Fachada da "Casa da Morte", em Petrópolis, onde foram mortos guerrilheiros na época da ditadura. Márcio Alves/27-6-2012 / O Globo
Casa da Morte: Investigações revelam nomes de cinco agentes que atuaram em torturas
- Aparelho do CIE simbolizou os anos mais sangrentos do regime militar
no Globo
RIO - A memória da ex-presa política Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis, registrou os codinomes de 19 torturadores durante os 96 dias de seu martírio, em um dos mais sombrios aparelhos da repressão dos anos 1970. A identidade de parte deles, que permanecia desconhecida até hoje, sai das sombras agora. “Doutor Bruno”, apontado por Inês como a pessoa de mais alta patente na casa, era o coronel Cyro Guedes Etchegoyen, chefe de Contrainformações do Centro de Informações do Exército (CIE). Completam a nova lista de torturadores da casa os sargentos Rubens Gomes Carneiro, o “Laecato”, Jairo de Canaã Cony, o “Marcelo”, e Carlos Quissak, além do cabo Severino Manuel Ciríaco, o “Raul”.
Quatro décadas depois, O GLOBO identificou os nomes ao cruzar os registros de Inês com depoimentos de ex-agentes e documentos militares. A Casa da Morte, na Rua Arthur Barbosa 668, simbolizou os anos de chumbo do regime. Entidades de defesa dos Direitos Humanos acreditam que o destino final de seus presos, geralmente comandantes de organizações guerrilheiras, era a morte (o número de vítimas é impreciso). Porém, em entrevista ao jornal, em 2012, o coronel reformado Paulo Malhães, ex-agente do CIE, disse que a casa era chamada de “centro de conveniência” e servia para pressionar os presos a mudar de lado e virar informantes infiltrados, ou “RX”, na gíria dos agentes.
Até hoje, acreditava-se que “Doutor Bruno” era o então major-aviador Éber Teixeira Pinto, do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa). Ele realmente esteve na casa, mas não pertencia à equipe de interrogadores. O verdadeiro “Bruno”, Cyro Etchegoyen, foi quem ordenou a libertação de Inês, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), acreditando que ela aceitara ser uma “RX”. A ex-guerrilheira, porém, blefara e suas revelações custaram a Cyro a promoção ao generalato.
Jairo de Canaã Cony, o “Marcelo”, foi outro militar marcado pela casa. Cada oficial interrogador contava com dois sargentos. Canaã era da equipe do capitão Freddie Perdigão Pereira, o “Doutor Roberto”, e estava com o oficial quando Perdigão foi ferido na Lagoa Rodrigo de Freitas, em 20 de janeiro de 1970, em troca de tiros com o guerrilheiro Carlos Fayal. Mas “Marcelo” caiu em desgraça quando teve seu nome envolvido na venda ao mercado negro de armas apreendidas nos aparelhos de esquerda. Foi transferido para Guajará-Mirim, em Rondônia, onde morreu em 1982, baleado pelo sentinela do próprio batalhão.
Sargento atuava como motorista da casa
O sargento Carlos Quissak era o motorista da casa. Transportava presos e agentes. Os carros ficavam estacionados no Palácio Duque de Caxias, onde o CIE funcionava no Rio. Pouco depois, ele passou a prestar serviços domésticos para o general José Luiz Coelho Neto, subcomandante do CIE e considerado o oficial que conseguiu a casa, que pertencia ao alemão Mario Lodders, mas foi obtida com a ajuda de Fernando Aires da Mota, ex-piloto da Panair e ex-interventor na Prefeitura de Petrópolis (1965).
A lista é completada pelo sargento Rubens Gomes Carneiro, o “Laecato”, que atuou em missões do CIE no Sul do país, pelo cabo da Polícia do Exército Severino Manuel Ciríaco. Já eram nomes conhecidos, além de Perdigão e Malhães, Orlando de Souza Rangel (“Doutor Pepe”), Rubens Paim Sampaio (“Doutor Teixeira”), José Brant Teixeira (“Doutor Cesar”), Amilcar Lobo Moreira da Silva (“Doutor Carneiro”), Ubirajara Ribeiro de Souza (“Zé Gomes” ou “Zezão”) e Luis Cláudio Azeredo Viana (“Laurindo”).
Outro desafio das investigações sobre a casa é o destino dado as suas vítimas. Duas áreas de Petrópolis, na Região Serrana do Rio, estão entre os locais com indícios de cemitérios clandestinos de vítimas de agentes da repressão. Investigações do Ministério Público Federal apontam o terreno ao lado casa e o cemitério do Quarteirão Worms, às margens da Rodovia BR-040 (Rio-Juiz de Fora), como possíveis áreas usadas pelo regime militar para ocultar corpos.
Enterro de corpos acontecia à noite
O terreno ao lado da casa pertence ao número 120 da Rua Arthur Barbosa, no bairro de Caxambu, antiga Rua Montevidéu. Na década de 1970, o imóvel pertencia à família Lodders e também incluía a Casa da Morte, desmembrada posteriormente (com o número 668). No final dos anos 1980, com a redemocratização, escavações chegaram a ser feitas no local, mas nenhuma ossada foi encontrada. Já o cemitério do Quarteirão Worms, na pista de descida da Serra de Petrópolis, era usado para enterros de indigentes, muitos vítimas de grupos de extermínio que atuavam em cidades da Baixada Fluminense.
De acordo com o procurador de Petrópolis, Marcus São Thiago, após as investigações do MPF, o município decretou a utilidade pública do local em agosto de 2013, como ação inicial para o processo de desapropriação. A prefeitura terá cinco anos para concluir o processo. A proposta do município é transformar a Casa da Morte em um memorial em homenagem às vítimas da repressão e em defesa dos direitos humanos. Por sua vez, a área ao lado, coberta por mata, seria preservada.
— Nos anos 1960 e início dos anos 1970, só existiam as duas construções no número 120: a sede, onde morava a família Lodders, e o imóvel que foi cedido e se transformou na Casa da Morte. O local era ermo e afastado, o que poderia facilitar enterros clandestinos e o funcionamento do aparelho de tortura. A única vizinhança era um reservatório de água. Das duas casas era possível ver o Centro de Petrópolis, e a rua de acesso poderia ser fechada facilmente — afirma São Thiago.
— O mesmo ocorria com o Quarteirão Worms, não havia a pista de descida da Serra. Até hoje, poucas pessoas sabem da existência desse cemitério.
Investigações no Quarteirão Worms, que recebeu visita de técnicos da Comissão Nacional da Verdade, dão conta de que corpos seriam enterrados no local à noite, e o esquartejamento das vítimas era usado como recurso para dificultar a identificação. Além do Worms, Petrópolis tinha na época dos governos militares outros sete cemitérios — um deles pertence hoje ao município vizinho de São José do Vale do Rio Preto. Chama a atenção de pesquisadores o número de mortes violentas na cidade — por atropelamentos, hemorragia interna, traumatismos e lesões na cabeça, causas características de torturas em aparelhos de repressão, além de omissão de socorro — e de pessoas enterradas como indigentes na primeira metade dos anos 1970, já que a cidade era considerada pacata e tinha uma população pequena.
— Entre 1970 e 1975, Petrópolis tinha característica de cidade de veraneio. O município tem disponibilizado os livros dos cemitérios para investigação. Muitos documentos se perderam, o que dificulta o trabalho. Chegamos a propor uma pesquisa nos arquivos do Hospital Municipal Nelson de Sá Earp, onde havia o registros dos atendimentos feitos no pronto-socorro, mas parte do material já não existe mais. Parte do arquivo foi destruída — afirma o procurador.
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