Pacientes vão em clínicas com estrangeiros por economia e bom serviço, mas preferem não contar isso a parentes e amigos
no Opera Mundi
Duas mulheres de classe média se conheceram durante a espera em um centro médico na Venezuela. Ambas compartilhavam a angústia de preferir não contar a conhecidos que tratavam seus problemas de saúde com profissionais cubanos. “Nem pensar”, diz uma delas, de 68 anos, quando questionada sobre seu verdadeiro nome. “Este país está muito polarizado e, se você pertence a certo nível, não pode dizer que vem aqui. Não conto nem para os meus filhos”, explica ela, que se identificou com o pseudônimo de María Elena.
“Aqui estamos muito divididos. Todos os meus amigos são contrários a que estes médicos estejam aqui. Quem é de classe média vem escondido”, contou, sendo interrompida pela companheira de espera. “Não vou dar meu nome porque não apoio este governo”, expressou, pedindo que, em vez de seu nome, Opera Mundi se refira a ela como Gloria Álvarez. “Médicos cubanos”, segundo ela, é tema vetado em reuniões familiares dominicais. “É melhor não contar para preservar os amigos e minha família, na qual há muitos médicos”, explica.
Luciana Taddeo/Opera Mundi
Maria Elena e Gloria Álvarez não quiseram ter as identidades reveladas, mas costumam ser atendidas por cubanos
Ex-secretária executiva, hoje dona de casa na região de Chacao, na capital venezuelana, María Elena conta que recorreu à atenção dos cubanos para realizar as sessões de fisioterapia indicadas por seu traumatologista devido a uma artrose no joelho. “Ele me recomendou uma clínica onde cada sessão custava 300 bolívares [cerca de R$ 110]. Mas quando eu estava saindo, a enfermeira dele disse: ‘senhora, vá em tal lugar, porque eles [os cubanos] são bons nisso”, conta.
O “tal lugar” era o ASIC (Área de Saúde Integral Comunitária) Salvador Allende, centro de atenção médica localizado em Chuao, zona de classe média alta de Caracas. O local é uma ampla unidade da Missão Barrio Adentro, iniciada por Hugo Chávez em 2003 mediante convênio com o governo de Fidel Castro, quando médicos cubanos chegaram ao país para prestar serviço nos “barrios” (comunidades) venezuelanos. O programa social de saúde se expandiu e hoje conta com centros também em regiões de maior renda.
“Fiquei em dúvida, não sabia como isso funcionava. A informação que eu tinha era muito diferente, me dava um pouco de temor. Eu imaginava que o atendimento não seria bom. Saía no jornal que os médicos cubanos te davam uma pílula errada e que as pessoas morriam por isso. Então vim com muita precaução. Mas agora estou convencida de que eles estão fazendo um bom serviço”, revela Maria Elena, que classifica como muito eficientes as dez sessões de reabilitação para o tratamento de seu joelho, que antes “doía muito”.
“Até penso em voltar”, diz, explicando que poderia ter pagado as sessões, mas que, devido à inflação de seu país, que acumula 45,8% desde janeiro, economiza sempre que pode. “Saiu grátis. Tive onde parar meu carro, fiquei contente. Se posso economizar nesse tratamento, melhor, porque a situação está bem dura, os preços aumentaram bastante”, diz, lembrando ainda que seu plano de saúde não cobria sessões de fisioterapia.
Apesar de aprovar o atendimento, Maria Elena critica os convênios entre seu país e a ilha caribenha. “É como se tivéssemos uma invasão legal dos cubanos. Deve ter esta desconfiança também no Brasil, porque chega essa avalanche de médicos e você não sabe o que eles vêm fazer aqui. E as pessoas de classe média se perguntam o que está acontecendo. Mas, no fim, a atenção foi muito boa, dá para ver que eles têm disciplina, são dedicados e amáveis”, avalia.
Após a última sessão de fisioterapia, Maria Elena nunca mais encontrou a dona de casa com quem conversou na espera daquela manhã. Aos 67 anos, Glória Álvarez conta que nunca trabalhou porque “não precisou”. A primeira ida ao centro se deu após saber que este contava com equipamento de ressonância que não era “completamente fechado”, diferente dos que costumava usar para exames. “Eu ficava com pânico ao entrar naquele túnel. E decidi vir para uma consulta”, lembra.
“Sempre que preciso, venho. Já fiz de tudo: endoscopia, raio-x, exames de sangue...Parei de ir ao centro médico particular onde fui por muitos anos. Gastávamos muito dinheiro”, conta ela, dizendo gostar da atenção e ter feito amizades com os cubanos. O assunto, no entanto, é vetado com vizinhos de seu prédio em El Cafetal, que define como “uma zona opositora”. “Quase todos têm dinheiro, não posso falar disso com ninguém”, lamenta.
“Mas uma vez vi um homem com a camiseta do [líder opositor Henrique] Capriles. Esse serviço é para todo mundo e os médicos não tentam nos convencer politicamente”, expressa.
A socióloga Joli D’Elia, pesquisadora venezuelana de políticas públicas de saúde e sociedade civil, afirma que, devido à falta de dados oficiais, é difícil precisar uma porcentagem de usuários de classe média que recebem atenção de médicos cubanos, mas que esta é baixa. De acordo com ela, o atendimento destes profissionais é procurado com ampla maioria por setores de baixa renda.
Dados do último Censo de População e Vivenda realizado pelo INE (Instituto Nacional de Estatística da Venezuela) indicam que, das mais de 16 milhões de pessoas que solicitaram atenção médica em 2011, 42,2% foram a hospitais públicos, 34,6% a centros da Missão Barrio Adentro e 21,6% a clínicas privadas em alguma oportunidade. De acordo com a Pesquisa Nacional de Orçamentos Familiares, realizada entre 2008 e 2009 pelo BCV (Banco Central da Venezuela), em conjunto com o INE, a Corporação Venezuelana de Guayana e a Universidade de Los Andes, 48,5% da população tinha utilizado serviços da Missão Barrio Adentro pelo menos uma vez.
Segundo a embaixada cubana, atualmente a Venezuela conta com 6,7 mil consultórios médicos com profissionais da ilha caribenha. Deste total, 563 são CDIs (Centro de Diagnóstico Integral), 563 SRIs (Sala de Reabilitação Integral), 35 CATs (Centro de Alta Tecnologia) e 18 centros oftalmológicos.
Segundo o médico cubano Juan De Los Reyes Fuentes, diretor do CAT Andrés Bello, localizado na região de El Recreo, em Caracas, pessoas de diversos setores são atendidas no centro. “Todo mundo vem aqui, inclusive pessoas de classe média, com bom nível de vida, que sabemos que podem pagar uma clínica. Eles são atendidos como qualquer paciente, porque a saúde das pessoas é sagrada para nós”, expressa.
A algumas cadeiras de distância de María Elena e Gloria Álvarez, a bibliotecária de uma universidade venezuelana, Isabel Bigot , 52 anos, conta que não é chavista e critica o governo por “copiar coisas” de Cuba. “Nosso país não é socialista”, explica, contando que procurou os médicos cubanos por uma dor na coluna. “Eu tenho condições de pagar uma consulta, mas venho a este centro porque eles são amáveis e bons com tratamentos ósseos”, diz.
Gustavo, um psicólogo social que preferiu não ter o sobrenome divulgado, conta que foi pela primeira vez a um CDI acompanhando uma namorada com febre. Mesmo tendo plano de saúde, foi atendido por cubanos em outras oportunidades para evitar esperas no centro médico do seguro ou ter que pagar por consulta até ser reembolsado pelo plano.
Ele conta que uma vez quebrou a perna ao cair de sua moto e foi atendido em uma clínica privada, mas quando voltou para retirar o gesso, o centro queria cobrar pela atenção. “Eu disse que já tinha pagado e decidi ir ao CDI. Não acho que o tratamento dos cubanos seja especial. Mas o importante para mim é resolver o problema”, explica.
Um dos motoristas do ponto de táxi localizado em frente ao CDI de Chuao diz que em diversas oportunidades levou pacientes atendidos no local a áreas nobres da capital caraquenha: “Não é a maioria, mas aqui chegam pessoas de todos os tipos, pobres, ricas, mais ou menos. Eu me pergunto, se elas têm dinheiro, por que vêm aqui? Mas eles não gostam de gastar dinheiro, então aproveitam a oportunidade. Eu particularmente não vou, porque não confio”.
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