Medicina Pública e Medicina de Mercado
(Homenagem a Carlos Gentille de Melo)
Eduardo de Azeredo Costa* na página do CEBES (via Michel Deolindo)
Sinopse
As relações da medicina pública com a de mercado sempre foram simbióticas no Brasil. Separar as duas, já que em princípio não são excludentes, envolve antes de tudo um esforço organizacional diferenciado pois seguem lógicas e bases éticas distintas. Uma rápida revisão histórica e visão crítica das possibilidades de avanços do SUS ainda nos desafiam a construir um serviço nacional de saúde, inspirados no NHS inglês.
Primórdios
Carlos Gentille de Melo, que falava dos vícios da “dupla militância”, mostrou também na década de 70 que havia forte correlação entre existência de agências bancárias e presença de médicos nas cidades brasileiras. Ou seja, havia médicos onde a economia comportava a existência de bancos. E o mapa da desigualdade permanece: não surpreende existirem comunidades desassistidas no Brasil. O problema da falta de médicos resulta, assim, da má distribuição dos mesmos, ou do bom efeito do mercado sobre a localização dos médicos e, de resto, acrescentamos, de tudo.
Quando secretário de saúde do Rio de Janeiro, ainda antes do SUS, tentamos estimular a re-distribuição dos médicos e outros servidores da saúde do estado através de uma gratificação, aprovada pela Assembléia Legislativa, em 1984, com o nome de Lotação Prioritária, cujo valor dependia da densidade de médicos por habitante. Aplicava-se apenas aos servidores da saúde estaduais pois não tínhamos jurisdição sobre os federais ou municipais. Ingenuamente esperávamos que fosse bem recebida. Não o foi pelas entidades médicas, afinal eles tinham legalmente outros empregos em locais diversos. Mas agradou às auxiliares de enfermagem, por exemplo, porque estariam também mais perto de casa, ganhando mais e gastando menos transporte. Claro que tudo dentro do quadro de lotação da unidade considerado ideal.
Não seria surpreendente que propugnássemos por um serviço unificado de saúde, sob comando dos estados, democrático e participativo, daí por que, na mesma época criamos o Conselho Estadual de Saúde e Higiene, no qual tinham assento entidades, associações e sindicatos.
Em 1988, teríamos uma nova constituição, que, diferente de expectativas de criação de um serviço nacional de saúde, criaria o SUS (Sistema Único de Saúde), genericamente inspirado em alguns países com “sistemas” universais de saúde, o que ganhou ampla adesão. O texto básico foi oriundo de uma Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), precedida em 1986 pela 8a. Conferência Nacional de Saúde. A proposta da CNRS pouco foi modificada em sua essência no decorrer dos trabalhos constituintes, sendo aprovada, com unanimidade, gerando esperanças e defesa intransigente de seus criadores e servidores públicos espalhados pelo país.
Visão crítica
25 anos após, permanecem em sua defesa, ou de seus princípios, os que se engajaram na reforma da saúde brasileira sem discernir que, e por quê, de fato, perdemos a batalha da saúde pública que sonhamos. Na visão de muitos, no entanto, o programa Mais Médicos, de resto, necessário e digno de apoio dentro do quadro atual, denuncia a falência sistêmica do SUS. Esperamos que alavanque outras possibilidades relacionadas à deficiente atenção primária no país, em particular relacionadas aos cursos de medicina.
Ora, é insuficiente explicar nossa derrota pela “Guerra do Capital” contra o SUS. Por dados do PNUD, 2007, o Brasil é o país com a 5a. maior concentração de renda da América Latina e também o que tem o 5o. pior nível de saúde. Ou seja, de lá para cá, houve melhorias inegáveis, mas o SUS não foi capaz de distintamente provocar uma situação de vantagem sanitária que não fosse o próprio reflexo da situação sócio-econômica do país; seus avanços econômicos e sociais melhoraram a saúde, como também a de outros países latino-americanos. Nada de novo. O novo seria romper com essa relação.
Algumas assertivas em tributo ao SUS, ouvidas comumente, como a existência de experiências bem sucedidas e sobre índices de satisfação de usuários, atestam o oposto. Todos os serviços têm que funcionar bem e o mais homogeneamente possível. Ademais, quando mudam prefeitos costuma haver reversão nesses locais. Quando 70% dos usuários se dizem satisfeitos, podemos pensar que 30% de insatisfeitos em saúde é muito ruim. Para qualquer artigo de consumo seria um desastre.
O tamanho e a população do Brasil não são dificuldades reais para uma estrutura de saúde. Ao contrário, a economia de escala diminui alguns de seus custos unitários. Mas a organização precisa ser diferente.
Referência
Ninguém desconhece que a lógica capitalista é concentracionista e que precisamos de regulação e intervenção do estado para salvar o próprio capitalismo de sua auto-destruição, com reflexos danosos na população como um todo. Elementar explicar que as crises advém, obrigando as transferências de capital, levando a guerras ou deixando rastros perversos.
Após a segunda guerra mundial, os países europeus, em particular a Inglaterra, resolveram modernizar o capitalismo, para benefício de seus trabalhadores e cidadãos como um todo e do próprio capital. Ou seja, começaram a montar o que se chamou de estado do bem estar social. Ao lado da previdência social, foi concebido um “plano nacional de saúde” gerido pelo estado, público, universal e gratuito no momento da utilização dos serviços, que era a própria negação interna das práticas dos setores econômicos de ponta. Vale dizer que essa decisão é tomada num momento que a infra-estrutura dos país, abalada pela guerra, tinha também de ser reconstruída materialmente. E sobravam necessidades na saúde da população.
Tal “Plano” reconhecia, sem ser necessário constar de uma lei, que a saúde era direito e dever de todos (todos contribuiriam com impostos). Para garantir a aplicação dessas idéias prevalentes na sociedade, precisava sim de uma lei. A lei criaria o NHS (National Health Service) e um tributo proporcional aos rendimentos. Na imprensa, entre os defensores do SUS, e no cotidiano, (eu mesmo erro involuntariamente às vezes,) chamamos de sistema de saúde inglês. Não o é; ainda que se possa dar esse apelido que agrada a corrente gerencial neoliberal – na Inglaterra foi criado um Serviço.
Talvez caiba um parêntesis sobre o que é um serviço nacional e rapidamente traduzi-lo a nossas leis anteriores a 1988. Os serviços eram prestados diretamente pelo estado. E, no pacto federativo, conveniada sua prestação com estados e eventualmente com municípios. A educação pública brasileira era prestada, predominantemente de forma hierarquizada: aos municípios cabia a educação básica, o secundário e escolas técnicas eram estaduais e as universidades federais.
O decreto-lei 200 de 1967 e o decreto-lei 900 de 1969 modernizaram, como querem alguns, a administração pública: o governo federal não seria prestador direto de serviços. Quem o faria, no seu nível, seriam as autarquias e fundações públicas. Nessa linha, o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) viraria a Fundação SESP. Unificada a previdência social, as autarquias, INSS e INAMPS, viriam a ser criadas. Houve forte reação, inclusive na passeata dos 100 mil em 68, contra as universidades virarem fundações. De outro lado os sistemas eram os que atravessavam os vários ministérios coordenados pelo ministérios chaves, como por exemplo o sistema nacional de recursos humanos.
Expectativas frustradas
Talvez, por isso, naquela época, os participantes da CNRS não tenham visto instrumentos para unificar todos os serviços públicos, com estruturas diversas e espalhados em vários ministérios e níveis de governo, numa designação abrangente como a de um serviço nacional de saúde a ser disposto em lei ordinária, daí optarem por um sistema vertical ao invés de transversal.
Alguns, como eu, pensaram que talvez se o fizesse depois na regulamentação, mas aí a batalha já tinha vencedor: pragmatismo, imediatismo, eleitoralismo, interesses comerciais, prevaleceram. A idéia que tínhamos era que se criaria um serviço nacional federado de saúde, com planejamento e regulação central e ações suplementares em busca da equidade, ou defesa do país, portos, fronteiras, etc. ou de extrema complexidade. Os executores plenos seriam os estados, com assistência técnica e financeira. Nesses poderiam ser constituídos os serviços estaduais autárquicos de saúde, democratizados com os controles sociais, inclusive das prefeituras abrangidas ou contidas; isso é, suas estruturas mínimas seriam em base populacional, podendo repartir ou confluir municípios para tamanhos próximos a 200 mil habitantes: os distritos sanitários.
Cabe dizer que um serviço nacional de saúde planeja com a vista na equidade e não no mercado; na necessidade sentida ou não, mais do que na demanda, ainda que nessa também. Ao ser municipalizado, fica inviabilizada na prática a distribuição equitativa de benefícios às pessoas. O pior mesmo é ficar atrelada diretamente à política eleitoral local bi-anual.
Ernani Braga despertou meu interesse pela saúde pública: médico recém formado em Porto Alegre, vim ao Rio para ser contratado pela Fundação SESP. Meu destino seria o interior do Amazonas. Aquela fantástica instituição tinha todos os elementos que aprendi fundamentais para colocar um médico no interior com equipe e recursos mínimos, tempo integral, sem clínica particular. Ações eram quantitativamente e qualitativamente planejadas e supervisionadas, treinamento em serviço, integração com a comunidade local. O prefeito também aguardava consulta na sala de espera. Naquela época pensava que o serviço médico obrigatório em unidades como aquelas, o que acontecia na fronteiriça Letícia da Colômbia, devia ser implantado no Brasil.
Triste dizer que a Fundação SESP foi desativada pelo SUS, suas unidades transferidas para as Prefeituras.
O Brasil tenta emplacar o programa de saúde da família e não forma médicos generalistas, mas sim especialistas, que o mercado, inclusive o público, demanda. Ademais, parece ser esse um programa para os lugares pobres, mais remotos ou periféricos, mas não para a população como um todo, gerando distorções que comprometem o custo dos serviços, abuso de tecnologias caras e desnecessárias. Daí porque nos últimos dez anos nosso déficit anual no balanço de pagamentos em itens da saúde passou de 3 para 12 bilhões de dólares. Atrás do “sistema universal, integral da saúde”, com esse modelo assistencial, o país recebe uma conta gorda.
Atenção básica e integral
A história do NHS pode ser chamada de heróica nas suas duas primeiras décadas e extremamente responsável e eficiente, levando ao reconhecimento de suas vantagens sobre os demais serviços europeus e sendo absorvida, no que cabia, por vários países do mundo. Em seus detalhes podemos ver como transformou uma indústria farmacêutica incipiente em muito poderosa com controle estatal de preços ao NHS e distribuição gratuita ou pequena co-participação dos usuários, para o que decisivamente possibilitou o estatuto do médico generalista. Lembremos que Itália, Portugal e Espanha fizeram suas reformas constitucionais na década de 70, incorporando, em particular, a questão da porta de entrada universal com o médico generalista na atenção básica.
Na Inglaterra, falta lembrar, os serviços privados de saúde precários foram fechados e alguns estatizados. No Brasil, já que a CNRS tinha representantes do setor privado prestador de serviços de saúde, foram preservados.
O regime de pagamento diferenciado a prestadores de saúde, como os médicos generalistas, na Inglaterra, é por captação, isso é, quantos pacientes os elegem como seu médico (podendo trocar se insatisfeitos) e não por atos médicos – consultas, procedimentos, etc. O pagamento por unidade de serviço oriundo de nossa medicina previdenciária subsistiu no Brasil pós-SUS. Assim pode-se pagar um X pela retirada de uma amídala ou duas se for no mesmo ato, e se em dias diferentes pagará 2 X.
Planos de saúde
Mas não foi apenas a forma de pagamento ao setor privado do INAMPS que ainda se faz presente no cenário da saúde pós-SUS. As características dos planos de saúde também foram legadas pelo período autoritário. Ainda que aos planos individuais tenham sido estabelecidos parâmetros, muito pouco de então diferem os planos de grupo. As grandes empresas que contratavam serviços médicos descontavam o custo do mesmo de parte de sua contribuição previdenciária e hoje abatem do imposto de renda, mas não há controle efetivo sobre sua qualidade e, a um grave problema, ficam sujeitos os trabalhadores incluídos: a vulnerável confidencialidade de seus dados. E ainda mais grave, é o fato de empresas estatais, fundações públicas e mesma a administração direta propiciar planos de auto-gestão e privados comerciais paralelamente ao SUS. Por isso, cerca de 25% dos brasileiros são beneficiários de planos de saúde privados (2009), sendo em boa parte financiados por recursos públicos. Simultaneamente assalariados gastam com planos privados o que o SUS deveria cobrir.
A ampliação do mercado consumidor de planos de saúde também é um sintoma da falta da credibilidade do SUS como direito do cidadão (na Inglaterra não chegam a 5% os que têm planos privados). Quando ter um plano de saúde é visto como uma conquista, seja corporativa ou de consumo, e não como uma capitulação pragmática do usuário a seu direito de cidadania, tendo em vista a falta de pronta acessibilidade e precariedade do SUS, temos a prova de que a “saúde como direito de todos e dever do estado” é de fato uma assertiva constitucional abstrata sem base social que a sustente.
Conclusões
Numa certa perspectiva, no Brasil, podemos dizer que não houve a reforma sanitária do pós-guerra europeu, mas uma reforma essencialmente administrativa com um componente participativo novo, representado por um “controle social”. A ingenuidade é que num país com os resíduos escravagistas e coloniais, onde justiça e soberania são retóricos, uma solução funcionalista – sistêmica, seja capaz de catapultar esses valores.
Como no sistema “único” não houve a unificação dos serviços de saúde existentes, sendo sua gestão ainda municipal, estadual, federal ou privada, restou impossível na prática o planejamento e a gestão para a equidade. (A equidade é a verdadeira ética republicana na saúde.) Em seus lugares, um emaranhado de planejamento integrado de níveis de governos e ongs tentando juntar as partes fragmentadas para implantar programas, com alto custo burocrático e midiático. Os esforços se sucederam para regionalizar e integrar serviços nesses anos, sem sucesso. A poderosa mística do SUS, como toda mística, mitiga a dor, mas não dá solução para os choques de realidade. Por isso precisa ser repensado.
Impossível, também, plano de carreira com isonomia para todos os servidores da saúde e não só para médicos. Mas, se quase metade do orçamento brasileiro inicia o ano compromissado, como atender a todos? Privatizando, estimulando os planos privados de saúde?
Na mistura de medicina de mercado e desejo de uma medicina púbica salvam-se médicos que acreditam que são “filhos de Deus” – se todos querem levar a melhor, por que só médicos são sacerdotes? E também todos os que, por domínio social (categoria , nível educacional ou informação) precisando de assistência individual, conseguem se mover usando o melhor dos serviços privados e públicos (alta complexidade, doenças raras).
Tanto quanto se sabe, os royalties do petróleo do pré-sal vão salvar a saúde da carência de recursos atual. Resta saber quem vai salvar a medicina pública dela mesma, ou seja, de suas ligações viscerais com a medicina de mercado, para não continuar tudo como está, mas com mais dinheiro público.
A receita é antiga: um serviço público nacional de saúde.
Em 12/11 revisado em 18/11/13.
* Eduardo Costa é médico-sanitarista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário