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sábado, 22 de março de 2014

Joan Baez canta "Cálice" com Milton e Gil [exorcizando #coxinhasmarchadores ]



Joan Baez canta com Gilberto Gil e Milton Nascimento Divulgação

no Globo


RIO - Teve a sua boa (e particularmente emocionante) dose de acerto de contas com o passado o show que a americana Joan Baez fez na noite de sexta-feira no Rio de Janeiro, no Teatro Bradesco. Três décadas depois de sua primeira visita ao Brasil, na qual foi impedida de cantar pelo regime militar de exceção instaurado em 1964, a musa da canção folk política se viu no palco, junto com Gilberto Gil (artista exilado pela ditadura) e Milton Nascimento entoando os duros versos, que ela leu num papel, de “Cálice”, canção de Milton e Chico Buarque que combatia e que foi combatida nos anos 1970 pelos detentores do poder. Saudada pelo artífice do Clube da Esquina como “uma deusa nossa”, Joan já tinha sinalizado suas intenções, antes do encontro, ao entoar “Pra não dizer que não falei das flores (caminhando)”, de Geraldo Vandré. E, no declarado propósito de não deixar a oportunidade passar em branco, ela seguiu com os dois na celebração de utopias de “Imagine”, de John Lennon. Momentos altos de um show que teve política, mas também muito boa música.

Aos 73 anos de idade e mais de 50 de carreira, Joan Baez não é só uma veterana do inconformismo. É a voz que – ainda incrivelmente cristalina e rica – ecoa nas de gerações e gerações de seguidoras, mesmo as muito jovens, da novíssima cena do folk. Pequena e esguia, apenas com os cabelos grisalhos a dar pista do seu setentismo, Joan adentrou o palco só com violão e abriu a noite com “God is God” (de Steve Earle), recorrendo à primeira de uma série de leituras de papéis com bem-humoradas sinopses em português das canções que interpretaria. O toque econômico e inconfundível nas cordas se manteve em “Farewell, Angelina”, a primeira das canções de ex-namorado Bob Dylan que ela mostraria na noite. No terceiro número, “Flora”, canção tradicional irlandesa, entraram em campo seus dois músicos: o multinstrumentista Dirk Powell (empunhando, nessa, um banjo) e o percussionista Gabriel Harris, filho da cantora.

Multicultural por toda a sua carreira, Joan apresentou no show muitas das canções em espanhol de seu repertório, como “La llorona”, “El preso número nueve” e, como não poderia deixar de ser, o seu grande sucesso “Gracias a la vida” (da chilena Violeta Parra). “Mulher rendeira” e “Acorda, Maria Bonita”, conhecidos temas compostos pelo cangaceiro Volta Sêca, do temido bando de Lampião, representaram o Brasil no apanhado do folk mundial que a cantora faz em seu show.

Teve ainda o momento para lembrar o festival de Woodstock e toda a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos (“Swing low, sweet charriot”), mais canção política (“The day after tomorrow”, “Deportees”), um outro Dylan (“It’s all over now, Baby Blue”) e algumas boas brincadeiras, como uma bluesy “House of the rising sun” e uma animada “Cornbread”, em que Joan dançou alegremente com Dirk Powell com o acompanhamento solitário da percussão. Outro momento de descontração foi o de “Stagger Lee”, com Dirk no piano boogie, e Gilberto Gil indo atrás, no violão e nas intervenções nas altas regiões da voz. Não demorou muito, e lá estava Milton fazendo seus vocalises e reforçando com Gil os coros de “top of the world!”. Uma jam inesperada e deliciosa.

Nesse embalo, o tempo voou, e quando o público (coalhado de cabecinhas brancas) se deu conta, estava na hora de ir embora. Foi aí que o comportamento até então pacato de um show civilizado de sexta-feira se transmutou num vigoroso coro pela volta de Joan Baez ao palco. E ela não fez doce, mandando um Dylan de responsa (“Blowin’ in the wind”). Diante da insaciabilidade da plateia, rolou ainda um segundo bis, com “The boxer” (Simon & Garfunkel) e um inevitável “Diamonds and rust”. Dava para acreditar que ali estavam, como disse Gil, um punhado de setentões meramente relembrando o seu tempo? Parafraseando outro setentão, Paulinho da Viola, o tempo de Joan Baez, de Gil, de Milton é hoje.


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