Após décadas de uso de armas químicas e biológicas em guerras e experimentos, os governos ocidentais e suas organizações “internacionais” de saúde já deram razões de sobra para serem vistos com desconfiança e medo pelos países do Oeste africano
Original em New Eastern Outlook, tradução por Vinicius Gomes
reproduzido da Revista Forum
No artigo do The Guardian, “Pânico com o vírus mortal do Ebola se espalha pelo oeste da África”, lia-se:
“Desde o surto na Guiné do mortal Ebola Zaire, em fevereiro, cerca de 90 pessoas morreram, na medida em que o vírus se propagou para países vizinhos, como Serra Leoa, Libéria e Mali. O surto lançou ondas de choque pelas comunidades que sabem pouco sobre a doença ou sobre como ela é transmitida. Os casos no Mali aumentaram o temor de que esteja se espalhando pelo Oeste da África.”
O jornal também relatou que os Médicos Sem Fronteiras (MSF) estabeleceram centros de tratamento na Guiné, e um deles chegou a sofrer um ataque dos locais, que acusaram o grupo de assistência de ter levado a doença ao país. Também é alvo de críticas o governo de Guiné, que se mostrou incapaz de lidar com a crise.
Esse ultimo surto, que ainda precisa ser contido e está sendo considerado pelo MSF como uma “epidemia sem precedentes”, ilustra diversas verdades inconvenientes a respeito do tratamento médico global, da resposta emergencial a surtos e da percepção que muitos têm de que o Ocidente está submetendo o mundo em desenvolvimento a uma “tirania médica”.
A Falha na preparação
Em 2012, quando os MSF concluíram sua resposta a um surto de Ebola em Uganda, escreveram: “A resposta de emergência dos Médicos Sem Fronteiras a um surto de Ebola em Uganda chegou ao final. A equipe médica entregou ao Ministério da Saúde de Uganda o centro de tratamento que havia montado no distrito de Kibaale.”
Lia-se também no texto: “Como parte de um plano de preparação para futuros surtos, os MSF também restauraram uma unidade de tratamento no hospital de Mulago, localizado na capital Kampala. ‘Uganda desenvolveu a capacidade de responder a crises de Ebola’, disse a coordenadora da MSF, Olímpia de la Rosa. ‘Nós podemos confiar na capacidade da equipe do Ministério da Saúde em assumir e gerenciar casos de Ebola, com todas as garantias de segurança.’”
Se os MSF e outras organizações internacionais podem treinar uma equipe médica ugandense e entregar ao governo de Uganda a responsabilidade de prevenir futuros surtos, por que não houve ações similares em países como Guiné, Libéria, Mali e Serra Leoa? De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), surtos de Ebola ocorrem “primeiramente em vilas remotas no centro e no oeste da África, próximos a florestas tropicais”. Por que, então, os países nessas regiões da África não foram preparados para tais surtos – principalmente pelo fato de que muitos dos países que financiam os MSF já estão fortemente envolvidos com os assuntos internos de seus assuntos internos?
Apenas a França tem gasto centenas de milhões de euros em suas operações militares no Mali – em 2013 foram quase 2,7 milhões de euros ao dia. O dinheiro investido em operações militares designadas para promover a hegemonia ocidental por todo norte e oeste da África – uma extensão da intervenção ocidental na Líbia – faria qualquer um acreditar que tais fundos deveriam também ser direcionadas para prevenir “epidemias sem precedentes” de doenças mortais como o Ebola, mas aparentemente as mesmas preparações feitas na Uganda foram negligenciadas em Mali (ocupada pela França), assim como em outros países tendentes aos surtos de Ebola.
Enquanto o Ocidente posa como um chefe arbitrário da humanidade através de suas organizações internacionais, intervindo em crises pontuais, sua falha em preparar outras nações vulneráveis ao surto de Ebola usando a mesma fórmula de Uganda, no mínimo, abala a confiança pública. Esta é ainda mais enfraquecida quando o Ocidente intervém nesses mesmos países por ambições geopolíticas, sob a justificativa de “democracia”, “desenvolvimento” e “direitos humanos” e, em seguida, falha terrivelmente em atender a necessidades desesperadoras, como prevenção de epidemias, das mesmas populações.
Desconfiança gera suspeita
Enquanto os MSF e o governo de Guiné alegam que as pessoas que atacaram os médicos estavam apenas em pânico, existem verdades perturbadoras a respeito do Ocidente e seu uso de agentes químicos e biológicos tanto para experimentos como parte do avanço de suas ambições geopolíticas – que resultou na genuína suspeita dos locais de que o surto de Ebola foi intencional.
A devastação deixada na esteira do uso de Agente Laranja na guerra do Vietnã e na contínua tragédia resultante do uso de urânio empobrecido no Iraque são dois exemplos extremos de como o Ocidente submeteu populações inteiras a agentes mutagênicos que irão ecoar nas gerações ainda por vir. Mais perturbador ainda é o papel que agências internacionais, supostamente neutras, tiveram ao encobrir tais atrocidades.
O artigo do Guardian, “Como a OMS encobriu o pesadelo nuclear do Iraque”, mostra como as conclusões da organização foram manipuladas por uma ciência politizada. Além do Agente Laranja e urânio empobrecido, a ONU e os EUA são acusados de ter participação em centenas de milhares de casos de esterilizações forçadas no Peru entre 1995 e 1997. Houve também uma matéria da NBC, intitulada “EUA pede desculpas à Guatemala pelos experimentos com DST”, onde lia-se:
“Os pesquisadores da área de medicina do governo dos EUA infectaram propositalmente com gonorréia e sífilis centenas de pessoas na Guatemala, incluindo pacientes mentais institucionalizados, sem o conhecimento ou permissão deles, há mais de 60 anos.
Muitos desses infectados eram encorajados a passar a doença para outros, como parte do estudo. Cerca de um terço dessas pessoas nunca conseguiram tratamento adequado”.
Mais perturbadoras ainda são as palavras dos políticos e lobistas do Ocidente: a ideia de usar armas biológicas em alvos geneticamente escolhidos foi mencionada no Projeto Neoconservador para um Novo Século (PNAC, sigla em inglês) de 2000: “Remontando as Defesas da América”, no qual lia-se em algumas partes:
“A proliferação de mísseis balísticos e veículos aéreos não-tripulados tornarão muito mais fácil projetar um poder militar ao redor do mundo. As próprias munições estão ficando cada vez mais precisas, enquanto novos métodos de ataque – eletrônicos, não-letais, biológicos – estarão amplamente mais disponíveis.
Como a conclusão do processo de transformação pode levar décadas, a arte de se guerrear no ar, na terra e no mar estará muito diferente do que é hoje e o ‘combate’ provavelmente se dará em novas dimensões: no espaço, no ‘cyber-espaço’ e talvez no mundo dos micróbios.
E formas avançadas de tecnologia de guerra biológica que podem ‘alvejar’ genótipos específicos podem transformar o arsenal biológico do reino do terror em uma ferramenta politicamente útil.”
Quando lobistas dão declarações dizendo “formas de guerra biológica que podem ‘alvejar’ genótipos específicos” como “ferramentas politicamente úteis”, frente a seu comprovado histórico de utilização de agentes químicos e biológicos em outras populações, percebe-se que não foi mero “pânico” o que levou à violência contra os trabalhadores dos MSF em Guiné.
Se o último surto de Ebola é parte de alguma conspiração ou não, talvez nunca se saiba. A questão central é a falta de confiança que se tem nas agências ocidentais quando eles tentam responder a uma crise. Desconfiança baseada não em medos irracionais, mas em de décadas de abusos, atrocidades, exploração e, principalmente, na contraprodutividade do que o Ocidente faz além de suas fronteiras.
E se o Ocidente falha em sua função como único árbitro da humanidade, o que deveriam fazer os outros países do mundo? A resposta é bem simples: devem construir um mundo multipolar com agências multipolares que colaborem entre si em vez de depender constantemente do Ocidente e de suas organizações “internacionais”. As nações do Norte e Oeste da África que enfrentam potenciais surtos de Ebola – ou então as nações por toda a Ásia que encaram temores similares quanto à Síndrome Aguda de Respiração Severa (SARS) – , precisam, elas próprias, encontrar parceiros internacionais. A estes não devem recorrer apenas em tempos de crise, mas para treinar e preparar seus profissionais de saúde para que sejam autossuficientes e capazes de lidar com surtos antes que eles ocorram.
Parte do que muitos chamam de “tirania médica” do Ocidente é a criação de circunstâncias nas quais os países da “periferia” dependem constantemente deles para ajuda, expertise e assistência. Tal dependência é contrária ao conceito de soberania nacional e ameaça a liberdade e segurança de indivíduos dentro da nação. Em Guiné, a inabilidade do governo em lidar com a crise permitiu que ela ganhasse proporções perigosas, enquanto as pessoas necessitavam da ajuda de agências estrangeiras nas quais simplesmente não confiavam.
Os países precisam chamar a responsabilidade para eles ao terem de lidar com surtos e nações parceiras deveriam guiá-los nessa tarefa, em vez de “segurar sua mão” a cada crise que surge. O último surto no Oeste africano ilustra o quão mal preparadas estão essas agências “internacionais” do Ocidente para proteger a população global, e como essa mesma população global estaria melhor assistida se procurasse meios de se proteger sozinha.
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