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terça-feira, 8 de outubro de 2013

Diretor da Anvisa alerta para retrocesso no setor

no Brasil Econômico

Dirceu Barbano, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária sinaliza: "se a ADIN da CNI for aprovada, ficaremos em um limbo normativo".

Em 2014, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) completará 15 anos. Nesse período, os medicamentos brasileiros deixaram de ser notícia negativa de jornal - como aconteceu com as "pílulas anticoncepcionais de farinha" - para entrar no patamar de confiabilidade dos remédios de países desenvolvidos.
Em entrevista exclusiva ao Brasil Econômico, o diretor-presidente da Anvisa, Dirceu Barbano, faz um alerta: os avanços podem se perder, caso o Supremo Tribunal Federal acolha a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) da Confederação Nacional da Indústria, que questiona o papel regulador da Agência. "É a indústria da doença, a do cigarro, impedindo a indústria da saúde de funcionar", acusa Barbano.
Ele admite que os prazos para se conseguir um registro de produto na agência ainda são muito grandes, mas diz que a desburocratização da Anvisa está a caminho. E revela que a Funchicórea - aliada das mães no alívio da cólica de bebês, que fora proibida pela Agência - foi liberada e volta ao mercado esta semana.
A Anvisa hoje regula uma parcela importante da nossa economia. Por que a atuação da agência é tão abrangente?
A raiz dessa abrangência é que, quando foi criada a Anvisa, o Brasil era muito cético em relação à segurança dos medicamentos. Foi bem na época das "pílulas de farinha", a estrutura de vigilância era muito incipiente. Quando criou a Anvisa, o Congresso fez uma concentração no órgão regulador muito ampla, de todos os produtos que pudessem fazer mal à saúde. No detalhamento da lei, ficaram sob responsabilidade da Agência medicamentos, equipamentos médicos, agrotóxicos, cigarros, saneantes, cosméticos, serviços de saúde e controle de viajantes nos aeroportos. Mas a diferença está no fato de que a dimensão da economia brasileira era bem menor. Hoje, o Brasil é o sexto em medicamentos, o quarto em cosméticos, o sexto em materiais médicos, o primeiro em limpeza doméstica e em agrotóxicos.
Por isso, nos dias atuais, a percepção é de que Anvisa tem um papel regulador sobre uma parte muito mais importante da economia. Não há estudo sobre isso, mas calculamos que cerca de 25% dos setores que compõem o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro sofrem algum tipo de regulação da Anvisa. O mercado farmacêutico era de US$ 6 bilhões ao ano, hoje é de US$ 40 bilhões. Todos os mercados regulados pela Anvisa crescem no mínimo o dobro do ritmo de crescimento do PIB.
A estrutura da agência é suficiente para atender à demanda?
De 2008 para cá, dobrou o número de documentos avaliados pela agência. A estrutura é enxuta, mas insuficiente diante da demanda. No início do próximo ano, 314 novos servidores aprovados em concurso ingressarão na Agência. Ainda assim, estamos defasados: no FDA (Food and Drug Administration, a agência norte-americana), só a área de medicamentos tem 3,8 mil pessoas, quase o dobro de todo o nosso corpo funcional, que está em 2 mil. É por isso que os setores regulados pela Anvisa se ressentem dos prazos.
Como estamos em comparação com os países desenvolvidos?
Do ponto de vista da resposta sanitária, o Brasil é bastante seguro. O brasileiro pode ficar tranquilo em relação à qualidade de remédios e alimentos. Esse sentimento é graças à eficiência da Anvisa. Se você pensar que o FDA tem mais de 100 anos, a agência inglesa tem 80 anos, a holandesa, 50, a italiana, 60, e a Anvisa, 15, e observar que ocupamos os mesmos espaços no cenário internacional, vai ver que o Brasil fez quase um milagre nesse período. Do ponto de vista do marco regulatório, não tem mais o que avançar.
Então em que ainda precisamos avançar?
Na modernização da nossa estrutura. Ela foi constituída a partir do antigo Inamps (o extinto Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social). Precisamos capacitar pessoas, ampliar a quantidade de funcionários e tornar fluída a relação entre o Estado e o setor privado. Hoje, há muita controvérsia jurídica sobre se a Anvisa pode, por exemplo, contratar organismos certificadores. Mas isso é importante para colocarmos o nosso foco no poder de fiscalização da Agência. O FDA tem 2 mil consultores terceirizados. No Brasil, as outras agências também ficam amarradas, como a Anvisa, pela lei de licitações.
O que está sendo feito para modernizar a agência?
Metade dos processos que chegam à Anvisa não cumprem os requisitos básicos para o registro do produto. Mas, nos últimos quatro meses, só recebemos três processos, porque agora a solicitação de registro é feita por meio digital, em que o sistema faz o filtro. Mas ainda temos uma fila de 1.800 processos antigos para registro de medicamentos. Por isso, a Anvisa tem hoje um caminho inevitável a seguir: precisa fazer gestão bem feita dos estoques de processos e conseguir ampliar o quadro de pessoal nas áreas estratégicas. Não podemos registrar cigarro em 90 dias e levar dois anos para aprovar o registro do medicamento que cura o câncer causado pelo cigarro.
Grande parte do pessoal aprovado no concurso será direcionado para as áreas de medicamentos, equipamentos médicos e materiais e para atuar na inspeção. Também teremos novos profissionais de Tecnologia da Informação, em que investimos R$ 60 milhões nos últimos três anos. Estamos reformulando a estrutura organizacional da Anvisa, criando cinco diretorias responsáveis por macroprocessos e modificando a estrutura abaixo, com a criação de nove superintendências nas próximas semanas. Passaremos a ter uma estrutura menor no pré-mercado (antes da concessão dos registros) e vamos ampliar no pós-mercado, fortalecendo a fiscalização.
Além disso, estamos revendo os marcos de regulação, excluindo o que é burocrático e desnecessário. Temos hoje normas que não fazem sentido. Por que um fabricante precisa de autorização da Anvisa para mudar a cor da caixa do medicamento? Por que um curativo adesivo para pequenos ferimentos é tratado de forma igual ao um stent cardíaco? A Anvisa tem que ter muita capacidade para avaliar o que tem mais risco e se livrar do trabalho com o que não apresenta risco à saúde. É por causa dele que a Anvisa demora além do tempo das outras agências.
Como o senhor está vendo a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) Nº 4874, ajuizada pela Conferência Nacional da Indústria (CNI) no Supremo Tribunal Federal (STF)?
Estou vendo com muita preocupação. A CNI, para atender à demanda de um setor da indústria - os fabricantes de cigarro - entrou contra o dispositivo regulatório que criou a Anvisa. Se os argumentos da Adin foram acatados pelo Supremo, os setores de medicamentos, alimentos e componentes médicos ficarão em um limbo normativo, em meio a um ambiente de extrema instabilidade jurídica. É a indústria da doença, a do cigarro, impedindo a indústria da saúde de funcionar.
Se hoje somos referência mundial em remédios genéricos e biotecnologia, é por causa do nosso patamar avançado em termos sanitários. A Adin da CNI certamente resolve o problema da indústria do tabaco, que quer ambiente desregulado, mas coloca o Brasil no mesmo patamar da Índia ou da China, sobre a qual pairam sempre desconfianças. Toda indústria de alta qualificação vem acompanhada de um alto patamar de regulação. É assim no mundo inteiro. A Adin da CNI é um retrocesso enorme para o Brasil. Pode pôr a perder tudo o que avançamos em termos regulatórios.
Mas a Resolução nº 14/2012 da diretoria colegiada da Anvisa, que proibiu o uso de aditivos na composição dos cigarros, não pode gerar dificuldades para os agricultores que vivem do plantio do tabaco?
Quando a resolução nº 14/2012 foi à consulta pública, a medida proibia todas as substâncias que produzissem alteração de odor ou sabor. Dessa forma, todos os cigarros teriam o mesmo gosto. Mas houve uma mudança fundamental após a consulta: antes, havíamos proibido a reposição do açúcar na composição, mas fomos convencidos a voltar atrás porque a indústria alegou que teria de utilizar outro tabaco, o American Virginia, em vez do Burley, que é produzido no Brasil, o que teria um grande impacto para os agricultores familiares. Por isso, é uma mentira e uma maldade da indústria envolver as famílias de agricultores nessa discussão. Ela não terá impacto algum.
Qual foi o objetivo da Anvisa com a Resolução nº 14/2012?
O que quisemos com essa resolução foi atacar a questão da atratividade. O uso de substâncias de morango ou menta, por exemplo, mascara o verdadeiro sabor do cigarro, é o que faz os jovens experimentarem. Há um estudo da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) que comprova isso: 74% dos fumantes começam com cigarros com gosto ou aroma, de menta ou morango. Em alimentos, há mais de 500 aditivos proibidos; em medicamentos, quase 100. Não existe cigarro seguro, só há uma forma de as pessoas não terem danos decorrentes do cigarro: não fumar. O objetivo dessa resolução é evitar que as pessoas fumem.
A CNI diz que o Congresso deveria normatizar, e não a Anvisa...
O Congresso não é um ambiente para a realização dessa discussão técnico-científica. Está suscetível a pressões políticas. Não podemos ter uma estrutura permeável a interesses que não são os que devem mover as decisões. Os EUA baniram cigarros com gosto e sabor, com exceção dos de menta, que ainda estão em discussão. Lá, a regulação da indústria do tabaco era feita pelo Congresso, mas há quatro anos o FDA ganhou essa atribuição. Com essa Adin, estamos na contramão dessa tendência mundial. Um dado que acho assustador é que o mundo ganha 120 mil novos fumantes por dia.
Há cerca de dois anos, a Anvisa foi alvo de polêmica ao suspender a comercialização da Funchicórea, um produto que era amplamente utilizado para acalmar os bebês em caso de cólica. O que houve?
Em reunião de diretoria colegiada, tomamos a decisão de que a Funchicórea poderá voltar ao mercado. Como o laboratório que a produz, o Melpoejo Ltda, de Juiz de Fora, teve parte de suas operações paradas neste período de proibição, foi necessária nova inspeção, mas acabamos de receber o relatório do órgão de fiscalização mineiro. A Funchicórea voltará ao mercado já esta semana. Havia uma ressalva ao produto por causa da presença de um pó de planta na fórmula, mas hoje já há estudos sobre isso e se sabe que não há problema algum para a saúde nesse pó de planta. Se o pedido de renovação da Funchicórea tivesse sido feito hoje, teria sido aprovado sem problemas.

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