo da Saúde Coletiva.

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